Há muitos, muitos anos, que sigo
religiosamente os programas
radiofónicos de Júlio Machado Vaz.
Ao fi m-de-semana, como quem
se desincumbe de uma obrigação
dominical, escuto-o com Inês
Menezes na versão longa de O
Amor É. No último programa, já
nos instantes finais, lançou-se a
dúvida sobre se este domingo seria
ou não seria o domingo de Ramos. E com a
habitual graça e sensibilidade, sem nenhum
menoscabo, até com delicadeza, a dúvida,
quiçá porque se tratava de rádio, ficou no ar,
persistiu no ar. Esta dúvida — apesar de ser
uma simples dúvida — deixou-me intrigado,
talvez perplexo. Não, por uma questão de fé,
obviamente. Mas porque mostra até que ponto
a nossa sociedade, a nossa cultura e a nossa
civilização se descristianizaram. A questão,
insisto, não é a fé, nem a afeição à religião
ou à tradição e, muito menos, ao que em
tempos se denominava, a cristandade como
“regime” civilizacional ou cultural. A questão
está na indispensabilidade e na importância
do conhecimento da mundividência cristã e
daquilo a que tenho chamado — com algum
escândalo e incompreensão — a “mitologia
cristã” para a intelecção do nosso mundo
e do nosso tempo. Mesmo — e até mais
intensamente — para a compreensão do
mundo laico, laicista, agnóstico ou panteísta
e de todas as suas incontáveis variáveis
e declinações. Na tradição popular, este
domingo é como por ali se dizia, o dia de
madrinhas e padrinhos, afilhadas e afilhados,
ramos e antecipação de folares. Mas ele é,
antes de tudo o mais, o dia da entrada triunfal
de Jesus em Jerusalém para a sua última
Páscoa. E esse episódio de aclamação e glória
representa, como toda a vida narrada de
Jesus, não apenas um incontornável lugar
teológico, mas um manancial de referências
antropológicas. Curiosamente, do jaez
daquelas com que semanalmente me deleito
nos textos, nos versos, nas entrevistas, nos
artigos que dão vida e humor, coração e
pulmão a O Amor É.
2. O sentido do domingo de Ramos talvez
também se tenha perdido por causa do
engarrafamento ou atafulhamento litúrgico
da Semana Santa. O texto evangélico lido
no domingo de Ramos não é o texto da
dita chegada gloriosa e triunfal de Jesus a
Jerusalém. É a narração circunstanciada
da paixão e morte de Jesus — liturgia
que outrora estava reservada aos ofícios
de quinta e Sexta-Feira Santa. Com o
engarrafamento litúrgico, a maioria
das pessoas perdeu a consciência desse
momento épico, trágico e crucial da vida
de Jesus, prenhe como está de um intenso
magnetismo antropológico, transitando
de Messias glorificado a criminoso de
delito comum. Uma boa parte nem se dá
conta, aliás, de que, em cada eucaristia,
recordam aquele momento, quando
cantam o chamado “Santo” e proclamam
“Hossanas”. Ou seja, a recepção entusiástica
de Jesus nos umbrais de Jerusalém é revivida
semanalmente por centenas de milhões de
cristãos, mesmo que disso possam não ter
exacta consciência.
3. Cruzando os relatos evangélicos,
bastante aproximados entre si, pode
assumir-se que, sendo muitos os judeus que
se concentravam
em Jerusalém para
a festa da Páscoa,
e espalhando-se
a notícia de
que um famoso
profeta galileu,
capaz de milagres
assombrosos,
estaria a chegar,
uma multidão
juntou-se para O
ver. A multidão,
impressionada
pelo que d’Ele se
dizia, aclamou-O
com júbilo e
devoção, numa
atitude quase
messiânica. Daí
que se fale a
respeito da entrada
em Jerusalém,
num momento
de triunfo,
honra, glória
e louvor, no fundo, do reconhecimento
pelas massas dos atributos divinos. Este
episódio contribuiu decerto para a imediata
reacção persecutória do poder religioso,
civil e militar que viria nos dias seguintes e
culminaria na prisão, julgamento sumário,
condenação e crucificação de Jesus.
4. Este episódio de glorificação de tipo
messiânico ilustra bem a ausência de um
projecto político em Jesus e de Jesus. O
Messias — na concepção judaica — não é
apenas um salvador espiritual, é também
um libertador temporal (naquele preciso
tempo um libertador do jugo romano).
Este seria o momento — ou, como se diz
agora, o momentum — para Jesus assumir
a instauração do Reino, mas de um Reino
com coroa, ceptro e espada. Há, no entanto,
um sinal, marcado em todos os evangelhos,
e inspirado nas profecias de Isaías e de
Zacarias, que mostra simbolicamente que
Jesus, mesmo com este apoio popular, não
visa um reino político. Jesus entra montado
num jumentinho, filho de uma jumenta.
Não entra de liteira, nem chega a cavalo,
como um governador ou um general; passeia
mansamente no lombo de um simples burro.
E, por isso, dirá a Pilatos, dias mais tarde,
que o seu Reino não é deste mundo.
5. Confesso que esta passagem sempre
me interpelou. E que a projecção de glória,
de honra e de louvor, tão manifesta neste
episódio, e tão barrocamente presente na
liturgia católica, embora de clara raiz velhotestamentária,
sempre me inquietou e
desafiou. Precisará Deus da glória, da honra
e do louvor? Ou preferirá o amor, de dádiva
e a gratidão? Gostará Deus de ser tratado
como Senhor, sinónimo de uma relação
de propriedade e de domínio, inspirada
na antiga relação “servo-senhor”? Não
Lhe bastará e não O satisfará plenamente
o amor paternal, a caridade e o ágape de
Pai-Mãe e filho-filha? Por reflexo do hábito
e da educação e porque tem raízes fundas e
fundadas, penso e falo indistintamente num
Deus Pai e num Deus Senhor, e por mais que
faça, julgo que não conseguirei abandonar
esse quadro de formulação e de pensamento.
Mas sei também, mesmo pisando o risco de
muita incompreensão, que um Deus que tem
filhos não tem servos; que um Deus que é Pai
não deveria ser Senhor.
Público de 17 de Março de 2018
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