1. Seja em que campo for, ninguém tem boas razões para ser
arrogante ou resignado. Não vimos de nós mesmos e precisaremos sempre dos
outros para existir como humanos. A religião saudável nasce do acolhimento e da
ousadia de imaginar e pensar. O dominicano José Augusto Mourão, professor de
semiótica, dizia que a fórmula Eu
encontrei Deus era obscena. Mas não é menos obscena a declaração do
cientista ao decretar que Deus não existe
por nunca se ter cruzado com ele na sua investigação.
O texto religioso nasce no seio da
interpretação da realidade do mundo em que vivemos e da convicção de que a sua
dimensão empírica não esgota a complexidade do real. Há linguagens que sempre
teimaram em sugerir o que é indizível e invisível nas práticas científicas.
Como diz E. Schillebeeckx, a
auto-revelação de Deus é dada em experiências humanas interpretadas. Nunca
temos acesso à Palavra de Deus de
modo imediato. Estritamente falando, a Bíblia não é a Palavra de Deus, mas um
conjunto de testemunhos de fé de crentes que se situam numa tradição particular
da experiência religiosa.
Para S. Tomás de Aquino, é muito razoável
afirmar que Deus existe, mas saber como Deus é excede a capacidade humana. A preocupação
da boa prática teológica consiste, sobretudo, em mostrar como Deus não é e como é ridículo transpor para Ele os nossos
vícios e aberrações.
A liturgia é uma celebração e a
homilia não é uma aula de teologia. Mas deve haver muito cuidado na leitura e
interpretação dos seus textos bíblicos. O livro
do Apocalipse é a obra poética mais subversiva que conheço e, como observa
Frederico Lourenço, uma das verdadeiras obras-primas literárias da Bíblia. No
fim da missa de Todos os Santos, veio ter comigo uma pessoa a lamentar o destaque
que eu tinha dado a uma passagem desse grande poema. Ela já o tinha tentado ler
e desistiu porque daquele delírio não se podia tirar nada de prático para o quotidiano
da vida cristã.
Só lhe consegui dizer que ela estava
a privar-se do encontro com o alfa e o ómega da terra e dos céus, com o maior desassossego
e a mais alta consolação Daquele que nos ama e liberta dos nossos erros e
pecados. A força simbólica do Apocalipse
é imensamente mais realista do que a escrita directa ou adocicada dos livros de
espiritualidade mais divulgados ou das teologias de pacotilha. Grandes músicos
e pintores – Bach, Messiaen, Miguel Ângelo, entre outros – ouviram e viram os
sons e as cores da jubilosa esperança da incontável multidão vinda de todas as
nações, tribos, povos e línguas, a quem Deus limpará todas as lágrimas!
O Apocalipse é a liturgia dos que descobriram em Jesus Cristo o poeta
cantor da vitória sobre a morte. Quem não acolher este livro, como subversão
poética do convencionalismo doutrinário e dos lugares comuns da didáctica
catequética, que o largue!
O autor do Apocalipse é um anti
derrotista: “Eu, João, vosso irmão e companheiro na tribulação, na realeza e na
perseverança em Jesus, encontrava-me na ilha de Patmos por causa da Palavra de
Deus e do testemunho de Jesus. No dia do Senhor, fui movido pelo Espírito e
ouvi, atrás de mim, uma voz forte (…): «Não tenhas medo! Eu sou o Primeiro
e o Último; Aquele que vive. Estive morto; mas, como vês, estou vivo pelos
séculos dos séculos e tenho as chaves da Morte e do Hades! Escreve,
pois, as coisas que vês, as que estão a acontecer e as que vão acontecer,
depois destas”[1].
Este João não escreveu só o que
estava a acontecer nas sociedades e nas igrejas do seu tempo. Foi mais longe: “vi
um céu novo e uma nova terra. (…) Vi descer do céu, de junto de Deus, a cidade
santa, a nova Jerusalém, já preparada, qual noiva adornada para o seu esposo. E
ouvi uma voz potente que vinha do trono e dizia: Esta é a morada de Deus entre
os homens. Ele habitará com eles; eles serão o seu povo e o próprio Deus estará
com eles e será o seu Deus. Ele enxugará todas as lágrimas dos seus olhos; e
não haverá mais morte, nem luto, nem pranto, nem dor. Porque as primeiras
coisas passaram. O que estava sentado no trono afirmou: Eu renovo todas as
coisas. E acrescentou: Escreve, porque estas palavras são dignas de fé e
verdadeiras”[2].
Não acredito que a morte possa ser o
fim de todos os sonhos de vida, de todos os tempos e lugares. No fim da viagem
Alguém espera por nós.
2. Depois da leitura do Apocalipse
e do canto do Salmo 23, a festa de Todos os Santos tinha ainda, para nos
oferecer, um dos textos mais belos de toda a Bíblia: a 1ª Carta de João. É, pelo menos, a opinião de Federico Lourenço e a
minha.
O seu autor declara, logo no
começo, o motivo desta carta e do seu conteúdo: escrevemos estas coisas para que a vossa alegria seja completa.
Fala dezoito vezes de amor, agápê, amor
da pura generosidade, porque é essa a própria realidade de Deus: “Amados,
amemo-nos uns aos outros, porque o amor é de Deus; e todo aquele que ama nasceu
de Deus e conhece Deus. Quem não ama, não conheceu Deus, porque Deus é amor. Nisto se manifestou o amor
de Deus em nós: no facto de Deus ter enviado ao mundo o seu Filho Unigénito,
para que vivamos n’Ele. Nisto está o amor: não porque nós amamos a Deus, mas
porque Ele nos amou e enviou o seu Filho como propiciação pelos nossos pecados.
Amados, se Deus nos amou assim, também nós nos devemos amar uns aos outros”[3].
Que bom saber e sentir: “o admirável
amor que o Pai nos consagrou em nos chamar filhos
de Deus e somo-lo de facto”[4].
3. Esta festa de Todos os Santos é coroada pela narrativa das Bem-Aventuranças, segundo S. Mateus. É a
súmula de toda a pregação de Jesus. Proclama que não estamos condenados a
sofrer um mundo como ele está. Bem-aventurado quem começar já, a partir da
situação em que se encontra, a trabalhar para um mundo outro. Não somos os
eternos condenados ao exílio da infelicidade. Este poema é, por isso, uma
convocatória a não nos rendermos à maldição presente do uso despudorado do nome
de Deus. Um deus que manda odiar e matar, ao modo das piores passagens do
Antigo Testamento, de alguns terríveis momentos da história da Igreja e de
certas correntes e práticas do islamismo actual, esse deus que se mate. Mas não
é tudo. Ver crescer movimentos religiosos, com nome cristão, a proporem “como
evangelistas” um anti-Evangelho, e o absoluto contrário das Bem-Aventuranças,
exige que rezemos como Mestre Eckhart: Deus, livra-me desse deus.
11.11.2018
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