1. Nunca fui pároco, mas
sempre aceitei com prazer celebrar o baptismo de crianças e, cada vez mais, de
adolescentes e adultos. Estava eu, há muitos anos, a começar uma celebração e,
como sugeria o ritual, convidei os pais e os padrinhos a fazerem o sinal da
cruz na fronte da criança. Ouvi alguém sussurrar: a Igreja começa cedo a crucificar os seus fiéis.
Foi uma preciosa ajuda para nunca
mais esquecer que os trabalhos da “descrucifixão” devem começar logo no primeiro
momento da iniciação cristã. Urge transformar um símbolo do horror num programa
de vida dedicado a tornar este mundo devastado em terra de alegria. Os textos
do Novo Testamento, resultado de um processo de memória e escrita das primeiras
quatro gerações cristãs, existem, no dizer de S. João, para que, conhecendo e
seguindo Jesus Cristo, a nossa alegria seja completa[1]. É arriscado, nos limites
duma crónica, procurar desfazer alguns equívocos sobre a transformação da
simbólica da cruz, pois há o perigo de criar outros piores. É um risco que
aceitei, neste espaço do Público, há vinte e oito anos.
2. Foi, em Nazaré, que Jesus apresentou as linhas fundamentais do
programa da sua missão. Pela sua abrupta e enigmática ousadia teológica,
recusando celebrar a ira de Deus, provocou a primeira ameaça de morte que, na
altura, não o assustou nem o levou a alterar o seu caminho[2].
S. Paulo, que não terá conhecido o
Nazareno na sua condição terrestre, teimou em fazer de Jesus crucificado o tema
incontornável da sua pregação sem fronteiras. Ele próprio reconhece que a sua proposta
era puro escândalo para os judeus e uma loucura para os gentios. Nunca desistiu
de mostrar que Jesus crucificado é a subversão do messianismo judaico e da sabedoria
mundana de todos os tempos. É estranho, mas aquele salto louco no escuro estava,
para ele, cheio de misteriosa luz[3].
Nos Actos dos Apóstolos, S. Pedro,
acusado e preso, atreve-se a dizer perante o Sinédrio: é Jesus Nazareno que vós
crucificastes e que Deus ressuscitou de entre os mortos, o único nome, debaixo
do céu, pelo qual devemos ser salvos.
Uma vez liberto, em oração com a
comunidade, insiste no essencial: “Sim, coligaram-se verdadeiramente, nesta
cidade, contra o teu santo servo Jesus, que ungiste, Herodes e Pôncio Pilatos com
as nações pagãs e os povos de Israel para executarem tudo o que, em teu poder e
em tua sabedoria, havias predestinado”. Enquanto rezavam, o Espírito Santo
tomou conta dos reunidos e investiu-os de coragem para anunciarem com firmeza a
palavra interdita pelo Sinédrio. Deus continuava a escrever direito por linhas
tortas[4].
A versão de S. Pedro concorda com
a de S. Paulo, mas não fica claro se Jesus cumpriu um desígnio divino ou foi
vítima de um crime político. Dada essa contínua interferência de planos na escrita,
não seria preferível esquecer essa história de horror que deixa mal os judeus e
os romanos, os apóstolos, Jesus e o próprio silêncio de Deus? Por outro lado,
não estará já muito longe de nós, do nosso mundo e das nossas preocupações? E se
a memória da cruz envenenou a história da cristologia, da pastoral, da
espiritualidade, não será tempo de procurar beber noutras fontes o sentido da
aventura humana? Se a cruz encheu as relações entre judeus e cristãos de mútuas
acusações venenosas, não seria preferível agradecer a José Saramago a denúncia
dessa torrente de sangue e passar adiante?
3. Talvez não! É verdade que os textos do Novo Testamento, em
relação polémica e selectiva com os do Antigo e abertos a todos os mundos,
estão inevitavelmente datados. Que os autores cristãos se tenham servido de
textos, imagens, cenários e concepções da literatura judaica para configurar a
personalidade notável e misteriosa de Jesus de Nazaré, é evidente[5]. O contrário é que seria
de espantar. Mas sem a extraordinária originalidade e criatividade histórica
daquele Nazareno nada disso seria possível. Teríamos apenas um artificial manequim
de colagens.
Os cristãos sem colocarem em
correlação crítica o nosso mundo, a nível pessoal, local e global, com o
percurso histórico de Jesus – uma longa ponte cultural, tecida de muitas
dimensões – não podem responder à pergunta fundamental: que tem Ele a ver connosco e que temos nós a ver com Ele?
As narrativas dos Evangelhos, ora
directas ora em parábolas, insistem em que Jesus era conhecido por gostar da
vida e “da vida em abundância” para todos. Nunca é apresentado como um modelo de
ascetas. O que não suportava era um mundo em que tinha uns à mesa e outros à
porta, uma religião de leis, fábrica de pecadores para condenar e de hipócritas
para serem lisonjeados. Não suportava o desprezo pelos pobres e pelas vítimas das
doenças físicas e psíquicas. É impossível servir a Deus e ao Dinheiro. O
dinheiro é um instrumento, não pode ser um Senhor. A missão humana e divina de
Jesus não era a de condenar, mas a de salvar o que parecia perdido. A sua ética
e a sua mística são samaritanas.
Jesus não morreu de acidente, de doença
ou de velhice. Foi morto porque preferiu ser crucificado a trair o projecto
divino de libertação. Não cedeu à dominação económica, política e religiosa,
expressões da teologia da opressão. Preferiu ser morto a trair o seu projecto
de vida.
O que falta são homens humanos. O
que temos hoje, à frente das chamadas grandes potências, são monstros a
desenvolver projectos para se defenderem e atacarem com as armas mais
sofisticadas. Consta que, em poucos dias, foram mortas em Ghouta (Síria) 800
pessoas. Como escreveu B. Pasternak, “o bem só pode ser alcançado pelo bem”.
Esquecemos que a pessoa humana individual é história de Deus[6].
O papa Francisco tenta introduzir
em todos os seus gestos, intervenções e textos a lógica da descrucifixão. Neste
IV Domingo da Quaresma, Deus vem em seu e nosso auxílio: Deus e o seu Filho não
sabem condenar. Especializaram-se apenas em salvar[7]. Não tiveram aulas de
Direito Canónico.
Aqui, lembro-me do poeta
brasileiro, Manuel Bandeira, que ao passar, em sua casa, diante do crucifixo
prometeu arrancar a figura de Cristo daquela cruz. Desistiu. Enquanto houver crucificados, não posso.
11. 03. 2018
[1] Jo 15, 11; 16, 22-24; 1Jo
1, 4; 2Jo v.12
[2] Lc 4, 16-30
[3] 1Cor 1 – 2
[4] Act 4, 1-31
[5] Daniel Boyarin, Le Christ juif. À la recherche des origines. Cerf. Paris 2013, pp.
153-186
[6] Boris Pasternak, O Doutor Jivago, Bertrand, s/data, pp.
300 e 469.
[7] Jo 3, 14-21
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