De súbito, o homem do
quiosque de Lisboa a quem eu pedira os meus jornais habituais interpelou-me:
- O senhor é do Norte, não é?
Respondi-lhe que não, que
nasci na Bairrada e que resido há quase 40 anos em Coimbra. Fitou-me perplexo.
Logo compreendi que do ponto de vista de Lisboa tudo o que fique para cima de
Caneças pertence ao Norte, uma vaga região que desce desde a Galiza até às
portas da capital. Foi a minha vez de indagar porque é que me considerava
oriundo do Norte. Respondeu de pronto que era pela forma como eu falava,
querendo com isso significar obviamente que eu não falava a língua tal como se
fala na capital, que para ele, presumivelmente, não poderia deixar de ser a
forma autorizada de falar português. Foi a primeira vez que tal me aconteceu.
Julgava eu que falava um português padrão, normalmente identificado com a forma
como se fala "grosso modo" entre Coimbra e Lisboa e cuja versão
erudita foi sendo irradiada desde o século XVI pela Universidade de Coimbra,
durante muitos séculos a única universidade portuguesa. Afinal via-me agora
reduzido à patológica condição de falante de um dialecto do Norte, um desvio
algo assim como a fala madeirense ou a açoriana. Na verdade - logo me recordei
-, não é preciso ser especialista para verificar as evidentes particularidades
do falar alfacinha dominante. Por exemplo, "piscina" diz-se
"pichina", "disciplina" diz-se "dichiplina". E a
mesma anomalia de pronúncia se verifica geralmente em todos os grupos
"sce" ou "sci": "crecher" em vez de
"crescer", "seichentos" em vez de "seiscentos", e
assim por diante.O mesmo sucede quando uma palavra terminada em "s" é
seguida de outra começada por "si" ou "se". Por exemplo, a
expressão "os sintomas" sai algo parecido com "uchintomas",
"dois sistemas" como "doichistemas". Ainda na mesma linha a
própria pronúncia "de Lisboa" soa tipicamente a
"L'jboa".Outra divergência notória tem a ver com a pronúncia dos
conjuntos "-elho" ou" -enho", que soam cada vez mais como
"-ânho" ou "-âlho", como ocorre por exemplo em
"coelho", "joelho", "velho", frequentemente ditos
como "coâlho", "joâlho" e "vâlho". Uma outra tendência
cada vez mais vulgar é a de comer os sons, sobretudo a sílaba final, que fica
reduzida a uma consoante aspirada. Por exemplo: "pov'" ou
"continent'", em vez de "povo" e de "continente".
Mas essa fonofagia não se limita às sílabas finais. Se se atentar na pronúncia
da palavra "Portugal", ela soa muitas vezes como algo parecido com "P'rt'gâl".O
que é mais grave é que esta forma de falar lisboeta não se limita às classes
populares, antes é compartilhada crescentemente por gente letrada e pela
generalidade do mundo da comunicação audiovisual, estando por isso a
expandir-se, sob a poderosa influência da rádio e da televisão. Penso que não
se trata de um desenvolvimento linguístico digno de aplauso. Este falar
português, cada vez mais cheio de "chês" e de "jês", é
francamente desagradável ao ouvido, afasta cada vez mais a pronúncia em relação
à grafia das palavras e torna o português europeu uma língua de sonoridade
exótica, cada vez mais incompreensível já não somente para os espanhóis (apesar
da facilidade com que nós os entendemos a eles), mas inclusive para os
brasileiros, cujo português mantém a pronúncia bem aberta das vogais e uma
rigorosa separação de todas as sílabas das palavras. A propósito do português
do Brasil, vou contar uma pequena história que se passou comigo. Na minha
primeira visita a esse país, fui uma vez convidado para um programa de
televisão em Florianópolis (Santa Catarina). Logo me avisaram que precisava de
falar devagar e tentar não comer os sons, sob pena de não ser compreendido pelo
público brasileiro, que tem enormes dificuldades em compreender a língua comum,
tal como falada correntemente em Portugal. Devo ter-me saído airosamente do
desafio, porque, no final, já em "off", o entrevistador comentou:
"O senhor fala muito bem português." (Queria ele dizer que eu tinha
falado um português inteligível para o ouvido brasileiro.) Não me ocorreu
melhor do que retorquir:- Sabe, fomos nós que o inventámos...Por vezes conto
esta estória aos meus alunos de mestrado brasileiros, quando se me queixam de
que nos primeiros tempos da sua estada em Portugal têm grandes dificuldades em
perceber os portugueses, justamente pelo modo como o português é falado entre
nós, especialmente no "dialecto" lisboetês corrente nas estações de
televisão. Quando deixei o meu solícito dono do quiosque lisboeta do início
desta crónica, pensei dizer-lhe em jeito de despedida, parafraseando aquele
episódio brasileiro: -Sabe, a língua portuguesa caminhou de norte para
sul...Logo desisti, porém. Achei que ele tomaria a observação como uma piada de
mau gosto. Mas confesso que não me agrada nada a ideia de que, por força da
força homogeneizadora da televisão, cada vez mais portugueses sejam
"colonizados" pela maneira de falar lisboeta. E mais preocupado ainda
fico quando penso que nessa altura provavelmente teremos de falar em inglês
para nos entendermos com os espanhóis e - ai de nós! - talvez com os próprios
brasileiros...
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