1. Para acabar com o
clericalismo que o Papa Francisco tantas vezes tem denunciado, importa
desconstruir a eclesiologia que o produz e fundamenta. Sem esse trabalho, a concepção
de Igreja do Direito canónico, que vigorou desde 1917 até 1983, desde Pio X até
ao Vaticano II, reaparecerá quando menos se espera. Nessa eclesiologia o clero era
tudo, tinha a primeira e a última palavra. Ao laicado restava-lhe ouvir, obedecer
e sustentar o clero.
Nunca faltaram minorias para contestar esse culto da
passividade perante uma hierarquia que se julgava omnisciente e omnipotente em
nome de Deus[1].
Sem a desconstrução desse mundo de fantasias e
práticas autoritárias, é impossível encontrar o que é essencial, o que é
secundário e o que é de rejeitar na caminhada cristã. Sem essa redescoberta, continuaremos
a construir sobre a areia, a alimentar ilusões com novas embalagens religiosas
de produtos de fraca qualidade.
O Vaticano II iniciou, oficialmente, essa
desconstrução, essa tentativa de encontro com o essencial da fé cristã. Ficou muito
aquém do que era necessário e ainda nem sequer foi interiorizada a grandeza da sua
mudança de perspectiva e de conteúdo.
No trabalho de desconstrução, D. António Ferreira
Gomes, nas Cartas ao Papa[2],
lembrou que um bispo português – Frei Bartolomeu dos Mártires – tinha proposto,
no Concílio de Trento, uma eminentíssima
e reverendíssima reforma dos cardeais. D. António disse que isso já não
bastava. Toda a reforma será baldada se
não incluir o desaparecimento da função cardinalícia. Esta merece um bom
funeral.
Depois de tanta exortação à reforma dos cardeais, da
cúria, Bergoglio talvez venha a reconhecer a perspicácia da proposta radical do
antigo Bispo do Porto.
Santo Agostinho encontrou o rumo certo: «Atemoriza-me o que sou para vós; consola-me o que
sou convosco. Pois para vós sou Bispo; convosco sou cristão. Aquilo é um dever;
isto, uma graça. O primeiro é um perigo; o segundo, a salvação».
Tomás
de Aquino, na Summa Theologiae[3],
foi directo ao essencial, ao que ainda continua ignorado na prática
pastoral, sacramental e litúrgica: «o que há de mais poderoso na lei do Novo
Testamento e, no qual, consiste toda a sua energia é a graça do Espírito Santo
que é dada pela fé em Cristo. A Lei Nova é principalmente a graça do Espírito
Santo». Tudo o resto é só para apoiar e exprimir esta centralidade.
Ele
próprio lembra a 2ª Carta aos Coríntios – a
letra mata, o espírito vivifica – assim como o comentário de Santo
Agostinho: «por letra entende-se todo o texto escrito, objectivamente existente
fora de nós, inclusive os preceitos morais contidos no Evangelho; mataria
também a própria letra do Evangelho se, interiormente, não estivesse presente a
graça da fé».
Segundo a Carta
aos Hebreus, Jesus era em tudo semelhante aos seus irmãos para ser um sumo-sacerdote
misericordioso e fiel no serviço de Deus[4].
Estes irmãos de Cristo participam do seu sacerdócio. Como também diz o primeiro
Papa, S. Pedro, «Vós
sois linhagem escolhida, sacerdócio real,
nação santa, povo adquirido por Ele»[5].
O culto dos irmãos de
Cristo sacerdote foi expresso na Carta
aos Romanos: exorto-vos, irmãos, pela misericórdia de Deus, a que ofereçais
os vossos corpos como sacrifício vivo, santo, agradável a Deus. Seja este o
vosso verdadeiro culto, o espiritual[6].
Na Carta aos Gálatas, Paulo é ainda mais acutilante: «Todos vós sois
filhos de Deus em Cristo Jesus, mediante a fé; pois todos os que fostes
baptizados em Cristo revestistes-vos de Cristo mediante a fé. Não há judeu nem
grego; não há escravo nem livre; não há homem e mulher, porque todos sois um só
em Cristo Jesus[7].
2. Esta
é a verdadeira eclesiologia de comunhão. A diferença natural entre homens e
mulheres não é abolida no renascimento simbolizado pelo baptismo, mas em Cristo
os homens não são mais cristãos do que as mulheres, não são mais sacerdotes do
que as mulheres. No Novo Testamento, o vocabulário sacerdotal é exclusivo de
Cristo e dos irmãos de Cristo, sejam homens sejam mulheres.
Os ministérios, isto é, os
serviços da comunidade cristã, não são designados como sacerdotais. Com o
desenrolar da história da Igreja, confiscaram o vocabulário sacerdotal para os
presbíteros e para os bispos. Na realidade, só podem ser designados como sacerdotes
indirectamente: estão ao serviço do povo sacerdotal de Cristo.
A Lumen Gentium, nº 10, reconhece «o sacerdócio comum dos fiéis e o
sacerdócio ministerial ou hierárquico, embora se diferenciem essencialmente e
não apenas em grau, ordenam-se mutuamente um ao outro; pois um e outro
participam, a seu modo, do único sacerdócio de Cristo».
A desgraça é que o segundo
passou a ser o principal. E o principal, o sacerdócio comum dos fiéis, passou
para segundo plano ou completamente esquecido. O clero confiscou a realidade sacerdotal
de todo o povo cristão por causa de uma distinção real, mas formulada de forma
ambígua. A liturgia eucarística é obra de toda a comunidade e não, apenas, dos
padres e dos bispos. A todos pertence tornar visível, palpável, sensível a
presença invisível de Cristo nas celebrações. Ninguém faz as vezes de Cristo,
ninguém O substitui.
3. Como observa o grande eclesiólogo dominicano já
citado, Hervé Legrand, «é difícil negar que, ao longo da história, se tornaram
sobreavaliados teologicamente os efeitos da ordenação. Descreve-se o “sacerdote”
como outro Cristo, mediador entre Deus e os homens e “sacerdote” para a
eternidade». Referindo-se a Jean-Jacques Olier, transcreve algo verdadeiramente
delirante: os chamados sacerdotes são «as fontes fecundas inesgotáveis de todas
as graças; tudo o que se realiza de santo, de grande e de divino, na Igreja,
emana deles e opera pelo seu santo ministério. O sacerdote participa com o Pai
e com o Filho no poder de enviar o Espírito Santo ao mundo».
A Lumen Gentium tentou reequilibrar eclesiologias quase opostas. Esta
reconstrução precisa de ser refeita. De outro modo, esbarramos com as dificuldades
e as confusões que não foram superadas na Carta sobre o Sínodo da Amazónia.
Temos que voltar a este assunto.
23. 02. 2020
[1] Hervé
Legrand, Abusos sexuales y clericalismo,
in Selecciones de Teología, Vol. 58 (2019), nº 232, 362-370
[2] Cartas
ao Papa, Figueirinhas, Porto , 2ª edição 1987, Carta XII, 241-250
[3] I-II q.
106-108
[4] Hb 2, 14-18
[5] 1Pd 2, 9
[6] Rm 12, 1
[7] Gal 3, 27-28
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