1. Creio que toda a gente tem muito a
ver com a Semana Santa. Explico: os católicos fervorosos podem lamentar que,
num país onde a maioria da população se exprime como católica (cerca de 80%),
aproveite o Natal, a Páscoa, os Domingos e festas de santos para descanso,
desporto, viagens, segundo as possibilidades económicas de cada um, e muito
pouco para celebrar e aprofundar o conhecimento da sua própria fé.
Esses
católicos só têm razão até certo ponto. Não esqueçamos que o Novo Testamento
estabeleceu uma grande polémica em torno da prática judaica sacralizada do sábado. Uma das narrativas míticas da
criação está organizada para que, no sétimo dia, até Deus descanse[1]. Não podia haver táctica
melhor do que esta: colocar o seu Deus como exemplo do que todos os crentes
deviam cumprir. Se os textos do Novo Testamento são tão duros com essa
sacralização, não era por causa de serem dias de descanso e oração. O que levou
o judeu, Jesus de Nazaré, a provocar os seus concidadãos, fazendo o que estava
proibido ao sábado, não era por desprezo do dia consagrado ao descanso, mas por
terem transformado, numa prisão, um marco civilizacional da liberdade.
O ser
humano não pode ser um escravo do trabalho. Há muitas outras dimensões da vida
que é preciso atender e às quais é preciso dar oportunidades. Não esqueçamos
que o projecto de Jesus surge como projecto de libertação, sobretudo dos
doentes, dos pobres e das mulheres que não contavam para nada na sociedade do
seu tempo.
Essa
actividade de Jesus tinha, também, uma motivação teológica: o sábado não podia
ser o dia de tolher a vida humana e as expressões da sua liberdade. Se era o
dia de Deus, tinha de ser o melhor dia do ser humano, a festa da humanidade.
Deus não podia tolerar que, em seu nome, se impedisse a alegria.
Se Jesus
escolhia, sobretudo, esse dia e a Sinagoga para as curas, não era para
aborrecer os judeus mais ortodoxos e ritualistas. Era para que esse dia, ao
fazer bem aos seres humanos, revelasse o que era a verdadeira glória de Deus, o
seu autêntico louvor.
Os
fariseus insistiam em dizer que Jesus não podia ser um homem de Deus, pois não
observava o sábado. O Quarto Evangelho, dito de S. João, vai ao ponto de
colocar na boca do Nazareno algo de terrível, de blasfemo: o meu Pai trabalha sempre e eu também[2]. O texto acrescenta: por
isto os judeus ainda mais o procuravam matar porque não só anulava o sábado,
mas até se atrevia a chamar a Deus seu próprio pai, fazendo-se, assim, igual a
Deus. Em S. Marcos, declara o sentido antropológico desta instituição
religiosa: o sábado foi feito para o ser
humano e não o ser humano para o sábado[3]. Deus é glorificado na
alegria das suas criaturas.
A chamada
Semana Santa é a transformação de uma semana criminosa, assassina, no
testemunho maior da existência humana: Pai,
perdoai-lhes porque não sabem o que fazem. Jesus, ao pedir vida para os que
lhe davam a morte, ressuscitou-os na sua própria alma.
2. António Marujo[4] fez uma magnífica
reportagem sobre alguns assuntos debatidos no Terra Justa – Encontro
Internacional de Causas e Valores da Humanidade –, em Fafe (3-6 de
Abril.2019), destacando a campanha pelo domingo livre de trabalho e pela saúde
como direito humano.
A presidente do Movimento Mundial de
Trabalhadores Cristãos (MMTC), Fátima Almeida, defendeu que é preciso voltar a
fazer campanha pelo domingo livre, para trabalhos e serviços que não são
necessários nesse dia. Não se trata de fazer isso por causa da missa, mas “pelo
encontro, pela família e os amigos, para dedicar tempo à cultura, à vida para
além do trabalho, como diz o Papa”.
Ao dizer isto, não é contra a missa, mas
para destacar o valor humano de uma festa religiosa para religiosos e não
religiosos. A verdadeira religião não abafa, pelo contrário, expande a vida e
os verdadeiros valores de todos. Na interpretação cristã, é desta forma que se
dá glória a Deus.
Como já dissemos, o projecto de Jesus
implicava a libertação da doença, o dom da saúde para todos. Ora, neste
encontro, o dia 5, tinha sido dedicado à homenagem ao Serviço Nacional de Saúde
(SNS), através de dois dos seus rostos mais importantes: António Arnaut, que o
criou há 40 anos e morreu em 2018, e Francisco George que, enquanto
director-geral de Saúde, foi um dos seus principais responsáveis nestes 40
anos. Hoje, tudo mudou e as estatísticas colocaram Portugal entre os 12
melhores do mundo nos cuidados de saúde, mas o sistema sofre as dores do
crescimento. Numa das Conversas, Francisco George destacou: “É preciso reduzir desigualdades,
mas a principal desigualdade e o risco mais importante no acesso à saúde é a
pobreza. Estamos muito melhor do que em 1974, mas é preciso distribuir melhor”.
3. Com a exaltação do valor humano da
religião autêntica e do alcance divino dos valores verdadeiramente humanos não
se está a desvalorizar as expressões simbólicas e rituais das religiões. O que
se pretende é que estas não estraguem o que pretendem e devem defender. As
instituições religiosas não são por causa da religião, mas por causa de certas
dimensões da vida humana que o quotidiano tende a esquecer. Voltamos à sentença
de Cristo: o sábado foi feito para
o ser humano e não o ser humano para o sábado.
Uma das
grandes tarefas das lideranças da Igreja – bispos, párocos e congregações religiosas
– consiste em ajudar as pessoas a
perceber o que perdem se não aprofundarem o sentido das celebrações da fé e o
que ganham quando são fiéis ao seu espírito e finalidade.
Não adianta
muito insistir no que está mandado ou proibido, quanto a práticas religiosas. Importa
que se tornem apetecíveis pela sua beleza e sobriedade. Que falem à
sensibilidade, ao coração e à inteligência. Que nos comovam.
Quanto à
Semana Santa, existem vários tipos de recuperação das tradições e da qualidade
das celebrações marcadas pelas exigências do Vaticano II. O turismo religioso
explora tradições. A liturgia viva procura uma linguagem de beleza que mostre a
urgência de nascer de novo[5]. Só podemos saber se
celebramos a Páscoa, se crescer em nós a vontade de servir aqueles que precisam
da nossa dedicação: sabemos que passamos
da morte para a vida porque amamos os irmãos[6].
14. Abril. 2019
[1]
Gn 2, 1-3
[2]
Jo 5, 1-17
[3]
Mc 2, 27-28
[4]
7Margens (jornal online),
07.Abril.2019
[5]
Jo 3
[6]
1Jo 3, 14
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