1. Na noite do passado dia 7, estava eu no
aeroporto da Madeira, já de regresso, após duas conferências, no
Funchal e em Machico, quando recebo um telefonema do meu colega da
Universidade de Coimbra, Victor Lobo, químico de renome internacional.
Estava indignado com o programa Mata-Bicho, no qual se tinha produzido,
pouco antes das notícias das 17 horas, na Antena 1, uma inqualificável
fala sobre a festa de Nossa Senhora da Conceição, no dia seguinte. Já no
continente, pude ouvi-la, e dei razão ao meu colega. Porque é uma
javardice reles.
Devo confessar que
pessoalmente não me sinto ofendido e também dizer que o seu autor não
ofende propriamente os católicos, muito menos Nossa Senhora, Jesus
Cristo e Deus. Com aquele discurso soez e boçal, o autor ou autores o
que ofenderam foi a inteligência. E lembrei-me de uma prosa recente de
Ricardo Araújo Pereira, cáustica e mordaz, "Discriminar como Jesus
discriminou", a propósito de declarações do cardeal-patriarca sobre a
homossexualidade dos clérigos e o caso do padre madeirense. Comparada
com a fala do Mata-Bicho, imbecil, tem uma diferença abissal: o brilho
da inteligência, obrigando a pensar.
2.
Foi Kant que viu bem, quando, numa declaração irrenunciável, afirmou:
"O iluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é
culpado", e isso "sobretudo nas coisas da religião". Esta, "apesar da
sua majestade", não pode considerar-se imune à crítica. Mostraria
fraqueza uma religião que não admitisse a crítica. Ai de nós se não
houvesse críticos da religião, que chamam a atenção para aspectos das
religiões tantas vezes ridículos, supersticiosos e inumanos! Assim, o
crente até com a crítica soez e boçal saberá aprender, para exprimir o
sentido correcto dos textos, aplicando os métodos científicos,
exegético-hermenêuticos. Exemplos, a propósito da data natalícia:
2.1
O que é que verdadeiramente se celebra na festa da Imaculada Conceição?
Maria foi concebida sem pecado original. Mas o mesmo é preciso dizer de
todos os seres humanos: nascem todos sem pecado e espera-se que tenham
sido gerados no amor. Foi Santo Agostinho concretamente que, na
tentativa de explicar o mal no mundo, teorizou sobre o pecado de Adão e
Eva, que foi o primeiro e seria herdado por todos. Jesus, porém, nunca
falou em pecado original. Todos pecamos e Jesus é o Salvador de todos. E
Maria é grande, não primariamente por ser a mãe de Jesus, mas porque é a
primeira cristã, que acreditou no seu Filho e se converteu ao seu
Evangelho, que é ele mesmo, notícia boa e felicitante para todos.
Acompanhou-o sempre, até à Cruz. Ele é o Messias esperado, mas não um
Messias guerreiro como se esperava. Jesus anunciou, por palavras e
obras, o Deus bom, não vingativo, amigo de todos os homens e mulheres,
que compreende e perdoa e cujo único interesse é a realização plena de
todos. E foi um novo começo...
2.2
Maria foi virgem? Nem os Evangelhos nem a teologia são tratados de
biologia. A fé cristã afirma que Jesus é homem verdadeiro, em tudo igual
aos homens excepto no pecado. Mas ele é de tal modo humano, tão plena e
decisivamente humano, que só pode ser divino: é a humanização de Deus.
Só Deus poderia ser assim, a ponto de o próprio centurião romano, ao
vê-lo morrer na cruz, ter confessado: "Verdadeiramente este homem era
Filho de Deus."
2.3 Jesus teve irmãos e irmãs? Os Evangelhos dizem que sim. Que mal há nisso? A Igreja não é favorável a famílias numerosas?
2.4
Vem aí o Natal. E eu sinto e penso que é uma época belíssima de amor e
de ternura, a viver no aconchego das famílias e naquela beleza inocente
de presépios e festividades populares. Mas percebendo o seu sentido
autêntico e verdadeiro, no mais profundo do humano, que é divino.
Assim,
é preciso que se saiba que os chamados Evangelhos da infância só
aparecem em São Mateus e São Lucas e não pretendem relatar
acontecimentos históricos, à maneira da nossa história crítica. São
reflexões teológicas, a partir já da fé em Jesus como o verdadeiro
Messias esperado e o Salvador de Deus para toda a humanidade. Portanto:
2.4.1
Perguntam-me: Jesus nasceu em Belém? É quase certo que nasceu em
Nazaré. Então, porque é que os evangelistas o põem a nascer em Belém?
Porque, se ele é realmente o Messias, tem de ser da descendência de
David e, por isso, nascer em Belém. Lá está no Evangelho segundo São
Lucas: "O Senhor Deus vai dar-lhe o trono de seu pai David."
2.4.2
Os anjos apareceram aos pastores e os reis magos vieram do Oriente?
Esse anúncio e essas belas estórias têm um significado
teológico-doutrinal imenso: são modos de comunicar que Jesus veio para
os mais pobres e humildes e não veio só para um povo, mas para todos os
povos. O Reino que Jesus anunciou, Reino da alegria, da paz, da justiça
universal, do amor, da liberdade, da fraternidade, da igualdade, da vida
eterna, é o Reino de Deus para todos. E faz-se aparecer uma estrela no
céu, porque Jesus é a verdadeira Luz que a todos ilumina.
2.4.3
Jesus foi exilado para o Egipto? Não. Quando os discípulos acreditaram
que Jesus é o Messias verdadeiro e universal, o libertador do mal, do
pecado, da injustiça, da morte - Deus é amor e, na morte, não caímos no
nada, mas entramos na plenitude da vida de Deus -, então apresentaram
esta estória da fuga para o Egipto, para que se compreendesse que ele é o
verdadeiro Moisés, o libertador definitivo. É mais do que Moisés.
2.4.4
Jesus nasceu no dia 25 de Dezembro? Como sabê-lo, se não há nenhum
documento? Mas é uma belíssima data, pois veio substituir a festa do
nascimento anual do deus Sol (natalis Solis invicti: nascimento
do Sol invicto), no solstício de Inverno. Na perspectiva da fé, o Sol
verdadeiro, invencível, é Jesus, e assim se comemora a partir do século
III no dia 25 de Dezemb
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