Infelizmente, ainda há bastantes pessoas
para quem a missa é quase só a homilia.
Esta errada percepção reduz a eucaristia
a um momento mais ou menos agradável
ou desagradável, mas sem incidência
na vida cristã das pessoas. Nem é apreciada,
sentida e vivida como o momento fonte
e cume da vida cristã.
O Banquete da Palavra, como com mais
propriedade podemos chamar à proclamação,
escuta, aprofundamento e meditação da
Palavra de Deus, é transformado por muitos,
sacerdotes e leigos, numa comida rápida
e tantas vezes insípida, para gente sem apetite.
Ora, como afirma Paulo (Rom 10, 17) «a
fé nasce da escuta, e a escuta através da palavra
de Cristo». Pelo que, se não há verdadeira
escuta da Palavra de Cristo, não haverá
verdadeira fé. Uns capítulos antes, o mesmo
Paulo (Rom 1,5) afirma que os que escutam
e aceitam a palavra de Cristo «suscitam
a obediência da fé entre todos os povos». Ou
seja, o chamamento à fé faz-se por meio da
proclamação da Palavra de Deus. Em grego,
hupakoé, (obediência) significa literalmente :
«prestar toda a atenção».
Compreende-se, assim, que a pregação seja
uma parte importantíssima do ministério do
sacerdote, pois dela depende em muito que
os fiéis possam chegar à obediência da fé, isto
é, ao acolhimento do Evangelho como supremo
acto de liberdade, na submissão doce
e consciente ao que Deus nos propõe pela sua
palavra e que o sacerdote, depois de a mesma
palavra ter sido devidamente proclamada
e saboreada em silêncio, ajuda, com a sua
pregação, a interiorizar.
Há que reconhecer que, devido às divergências
com os protestantes sobre a precedência
da palavra ou dos sacramentos, com
o concílio de Trento a reafirmar a centralidade
dos sacramentos na vida da Igreja (naturalmente
uma falsa contraposição, pois
nunca se deveria ter afirmado tal dissociação,
uma vez que, tanto os sacramentos como
a Palavra, são centrais na vida da Igreja)
uma sólida pregação bíblica não foi uma
característica forte na Igreja Católica dos últimos
cinco séculos. E com mais de 50 anos
decorridos desde o Vaticano II, há ainda
problemas à hora de implementar as claras
directivas dadas pelos padres conciliares e
as que dimanam da luminosa constituição
'Dei Verbum' sobre a Palavra de Deus. Ainda
hoje, há muitos pregadores, talvez demasiados,
que pouca atenção dão à Palavra
de Deus proclamada na celebração. A homilia
fala supostamente a partir da palavra
proclamada, mas, na realidade, é, em
muitos casos, um mero pretexto para considerações
sobre os males da sociedade e
do mundo que, com umas reflexões de carácter
moralista, se pensa poder combater
e erradicar. Aliás, os meios de comunicação
social dão conta disso mesmo e não de
um eventual aprofundamento e esclarecimento
da palavra de Deus para que os fiéis
possam, de fa cto, ser impregnados por ela
e chegarem finalmente à obediência da fé,
isto é, ao acolhimento gozoso da proposta
de vida que Cristo nos transmite com e pela
sua Palavra.
Olhando desapaixonadamente para muitas
das homilias, parecem pôr mais confiança
nas palavras do pregador do que na Palavra
de Deus que estão chamados a clarificar
e contextualizar, dando-lhe a sua pertinência
para os nossos dias e os problemas que
afligem a sociedade.
Bento XVI foi um Papa cujas homilias se
centravam realmente na Palavra proclamada
e que ele, com o seu saber e a sua reflexão
pessoal, apoiada na oração, sabia desenvolver
de maneira muito cativante, pois nos
deliciava com perspectivas de abordagem da
Palavra que muito a enriqueciam. Pessoalmente,
gosto também muito das reflexões
de dom António Couto, pois nos ajudam a
realmente aprofundar o conhecimento da
Palavra de Deus e a sentir fascínio e encanto
pela mesma. O Papa Francisco é outro bom
exemplo e mostrou a sua preocupação com
a homilia nos 40 números que lhe dedicou
na "Alegria do Evangelho" e nas que faz, quer
em Santa Marta, quer nas celebrações solenes.
Há outros bons exemplos a seguir, felizmente,
mas gostaríamos que fossem a regra
e não a excepção.
«Para uma boa contextualização da homilia,
é necessário conhecer aqueles a quem se
vai pregar, se possível de maneira pessoal e
individualmente: a Palavra de Deus não é
dirigida a todos em massa, mas a todos enquanto
pessoas». (Guia Prático para a Liturgia,
Giuseppe Carlo Cassaro, p. 54). Há uma
graça especial em olhar, contemplar o corpo
do Senhor, isto é, a sua Igreja, quando não
temos oportunidade de conhecer pessoalmente
aqueles a quem nos dirigimos. O papel
de protagonista pertence a Deus e não
pode ser substituído por manifestações de
presunção humana.
Diário do Minho - 3-março
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