domingo, 12 de maio de 2019

UM DOMINICANO PORTUGUÊS NO PERU Frei Bento Domingues, O.P.


1. Tenho uma grande dívida em relação a frei Henrique Urbano. Já fiz, neste jornal, breves referências a esta figura extraordinária, mas sempre com a ideia de lhe dedicar uma crónica[1]. Nasceu em Portugal, em Fermentelos, a 27 de Setembro de 1938. Frequentámos juntos, alguns anos, a Escola Apostólica de Aldeia Nova e o Studium Sedes Sapientiae, em Fátima, nos anos 50 do século passado. Era músico, poeta e apaixonado pelas Ciências Humanas.

Em Montreal (Canadá), fez um Mestrado sobre as relações entre Sociologia e Teologia Pastoral. Ainda antes do Doutoramento, já tinha entrado, a tempo inteiro, no Departamento de Sociologia da Universidade de Laval, onde ensinou até à sua jubilação, a 30 de Maio de 1999. Doutorou-se nessa Universidade em Sociologia, com uma tese sobre Mythes et utopies, no mundo inca.

Além do trabalho na Universidade e de acordo com ela, foi-lhe possibilitada uma carreira paralela, na América Latina. Com outros dominicanos que tinham sido meus colegas em Toulouse, durante um trimestre de cada ano e nos anos sabáticos, trabalhou na fundação e no desenvolvimento do Centro de Estudios Regionales Andinos “Bartolomé de Las Casas”, em Cuzco (Peru), com apoio financeiro de várias organizações canadianas. Dirigiu, durante vários anos, a Revista Allpanchis sobre questões sociológicas e antropológicas andinas e fundou a Revista Andina, com colaboração internacional, considerada então como a melhor revista de estudos neste domínio. Promoveu os estudos latino-americanos na Universidade Laval, dirigiu várias teses de Mestrado e de Doutoramento e organizou colóquios no Canadá e outros países. Coordenou intercâmbios entre a Universidade Laval e diversas instituições da América Latina durante vários anos.

Além deste Centro de Investigação, fundou a Casa Campesina, para ajudar os camponeses que precisavam de quem os guiasse na administração e na saúde, quando vinham à cidade. Fundou também o Colégio Andino, onde se ministravam cursos sobre todos os problemas latino-americanos.

Seria importante desenhar o contexto político e eclesial em que foi fundado e se desenvolveu esse complexo Centro, a começar pela reforma agrária de Juan Velasco Alvarado, passando pelo Sendero Luminoso, do maoísta e terrorista Abimael Guzmán e pela Teologia da Libertação de Gustavo Gutierrez que, mais tarde, se tornou dominicano.

2. Entrei nesse mundo em 1992, a partir de um Congresso Internacional, no México, promovido pelo Centro Bartolomé de Las Casas de Cuzco, para o qual me pediram uma conferência sobre Teologia nas Fronteiras. Aí, ficou decidido que eu passaria a ir, anualmente, dar aulas de Teologia da inculturação nesse Centro. Entretanto, verificou-se a urgência de fundar um Instituto com o objectivo de diálogo activo entre ciências humanas e teologia, complementando o trabalho desenvolvido nesse Centro.

Trabalhei anos a fio em Santiago do Chile, na fundação e configuração do Instituto Pedro de Córdoba. O nome deste dominicano foi escolhido porque tinha sido o responsável pelo célebre sermão de Montesinos (1511), em defesa dos índios explorados, na ilha La Española (actualmente Haiti e República Dominicana).

Foi por causa da minha colaboração nesses Centros que, depois, fui convidado para dar cursos na Colômbia e na Argentina.

No ano 2000, quando se dá um crescimento muito significativo da indústria do turismo, Henrique Urbano iniciou as suas actividades na Universidade de São Martinho de Porres (USMP Lima-Peru). Foi designado director do Instituto de Investigação de Turismo e Hotelaria que estabeleceu um Programa de cooperação com várias universidades estrangeiras, sobretudo do mundo ibero-americano. Obteve para a Universidade de São Martinho, a cátedra da UNESCO, Cultura, Turismo e Desenvolvimento. Fundou a revista Turismo e Património e foi o criador e primeiro director do Programa de Doutoramento em Turismo (2002), único na América Latina, com estudantes peruanos e estrangeiros.

3. Foi com surpresa que o meio intelectual internacional ligado aos estudos andinos recebeu a notícia da morte do investigador português, Henrique Oswaldo Urbano de Carvalho, que se destacou como etno-historiador, antropólogo e sacerdote dominicano. A sua partida aconteceu em Lima, Peru, a 24 de Setembro de 2014.

Em 2016, para recordar e homenagear a sua vida e obra (1938-2014), foi publicada a Historia y Cultura en el Mundo Andino, editada por Johan Leuridan Huys, Decano da USMP, e por outras personalidades, representantes de várias instituições académicas. Esta obra traz novas luzes sobre os contributos de frei Henrique e analisa, com detalhes antes desconhecidos, as marcas deixadas pelo grande investigador português, sobretudo na renovação dos estudos andinos e sobre as crónicas e a evangelização colonial no Peru[2].

Segundo o In Memoriam Henrique Urbano, assinado pelos professores Simon Langlois, Nicole Gagnon, Alexandra Areliano e Jean Gould, «além do seu trabalho de cientista rigoroso, deixa a recordação de um homem sempre sorridente, uma personalidade cativante, mostrando uma atitude positiva contagiante e sempre de um humor muito próprio. De espírito imaginativo e algo poético, produziu uma obra de língua subtilmente cáustica, marcada por um olhar crítico muitas vezes mordaz. Na sua carreira universitária, em Laval e em outras Universidades, deixou muitos discípulos e profundas e generosas amizades».

Não podemos reproduzir, aqui, a vasta bibliografia de frei Henrique, mas quem desejar conhecê-la pode sempre recorrer ao Google.

Era uma lei sagrada do monge: fica na tua cela e ela ensinar-te-á tudo. Com o aparecimento dos Dominicanos e Franciscanos, no século XIII, Mateus de Paris, monge, observa: para estes o mundo é a sua cela e o oceano o seu claustro. Frei Henrique pertencia a essa nova era da vida religiosa.



12.05.2019



[1] Dediquei-lhe a conferência de encerramento do Colóquio Rastos Dominicanos: de Portugal para o Mundo (09-11 de Outubro 2018).
[2] Sobre a originalidade da investigação de Henrique Urbano, ver Germán Morong Reyes y Alberto Díaz Araya, Henrique Urbano (1938-2014): De los ciclos Míticos Andinos a los senderos de la idolatría colonia, in Chungara, Revista de Antropologia Chilena, Vol. 47 (2015), 7-11.

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