1. Algumas Igrejas cristãs –
católica, ortodoxa, anglicanas, luterana – fazem preceder a Páscoa de um grande
retiro, a Quaresma, para vincar que as «cerimónias litúrgicas», sem a
transformação da vida, são uma mentira.
Os rituais e tradições da
Quaresma podem ser muito diferentes de continente para continente, de país para
país e mesmo dentro de cada país, as expressões, sobretudo as da Semana Santa, podem
revestir aspectos que uns consideram fidelidade à religião popular e outros
apreciam-nas como folclore bizarro para turistas do insólito. Também não falta
quem as denuncie como traições à pureza da fé cristã.
Certas tradições foram
esquecidas, outras alteradas e são, agora, em muitos casos, objecto de investigação
histórica e até de reconstrução etnográfica. Não convém esquecer que foram, por
vezes, modos muito criativos de inculturação popular da fé cristã, mais ou
menos ortodoxa. O mundo rural em que nasceram e se desenvolveram ou já não
existe ou existe de forma tão precária, que as reconstituições parecem
sobretudo trabalho de arqueologia da memória. Em algumas zonas do país, onde o
clero não impôs a sua ortodoxia oficial, ainda hoje são fiéis às expressões da
fé que os alimentaram durante séculos[1].
A reflexão sobre a
inculturação do cristianismo tem sido, nos últimos anos, mais pensada do que
realizada. Ainda recentemente se falou muito de um novo rito católico para a
Amazónia, mas continua por concretizar.
A reforma litúrgica do
Vaticano II teve e tem muitos méritos e virtualidades, mas talvez tenha sido
demasiado “higiénica”. Preocupou-se, e bem, com a participação dos fiéis que
não pode reduzir-se à tradução dos textos litúrgicos e dos regulamentos rituais.
Não teve em conta que esta exige um processo de inculturação responsável e
criativa que não pode realizar-se nas costas das comunidades cristãs.
A Quaresma deve ensaiar o
encontro com o essencial da fé cristã e com as suas diversas expressões
simbólicas e éticas de recriação da existência humana. O esquecimento da
distinção prática entre o essencial e o secundário, na vida e nas expressões da
fé cristã, conduz a impasses na prática pastoral, como se acaba de verificar
com o sínodo da Amazónia realizado no Vaticano.
2. A essa distinção já me
referi nas últimas crónicas, embora com propósitos diferentes. Neste sentido,
convém ter em conta o exemplo de S. Tomás de Aquino. Este filósofo, teólogo e
poeta elaborou um guião para os que iniciavam os estudos teológicos que
dá pelo nome de Suma de Teologia, uma obra imensa que não pôde concluir.
O ambiente universitário vivia sobretudo das chamadas questões disputadas, mas
a floresta dessas questões era tão vasta que os principiantes perdiam-se nos
seus labirintos. Ao professor competia ensinar a ler e interpretar os textos
sagrados e os textos da cultura filosófica e científica da época. A discussão
académica não se podia contentar em repetir o credo cristão. Uma teologia da
repetição não respondia à questão essencial: como é que é verdade aquilo que
confessamos no credo? Sem isto, os fiéis que repetem o credo estão na
verdadeira fé, mas de cabeça vazia. O pregador – e Tomás de Aquino tinha
entrado na Ordem dos Pregadores – também não pode ser fiel à proposta que faz
do Evangelho, contentando-se com divulgar catecismos, devoções ou receitas
prontas a servir. Deve preparar-se, como o professor, a saber ler e interpretar
os textos sagrados no coração da cultura literária, artística, filosófica e
científica dos seus destinatários, que podem ser mais ou menos eruditos. Hoje,
diríamos, na linha de um grande discípulo de S. Tomás, o P. Dominique Chenu,
devemo-nos inscrever em todos os saberes, de todos os movimentos sociais e
culturais, para ler e interpretar os sinais dos tempos.
Na Suma de Teologia,
Tomás de Aquino, ao abrir muitas clareiras na floresta, também ele corria o
perigo, no meio de tantas questões e distinções, de se perder do essencial. Não
aconteceu. Em três breves questões foi directo ao coração da fé cristã e
justificou a sua intuição evangélica: Aquilo que há de mais poderoso na lei
do Novo Testamento e em que consiste toda a sua energia é a graça do Espírito
Santo que é dada pela fé em Cristo. Daí que a Lei Nova seja,
principalmente, a própria graça do Espírito Santo que é dada aos fiéis. Tudo o
resto vem em segundo lugar, pertence ao reino das mediações para nos dispor ao
acolhimento, à expressão e à fidelidade, na vida concreta, a essa graça[2].
Daí resulta uma nova inteligência da fé, uma nova ética e novos sacramentos.
3. Na Suma de Teologia,
Tomás de Aquino situou a questão dos sacramentos depois de apresentar Cristo
como sacramento. Estes são actos de Cristo que, a partir de um momento
histórico, atingem por virtude divina todos os tempos e lugares. Antes desta
obra, tinha-se referido à actividade sacramental como causa da graça divina. Os
sacramentos entravam, deste modo, no mundo da causalidade eficiente. Na Suma,
mudou completamente de perspectiva. Os sacramentos pertencem ao mundo
simbólico. Não são uma mecânica divina e humana de produção da graça. Não são
coisas, são gestos e palavras significantes que têm a propriedade de realizar
aquilo que significam. São uma linguagem performativa. Esta viragem deve modificar
completamente a pastoral litúrgica, pois, não actuam automaticamente. Têm de
falar do e ao ser humano em todas as suas dimensões: ao seu imaginário, à sua
inteligência, aos seus afectos, às suas exigências de beleza, de sentido e de
transformação do mundo. Os sacramentos realizam-se numa festa da fé, numa festa
do Evangelho. Não favorecem a depressão.
Como escreveu Frei José
Augusto Mourão, o pensamento depressivo está naqueles que só falam da
transfiguração do mundo, mas são incapazes de transfigurarem a sua própria
linguagem. Ora, a linguagem de Jesus é uma linguagem de transfiguração.
Para que as celebrações
da Quaresma e da Semana Santa não se percam no ritualismo fundamentalista,
importa não se deixar dominar pelo que está mandado ou proibido. Uma festa
precisa de um ritual, mas não há nenhum ritual que faça a festa de uma comunidade
ou de um povo.
O principal é a
transformação da vida pessoal e comunitária, mas esta precisa de ser secundada
pela transfiguração da linguagem da fé. Sem esse trabalho, a liturgia torna-se
aborrecida, depressiva. Ninguém está obrigado a participar num aborrecimento
colectivo.
08. Março. 2020
[1] Cf. Mistérios da Páscoa em Idanha 2019, Câmara Municipal da
Idanha-a-Nova, VI Curso Livre sobre Religiosidade Popular. Ruralidade e piedade
popular no nosso tempo.
[2] I-II, q. 106-108
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