domingo, 22 de dezembro de 2019

O PAPA NÃO PODE FAZER TUDO SOZINHO Frei Bento Domingues, O.P.


1. O Papa fez, no passado dia 17, 83 anos. Não precisa nada dos meus parabéns. Sou eu, como membro da Igreja Católica, que preciso de lhe exprimir, publicamente, o agradecimento por ele estar a realizar, na linha de João XXIII e do Vaticano II, uma viragem, espantosa a muitos títulos, no pontificado romano. Tão admirável que eu nunca supus chegar a ver antes de morrer.

Há quem diga que os seus desejos de reformas nunca se concretizam, em modificações reais, quanto à orientação e às práticas efectivas no governo da Igreja Católica. Não partilho nada essa opinião. Não é só pelas muitas medidas, como agora esta da abolição do abominável “segredo pontifício” a que o Público deu o devido destaque[1]. A sua intervenção destina-se a criar condições que tornem irreversível o próprio processo de reformas e não se extinga com o seu pontificado.  

O que Bergoglio não faz, nem deve procurar fazer, é substituir-se às comunidades cristãs. É a elas que pertence garantir, por actos, palavras e iniciativas, a expressão fiel da presença actuante do Espírito de Cristo na complexidade do mundo contemporâneo.

 Não se pode deixar tudo para o Papa como se ele não tivesse, desde o começo, recusado continuar um regime de monarquia absoluta! Mas, quem está disposto a participar na mobilização multifacetada de voluntárias e voluntários preocupados com a revitalização das comunidades cristãs, sobretudo quando parecem ressequidas ou estéreis? Sem convocatórias locais, é difícil criar movimentos que suscitem uma nova cultura de serviço que substitua as muitas artes de dominação económica, política e religiosa, cujas redes são cada vez mais abrangentes.  

 Se existem cegos que não reconhecem as inovações de Bergoglio, também não faltam os indignados poderosos por ele já ter ido longe demais. A verdade é que abriu uma grande clareira, destapou o horizonte e abriu um caminho à liberdade criadora, tantas vezes impedida, mesmo num passado recente.  

Vários amigos, de diversas zonas do país, lamentaram que eu tivesse esquecido, na crónica do passado Domingo, a situação inquietante das lideranças locais de muitas paróquias e dioceses, que seriam responsáveis pelo afastamento crescente da população católica das próprias celebrações da fé cristã! Não esqueci. Sou testemunha dessa debandada, para a qual o próprio Papa alertou os bispos portugueses.

Dizer que se trata de um fenómeno irreversível das sociedades actuais não responde à questão mais pertinente: o que se pode fazer e não se faz para transformar o afastamento numa nova e activa aproximação?

2. Um inquérito, na diocese de Aveiro, revela que, desde 2001, a prática dominical caiu 44 por cento, isto é, nos últimos 18 anos, quase 30 mil pessoas deixaram de ir à missa dominical.

O coordenador da pastoral da Diocese, Padre Licínio Cardoso, numa entrevista à Agência Ecclesia[2], para a qual remeto, deu a sua interpretação dos números que estariam, em parte, relacionados com a demografia, com a taxa de natalidade: é visível a existência de assembleias cada vez mais envelhecidas. Mas a quebra populacional não explica tudo e considera fundamental um trabalho de recuperação, a vários níveis, a começar pela formação cristã. Enumera um conjunto de medidas pastorais para alterar a situação.

A diocese de Aveiro está a viver, até 2021, um triénio dedicado à temática da vocação e o próximo ano pastoral será precisamente dedicado à vocação da família. A intenção é ter uma vida cristã menos centrada em doutrinas, em estruturas e tradições, mas uma vocação voltada para a descoberta de Jesus, querendo dedicar uma atenção redobrada a outras realidades que influenciam a vida das famílias cristãs na cultura actual.

Segundo o P. Licínio, hoje, a nossa linguagem sacramental não tem impacto nas pessoas, porque as pessoas desconhecem essa linguagem. Temos uma linguagem sacramental muito associada ao moralismo, de quem pode e quem não pode, de quem é regular ou de quem é irregular. Defende a importância de reinventar a linguagem pastoral, mas sem com isso pôr em causa o que é essencial, o sentido da fé, dos sacramentos e da liturgia.

São observações sensatas, mas, perante os dados do inquérito referido, não evitam a pergunta: que andaram a fazer os padres e colaboradores leigos, antes e depois de 2001?

O Arcebispo de Braga, D. Jorge Ortiga, fixou-se sobretudo na impossibilidade de assegurar a celebração da Eucaristia dominical em todas as paróquias da Diocese. Segundo as estatísticas diocesanas, «os padres diminuem e a idade aumenta. Não poderemos continuar na lógica de ter um padre por cada paróquia». Mesmo com três paróquias por cada pároco, não se consegue celebrações dominicais em todas.

D. Ortiga tem razão quando diz que a Igreja insiste demasiado na obrigação da prática dominical, para a qual, no entanto, propõe hipóteses de caminhos alternativos: a articulação com as missas vespertinas, a celebração dominical na ausência do presbítero, confiando a presidência a leigos devidamente preparados; e, não menos importante, a efectiva articulação das unidades pastorais e consequente deslocação dos fiéis dentro das mesmas. Estes remédios não conseguem remediar o irremediável: não há celebração da Eucaristia sem padres e os padres são cada vez menos. Destacou algo importante: é preciso não confundir a prática da vida cristã com a obrigação da prática dominical. Mas não diz como é que se articula a multifacetada prática da vida cristã e as celebrações da fé. Muitos se queixam que as missas e os outros sacramentos se transformaram num vergonhoso negócio.

3. Enquanto não se abrir o regime de presidência da Eucaristia, a homens e mulheres, casados ou solteiros, devidamente preparados e ordenados, são tudo remendos em pano velho que se rasga por todo o lado. A celebração da Eucaristia e dos outros sacramentos pressupõe uma condição essencial: a construção de comunidades vivas que articulem o empenhamento na sociedade civil com as celebrações da fé cristã.

A problemática sacramental da Amazónia está em toda a Europa. É, talvez, a teimosia de muitas conferências episcopais e a resistência das faculdades de Teologia da Igreja católica em debater estas questões a fundo, como fez Edward Schillebeeckx, que impedem de ver o que está à vista.

Na Europa, o clero parece uma espécie em extinção. Talvez um exagero. Foram reconhecidas, pelo Vaticano, as virtudes heróicas do Padre Américo (1887-1956). É bom que se diga porque as novas gerações já não sabem quem foi esse padre extraordinário, que devia ser espelho de todos os padres. Antecipou, no século passado, a Igreja em saída para as periferias: as crianças abandonadas, os pobres e os moribundos sem família. Esta espécie é que parece em extinção.

Boas Festas!



22. 12. 2019



[1] Público, 18. 12. 2019
[2] Cf. Igreja Aveirense, Ano XV, nº1, pp. 86-91

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