1. A Eucarística
do passado Domingo começou com um manifesto poético e musical centrado na
alegria do Evangelho. Esta flor da fé cristã é, muitas vezes, sufocada por
regras, preceitos, proibições e rezas que a cobrem de tristeza. Quando um membro
da assembleia celebrante lembrou que o Papa Francisco fazia anos, o canto e as
palmas festejaram nele a esperança de um mundo outro e de uma Igreja outra, interpelada
a destruir todos os muros.
Estaremos hoje a celebrar os anos do menino Jesus? Não são
as incertezas históricas acerca do dia, do ano e do lugar de nascimento que
impedem essa festa. O Natal é a evangelização inculturada de uma festa cósmica
e política do império romano.[1] Não se manifesta como a primeira
preocupação dos escritos cristãos.
S. Paulo não mostrou particular interesse pelo itinerário
terrestre de Jesus de Nazaré. Era, como toda a gente, nascido de uma mulher.
Neste caso sob a Lei judaica que ele julgava ultrapassada. Nada indica que o
tivesse conhecido pessoalmente. A sua experiência é de ter sido sacudido até às
raízes por Jesus ressuscitado. Viver com Ele era o que lhe interessava e
convencer as outras pessoas de que a morte tinha sido vencida. Esta não era a
última palavra sobre a existência humana[2]. A ressurreição realizava
o eterno encontro com Jesus na glória do Deus vivo. Para S. Paulo, o mundo
estava a chegar ao fim. Habitar com Ele para sempre era o seu grande desejo. A
sua tarefa evangelizadora destinava-se a mostrar a todos que a última estação
da viagem da vida não era a morte. Essa era só a penúltima. Insiste, na
primeira Carta aos Tessalonicenses, o
primeiro escrito do Novo Testamento (NT), que nem os que morreram há muito tempo
nem os que morrem agora, estão perdidos. O Senhor virá ao encontro de todos.
Sente a urgência em dizer isto por causa da alegria que descobriu nessa
esperança[3]. Em questão de prazos, S.
Paulo tinha-se enganado. Na Segunda Carta
tem de corrigir a sua precipitação, pois o resultado foi catastrófico: alguns dentre vós levam a vida à toa, muito
atarefados a não fazer nada. A ordem que vos deixei foi esta: quem não quer trabalhar que não coma[4] e acabam as vãs
especulações.
S. Pedro, na Segunda
Carta, resolve a questão do tempo de forma muito mais aleatória: um dia diante do Senhor é como mil anos e
mil anos como um dia[5].
2. Como o fim
nunca mais vinha, as comunidades cristãs não podiam viver só da pregação de que
o crucificado era, agora, o ressuscitado para sempre[6]. Não tinham conhecido Jesus
de Nazaré nem acompanhado o seu percurso. Era preciso quem contasse o que se tinha
passado para quando já não houvesse ninguém para dizer: eu vi, eu sei como foi. Sem isso, como interpretar o sentido da
revolução do Nazareno para os novos tempos?
Assim nasceram, no seio das comunidades cristãs, diversas pela
geografia e pela cultura, diferentes narrativas. S. Lucas explica essa situação
de forma muito clara: Visto que muitos já tentaram compor uma
narração dos factos que se cumpriram entre nós – conforme no-los
transmitiram os que, desde o princípio, foram testemunhas oculares e servidores
da Palavra –, a mim também me pareceu conveniente, após
acurada investigação de tudo, desde o princípio, escrever-te, de modo ordenado,
ilustre Teófilo, para que verifiques a solidez
dos ensinamentos que recebeste[7].
Nasciam,
assim, as Cristologias Narrativas. A primeira, a de S. Marcos, começa por
apresentar Jesus a pregar o Evangelho de Deus. O tempo está pronto e o Reino de
Deus está próximo. Mudai de mentalidade e acreditai no Evangelho.
Marcos
começa pelo fundamental. Mas a curiosidade não está satisfeita. Este Jesus
nasceu adulto? Mateus e Lucas escreveram aquilo a que se chama, impropriamente
e de modo diverso, os Evangelhos da Infância. Apresentam a alegria do
nascimento de Jesus e de João Baptista. Aí, começam as confusões.
Ao
não se ter em conta que são admiráveis narrativas teológicas, desliza-se para uma
biologia de conveniência que acaba por ocultar o essencial. Continua-se a
discutir a forma como Jesus foi concebido e como nasceu. Não faltaram as
declarações mais absurdas: Nossa Senhora, virgem antes, durante e depois do
parto. Jesus passou por Maria como o sol pela vidraça.
Ao
evitar a reflexão, sobre os textos, sobre o seu tecido simbólico e sobre os
seus jogos de linguagem, recorre-se a algo muito certo - a Deus nada é
impossível -, mas resvala-se para concepções pseudo-milagrosas que deixam mal o
Espirito Santo, Maria de Nazaré, Jesus e S. José. Perdeu-se a beleza e a
verdade dessas espantosas narrativas. Quando se procede assim, pode-se
perguntar: então porque é que não se ficou apenas com o Evangelho de S. Marcos?
3. Os textos do NT interpretam o sentido cristão do Antigo: Jesus
Cristo realiza, corrige e supera as esperanças não só de Israel, mas de toda a
humanidade. O movimento cristão é um movimento de saída universalista. Está na
sua lógica derrubar os muros criados entre povos e religiões. Jesus Cristo é,
na sua própria pessoa, a reconciliação. Como dirão os textos: Ele é a nossa paz[8]. Estas declarações
interpretam o sentido da prática histórica de Jesus de Nazaré. Isto que se nota
nas narrativas da sua vida adulta não é fruto do acaso. É fruto de um desígnio
de Deus. O seu agir espantoso não era uma sucessão de milagres. Era Deus no
tecido de uma vida humana, igual a nós excepto na maldade. Nasce humano e foi
crescendo em idade, sabedoria e graça, perante o espanto de Maria[9]. O Emmanuel não é só Deus
connosco, é um de nós.
Não
nasce só de Israel e para Israel. Nasce de toda a humanidade e para toda a
humanidade, como mostra a genealogia de Lucas: filho de Adão, filho de Deus[10].
As
narrativas do NT nasceram para continuar a prática de Jesus na vida das pessoas
e das comunidades. Isso aconteceu há 2 mil anos. Às vezes caímos na tentação de
pensar que basta uma nova linguagem da Fé para os dias de hoje. É um pensamento
justo e curto. São indispensáveis narrativas que contem as histórias de vida do
encontro do Evangelho da Alegria com as situações actuais da nossa humanidade. Se
não exprimirem esse encontro real, só podem produzir reportagens de literatura
barata.
O
Papa Francisco sabe que a Igreja não tem de resolver os problemas de há dois
mil anos. O que o preocupa é o casamento vital da Igreja com as situações que
precisam de um hospital de campanha. O importante não são as festas do Natal,
mas a transformação da vida numa festa para todos. Como ele diz:
A luz de Natal és tu
quando com uma vida de bondade, paciência, alegria e generosidade consegues ser
luz a iluminar o caminho dos outros.
Boas Festas!
24. 12. 2017
[1]
José Manuel Bernal, Para Viver o Ano
Litúrgico, Gráfica de Coimbra, 2001
[2] Cf. 1Cor 15
[3] 1Ts 4, 13-18
[4] 2Ts 2 – 3
[5] 2Pd 3, 8-14
[6]
1Cor
[7]
Lc 1, 1-4
[8]
Ef 2, 14 ss
[10]
Lc 3, 23-38; comparar com Mt 1, 1-17
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