1. Quando alguém diz «aquele não é bem acabado», está a falar de si
próprio e dos outros, porque o ser humano nunca está bem acabado. Não sabemos
quem somos, pois, o que seremos é-nos desconhecido. Não somos só o passado nem
só o presente, mas o futuro e esse é filho da esperança. A esperança tem muitos
nomes. São frequentes as sondagens de opinião que tentam conhecer os desejos,
as espectativas e as esperanças de cada um. Não é novidade nenhuma saber que todos
desejam ser felizes. Varia muito, no entanto, o que cada pessoa entende por
felicidade. A expressão antiga diz bem a nossa condição animal: «haja saúde e
coza o forno». É saudável que todos desejem melhorar as suas condições de vida,
avançar na carreira como forma de auto-estima, para além do interesse
monetário. Mesmo se o dinheiro não der felicidade, dá muito jeito. Muita gente
espera a vida inteira o euro-milhões. O Papa Francisco contenta-se com pouco,
mas deseja para todos os três Ts, como forma mínima de dignidade:
tecto, trabalho e terra. As pessoas gananciosas, para satisfazer os sonhos de
riqueza, saltam por cima de tudo e de todos. A lista dos mais ricos de um país
ou do mundo não é muito grande. Grande é a distância entre os poucos loucamente
ricos e os muitos loucamente pobres e miseráveis. Mas não tem de ser assim.
Conta-se que, quando João XXIII chegou ao Vaticano,
perguntaram-lhe: «quantas pessoas trabalham aqui?» «Mais ou menos metade»! A
sua primeira medida foi a de aumentar os salários mais baixos, tendo em conta a
situação familiar de cada um. Quando expôs esta medida ao gestor financeiro do
Vaticano, este disse que era o caminho para a bancarrota. «Não me parece nada,
porque desci todos os salários altos. As despesas são as mesmas»[i]. Tinha sido, aliás, a
recomendação de S. Paulo. É tudo gente, como Jesus Cristo, que nada sabem de
finanças, no dizer do nosso Fernando Pessoa.
As capacidades científicas e
técnicas estão sempre a aumentar, mas raramente servem o desenvolvimento
equilibrado dos povos. A ciência e a técnica andam mais depressa do que a ética
e a sabedoria. A tendência é a concentração de poderes globais de dominação
económica, política e bélica.
A minha ignorância, acerca dos
efeitos bons e menos interessantes das realidades e das promessas da
inteligência artificial, do mundo da robótica, volta a recomendar a leitura de A Quarta Revolução Industrial[ii].
Se os seres humanos puderem ser libertados do mundo aborrecido de tarefas
aborrecidas por essas novas criaturas, bem-vindas sejam. Se vierem para mandar
em nós, agradeço que os seus inventores se reformem quanto antes.
2. Aos mais velhos foi-nos dado viver um tempo em que se disputavam
desejos de um mundo novo. Se Teilhard de Chardin pensava que o mundo pertenceria
a quem lhe desse a maior esperança, a Gaudium
et Spes, do Concílio Vaticano II, gostou da ideia: «podemos legitimamente
pensar que o futuro da humanidade está nas mãos daqueles que souberem dar às
gerações vindouras razões de viver e de esperar»[iii].
Muitas pessoas deliciavam-se com o
belo e terno poema de Péguy, no qual, Deus não se espanta nem com a fé nem com
a caridade. Só a esperança o comove, essa que todas as manhãs nos diz: bom dia![iv].
O filósofo marxista, Ernest Bloch
(1885-1977), elaborou a célebre obra O
princípio esperança, uma autêntica enciclopédia sobre os sonhos de uma vida melhor. Influenciou a teologia protestante e
católica, a partir dos anos 60 do século passado. As perguntas do filósofo são
as de sempre: Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos? Que esperamos? O que
nos espera?
Não admira que tenham sido as
utopias sociais, económicas, políticas e culturais que marcaram o Concílio
Vaticano II e animaram, sobretudo, os grandes debates das teologias do Terceiro
Mundo.
3. Georges Bernanos, um grande romancista católico (1888-1948), que
nos deixou obras extraordinárias, não era ingénuo: «para reencontrar a
esperança é preciso ter ido além do desespero. Quando se vai até ao fim da
noite, reencontra-se uma outra aurora»[v]. Estava, nitidamente,
marcado pelo percurso do próprio Jesus de Nazaré. Este não anunciou, apenas, a
alegria de que, finalmente, o Reino de Deus estava próximo. Tudo o que dizia e
fazia era já a pura gratuidade do Amor em acção. Os fiéis ao mundo velho
condenaram-no. Acabou na cruz gritando: Meu
Deus, meu Deus, porque me abandonaste? Parecia o fim, mas não era.
O estilo do Apocalipse, o último
livro da Bíblia, é suficientemente surrealista para alertar e consolar as
Igrejas cristãs perseguidas, umas muito mais fervorosas do que outras.
Nas cartas às Igrejas da Ásia, o
autor do Apocalipse apresenta Jesus Cristo como a Testemunha fiel (o mártir), o Primogénito
dos mortos (o ressuscitado). Conta que João, «vosso irmão», encontrando-se
na ilha de Patmos, movido pelo Espírito, ouviu uma voz forte que lhe disse:
escreve o que vês num livro e envia-o às sete Igrejas: Éfeso, Esmirna, Pérgamo,
Tiatira, Sardes, Filadélfia e Laodicéia. Ao voltar-se para ver a voz que
falava, a face dessa figura era como o sol quando brilha em todo o seu esplendor.
«Ao vê-lo, caí como morto a seus pés. Ele, porém, colocou a mão direita sobre
mim, assegurando: Não temas! Eu sou o Primeiro
e o Último, o Vivente; estava morto, mas eis que estou vivo para sempre»[vi].
S. Paulo atreve-se a dizer que, se
não há ressurreição dos mortos, também Cristo não ressuscitou. E se Cristo não
ressuscitou, anda a pregar em vão e vazia é também a fé dos seguidores de
Cristo[vii].
Na Carta aos Romanos, a
ressurreição é postulado cósmico e existencial: «Estou
convencido de que os sofrimentos do tempo presente não têm comparação com a
glória que há-de revelar-se em nós. Pois até a criação se
encontra em expectativa ansiosa, aguardando a revelação dos filhos de Deus»[viii].
Quem
nunca leu este capítulo, até ao fim, faça-o agora. Garanto que não ficará
decepcionado. É evidente que Paulo escreveu há mais de 2000 anos. A escravidão
e a corrupção do mundo em que vivia, hoje, têm novos rostos e novas vítimas.
Repetem-se as denúncias de que estamos a globalizar a destruição do nosso
planeta, quando temos todos os meios para fazer dele um paraíso, novos céus e nova terra[ix].
Se
estamos mortos, ressuscitemos!
Boa
Páscoa.
[i]
Cf. Henri Fesquet, Fioretti do Bom Papa
João, Morais Editora, Lisboa 1964.
[ii]
Klaus Schwab, A Quarta Revolução
Industrial, Público/Levoir, 2017
[iii] Gaudium et Spes, nº 31
[iv] Le porche du mystère de la deuxième vertu, in Oeuvres poétiques complètes, Gallimard,
1948, pp.169-175
[v] La liberté, pour quoi faire?, Gallimard, 1953,
p. 14
[vi]
Ap 1
[vii]
1 Cor 15
[ix] Ap 21
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