1. Uma biografia procura dar a conhecer
o percurso entre o nascimento e a morte. A possibilidade de observar o desenvolvimento
da vida intra-uterina é relativamente recente. Esta banalidade não pode ser
esquecida na leitura das narrativas em torno da ressurreição de Cristo.
Depois da morte, restam apenas as marcas que o falecido deixou nas suas
obras e na memória dos vivos. No entanto, o imaginário da vida depois da morte sempre
suscitou e alimentou insólitas “histórias” de terror e consolação[1]. Os “mapas” da geografia
do Além e das crenças nos poderes invisíveis são abundantes na originalidade de
cada povo e cultura. Parece que a maioria das pessoas recusa o niilismo. Não
aceita que a morte seja o fim de tudo. No vocabulário cristão, a ressurreição
impôs-se, mas continua a ser difícil exprimir a significação dessa gloriosa metáfora[2].
Quando lemos e proclamamos, na Eucaristia, trechos das chamadas
narrativas da ressurreição de Cristo (cujo facto ninguém presenciou, nem poderia
presenciar), ficamos sempre mergulhados em muitas perplexidades.
Por um lado, no dizer de S. Paulo, se não há
ressurreição, Cristo também não ressuscitou e, se Cristo não ressuscitou,
estamos ligados a nada ou, apenas, à memória do que foi e nunca mais volta.
Recordar o exemplo que Jesus de
Nazaré nos deixou – a figura mais extraordinária da humanidade – deve encher de
alegria crentes, agnósticos e ateus. Para os cristãos, esvaziar a sua
humanidade é um atentado contra a humanização de Deus.
Por outro lado, as narrativas que falam de Jesus depois da
morte enchem-nos de dúvidas e todas as exegeses aumentam as dificuldades. O que
é contado aconteceu de facto, ou não são mais do que criações de uma imaginação
delirante?
Nessa escrita, o verosímil e o impossível parecem constituir
a originalidade do seu tecido. A actuação de Jesus, umas vezes é apresentada à
imagem do que aconteceu durante o seu percurso terreno, noutros casos a
linguagem é de ruptura completa.
Como mostrar que Jesus ressuscitado continua a ser o mesmo
que viveu com os discípulos e que agora vive numa dimensão completamente nova e
indizível? Como pode atingir-nos em todos os tempos e lugares e conviver com
todos os seres humanos de todas as épocas da história?
Os narradores tiveram de recorrer a todos os recursos da
imaginação para exprimir o que supera a nossa experiência intra-histórica. A
linguagem simbólica é muito mais realista do que a linguagem das ciências
empíricas. Quanto mais poético mais real. A música é a sua alma e apenas ela
pode sugerir o que nenhuma linguagem pode conter.
2. Numa pequena
tertúlia, surgiu a opinião de que essa observação era uma escapatória. Agora,
as novas tecnologias oferecem e antecipam algo de muito mais milagroso e
sofisticado do que as peripécias das
narrativas e aventuras sobre a ressurreição.
Como sou uma nulidade acerca das possibilidades das novas
tecnologias, abstenho-me do ridículo de usar as suas linguagens na
interpretação dos textos do Novo Testamento.
Além disso, o uso que a liturgia católica faz desses textos
não é para resolver problemas do passado nem para dar contributos à Quarta
Revolução Industrial[3].
Pretende responder a esta simples questão: Jesus Cristo é ou não nosso
contemporâneo? Umas vezes situamo-lo no passado, naquele tempo, ou no céu, à direita do Pai, numa espécie de férias
prolongadas. Nas próprias orações das missas repete-se Ele que é Deus convosco. O Emmanuel, o Deus connosco, nessas expressões acaba por viver sem nós, situado
no passado ou no “etéreo”. Não admira que as orações dos fiéis andem sempre a informar
Deus acerca daquilo que por cá se passa. Não tem de ser assim.
3. A arte de
entrosar o passado e o presente foi-nos oferecida por S. Lucas[4]. Escreveu um conto – os Discípulos
de Emaús – como se fosse acerca do passado para dizer o que sempre acontece
numa comunidade cristã. Imaginou dois dos discípulos, tristes e desiludidos
pelo que aconteceu ao seu Mestre e sem esperança na ressurreição prometida. O
interessante do conto é que o próprio Jesus entrou no grupo e na discussão do
que tinha sido o seu julgamento. Eles estranham a ignorância e a distracção
deste forasteiro e explicaram-lhe, com todos os pormenores, o que Lhe tinha
acontecido. Este mostra-se muito interessado. Acabam por acrescentar: «é
verdade que algumas mulheres, que são dos nossos, nos assustaram; foram ao
sepulcro e vieram dizer que tiveram umas visões e que Ele está vivo. Os homens
verificaram a narrativa das mulheres, mas não O viram.»
Aí, o forasteiro explicou-lhes que não estavam a entender o
que tinha acontecido. Não se dá por achado e explicou-lhes, a partir das Escrituras,
o que a Esse personagem dizia respeito. Estando os discípulos perto da aldeia
para onde iam, Jesus fez de conta que seguia viagem. Pediram-lhe para ficar com
eles. Ficou e tomou conta da casa e da mesa. Tomou o pão partiu-o, distribuiu-o e deixaram de O ver. O espanto:
enquanto O viram, não O viram. Quando O não viram, reconheceram-no no gesto
eucarístico.
Este é um verdadeiro conto exemplar. Jesus Cristo é o
clandestino da vida humana. Não damos por Ele, mas Ele anda sempre connosco. A
celebração da Eucaristia implica uma ponte entre o quotidiano e a celebração.
Mas sem o acolhimento do desconhecido não acontece nada. Certamente que Jesus
não tinha uma forma especial de partir pão. Mas é Ele que é o pão da vida. A
celebração semanal da Eucaristia serve para não perder a memória de Jesus, a
transformação do presente e a abertura à esperança.
15. 04. 2018
[1]
José Mattoso, Poderes Invisíveis. O
Imaginário Medieval, Círculo de Leitores, 2013
[2]
Cf. Padre Anselmo Borges, O
que é ressuscitar?, DN 06.04.2018
[3]
Klaus Schwab, A Quarta Revolução
Industrial, Lenoir/Público, 2017
[4]
Lc 24, 13-35
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