segunda-feira, 8 de outubro de 2018

HIERARQUIAS CIUMENTAS? Frei Bento Domingues, O.P.


  1. Segui vários cursos sobre as diversas expressões do profetismo bíblico, orientados pelo dominicano Francolino Gonçalves, um dos maiores especialistas mundiais em literatura profética do antigo Oriente[1]. Confesso que esses cursos e a frequente leitura dos seus textos serviram mais para admirar o seu saber e verificar a minha ignorância, do que para me sentir minimamente competente, no meio desse vastíssimo e diferenciado fenómeno de muitos estilos. Na nossa linguagem corrente, profeta é aquele ou aquela que prevê, ou se atreve, a predizer o futuro. Um adivinho. Na Bíblia, é um ser humano que tem o dom divino de ser lúcido acerca do presente, vendo as esperanças e as ameaças que encerra. Sabe discernir as opções que libertam o horizonte das que conduzem ao desastre colectivo. Importa não confundir os verdadeiros com os falsos profetas, isto é, os defensores das populações com os bajuladores dos poderosos.

 No mundo sacral, a religião, com os seus luxuosos cerimoniais, em que vive a classe sacerdotal, serve para dar cobertura à exploração dos trabalhadores e à humilhação dos pobres. Essa religião é vomitada por Deus. Sem a prática da justiça e o cuidado dos pobres, a religião é uma abominação.

O profeta Miqueias, disse o essencial: «Com que me apresentarei ao Senhor, e me prostrarei diante do Deus excelso? Irei à sua presença com holocaustos, com novilhos de um ano? Porventura o Senhor receberá com agrado milhares de carneiros ou miríades de torrentes de azeite? Hei-de sacrificar-lhe o meu primogénito pelo meu crime, o fruto das minhas entranhas pelo meu próprio pecado? Já te foi revelado, ó homem, o que é bom, o que o Senhor requer de ti: nada mais do que praticares a justiça, amares a lealdade e andares humildemente diante do teu Deus.»[2]

2. As liturgias do Domingo não são todas iguais. As escolhas dos textos são muito variadas e ainda bem. A combinação entre elas nem sempre é a mais brilhante. Não digo isto para desculpar as homilias mal preparadas como a daquele pároco que começou a sua pregação com toda a solenidade: o Evangelho de hoje não presta!

No Domingo passado, a selecção dos textos não podia ser mais apelativa, nem mais profética. Abriu com este espanto: «Naqueles dias, o Senhor desceu na nuvem e falou com Moisés. Tirou uma parte do Espírito que estava nele e fê-la poisar sobre setenta anciãos do povo. Logo que o Espírito poisou sobre eles, começaram a profetizar, mas não continuaram a fazê-lo. Tinham ficado no acampamento dois homens: um chamava-se Eldad e o outro Medad. O Espírito poisou também sobre eles, pois contavam-se entre os inscritos e, embora não tivessem comparecido na tenda, começaram a profetizar no acampamento. Um jovem correu a dizê-lo a Moisés: Eldad e Medad estão a profetizar no acampamento. Então Josué, filho de Nun, que estava ao serviço de Moisés desde a juventude, tomou a palavra e disse: Moisés, meu senhor, proíbe-os. Moisés, porém, respondeu-lhe: Estás com ciúmes por causa de mim? Quem me dera que todo o povo do Senhor fosse profeta e que o Senhor infundisse o seu Espírito sobre eles!»[3]

Moisés era considerado o profeta dos profetas, o mais clarividente de todos, mas não julgava que tinha o exclusivo. Era um democrata do profetismo. Quando se fala de democracia na Igreja, fica tudo aflito e, pelas democracias que conhecemos temos de nos render à observação de Churchill « a democracia é a pior forma de governo imaginável, à excepção de todas as outras ».

O sentido da inclusão regressa no Evangelho de Marcos entre a sabedoria e a ameaça. «Mestre, nós vimos um homem a expulsar os demónios em teu nome e procurámos impedi-lo porque ele não anda connosco»[4]. Faziam do discipulado uma propriedade privada: Jesus é só nosso! O Mestre não gostou nada dessa cegueira. Era uma questão de bom senso: quem não é contra nós, é por nós.

Não ficou por aí. Se alguém escandalizar algum destes pequeninos que crêem em mim, melhor seria, para ele, que lhe atassem, ao pescoço, uma dessas mós movidas por um jumento e o lançassem ao mar.

Escandalizar é fazer proliferar o mal de modo incontrolável. Tudo em nós pode servir para o melhor e para o pior. Para grandes males, grandes remédios. Nesta parábola exemplar, não há grande confiança na emenda. A mutilação generalizada de pés, mãos e olhos parece a única saída.

A carta de Tiago é dura como a pregação do profeta Amós. Privastes do salário os trabalhadores que ceifaram as vossas terras. O seu salário clama; os salários dos ceifeiros chegaram aos ouvidos do Senhor do Universo. Ficou para sempre cunhada a expressão: há pecados que bradam aos céus.

3. Estes textos foram lidos na celebração do Domingo passado e suscitam a pergunta: aconteceu alguma coisa nas comunidades católicas?

O grande debate na Igreja, desde o Vaticano II, é o seguinte: Moisés disse o que acima transcrevemos, o desejo de um povo profético, sem exclusivos. Jesus vai na mesma linha e S. Paulo, no seguimento do Baptismo, afirma: não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem e mulher, porque todos vós sois um só em Cristo Jesus[5].

A irritação com o Papa Francisco é o pânico de que ele, apesar de todas as iniciativas para o travar, não desista do seu programa global, A Alegria do Evangelho.

Quando, agora, quer colocar a Igreja numa focagem sinodal, isto é, colocar a Igreja toda num processo de reforma permanente, impedindo uma acção pastoral de mera conservação, envolvendo todas as pessoas, estruturas, estilos e linguagens, vem o susto: ele é capaz de não desistir e, quanto mais idoso fica, mais atrevido se mostra. O receio maior é outro: que o novo papa siga pelo mesmo caminho. Daí, as estratégias e as tácticas para desenvolver um movimento global, com muito dinheiro e meios, para impedirem uma futura eleição que continue o programa de Bergoglio. Essa tentativa já começou, nomeadamente, nos Estados Unidos.

09.10.2018



[1] José Augusto Ramos, Francolino Gonçalves In Memoriam, CADMO 26, 2016, pp 267-270; Cf. os textos de Francolino Gonçalves nos Cadernos ISTA (www.ista.pt), destacando, Iavé, Deus de justiça ou de bênção, Deus de amor e de salvação, nº 22, ano IV (2009), pág. 107-152, pela sua originalidade acerca dos dois Iaveísmos, dentro da multiplicidade dos “retratos” bíblicos de Deus

[2] Mq 6, 6-8
[3] Nm 11, 25-29
[4] Mc 9, 38-48
[5] Gl 3, 28

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