1. Não
há liturgia cristã que suspenda as leituras do Antigo e do Novo Testamentos, por
vezes acompanhadas pela grande música e integradas numa celebração ritual. Na
Semana Santa são, por regra, muito mais abundantes. Exigem o auxílio de uma boa
cultura bíblica, bastante ausente da maioria das assembleias. Não se deve
confundir uma celebração litúrgica com uma imaginária reconstituição do passado,
do mundo que já não existe. É certo que algumas homilias tentam situá-las no
presente mediante considerações e aplicações, muitas vezes de pendor pietista e
moralizante que amortecem a imaginação em vez de a incendiar. Existem e sempre
existiram belas excepções.
O mundo
desses textos, a história turbulenta e dilacerada da Cristandade em que foram
acolhidos, pensados, celebrados, traídos e retomados como fonte de luz, não
fazem do Cristianismo uma religião do Livro como acontece, por exemplo, com o Islão.
Não pode haver culto da
Sagrada Escritura. Sagrado é Aquele de quem elas testemunham, Aquele que se fez
“carne”, isto é, fragilidade humana. O Verbo de Deus não se fez Livro.
Tudo quanto
se escreveu no âmbito da fé cristã, bebido em muitas fontes culturais, não foi
para encher bibliotecas de erudição ou para alimentar escolas esotéricas. Foi para
mostrar algo de absolutamente extraordinário que nenhum livro pode conter, mas
apontar e testemunhar por uma vida feita dom. Jesus Cristo não é apenas nosso contemporâneo. É a interrogação mais radical à nossa
contemporaneidade, interrogação que se procurou e procura abafar dentro e fora das
Igrejas.
Como não sei usar o seu estilo criativo das
parábolas, vou supor e imaginar, de forma tosca, algumas interrogações como esta:
porque continuais a fazer do dinheiro, de tudo o que ele representa, o vosso
deus? Ainda não reparaste que o actual modelo de sociedade e de globalização
não vos pode salvar? Trabalhais admiravelmente no desenvolvimento das ciências
e das tecnologias com resultados espantosos, mas para quê? Que mundo procurais
e que elas podem ajudar a construir? Não vos dais conta que se continuardes a ceder
às tentações da dominação económica, política e religiosa, a nível local e
global, não estais a construir sociedades abertas, democráticas, mas a
fortalecer e a fechar as pessoas no egoísmo, o grande vírus do presente e do
futuro?
Não
vale a pena repetir que o ser humano não tem conserto. Estamos sempre a tempo,
em qualquer idade, de nascer de novo.
Como esta crise monstruosa está a revelar, existem incontáveis pessoas que ganham
nova vida gastando-se a dar consolo e esperança. São muitas as que acordam com a
pergunta: em que posso ajudar pelo desenvolvimento
dos meus talentos, das minhas capacidades? Sempre conheci santos e santas que orientavam
e orientam o seu percurso humano pela máxima antiga e sempre nova: o bem é para fazer e o mal, para evitar.
O resto pode transformar-se em conversa pretensiosa, farisaica, para evitar
nascer de novo.
Seja como for, a presença
misteriosa, divina, em todo o ser humano, não substitui a sua criatividade nem
atenta contra a sua autonomia e liberdade.
2. Segundo os Actos dos
Apóstolos, o próprio S. Paulo, para introduzir a sua fé na ressurreição de
Cristo, recorre à literatura gentia que, tacteando, confessava que Deus não
está longe de nós, pois Nele vivemos, nos
movemos e existimos. Somos da sua raça[1].
O Domingo é dedicado à celebração semanal da Páscoa para reconhecer, na partilha do pão, a presença transformante de
Cristo no quotidiano de toda a semana. Está na origem da grande celebração
anual.
Odo Casel (1886-1949) [2], monge beneditino, fez um
grande esforço para mostrar que a
liturgia é a presença actual do mistério pascal. Reencontrou-se com a autêntica
cristologia de Tomás de Aquino que defendia que a actividade histórica de Jesus
não ficou no passado, mas atinge presencialmente
todos os tempos e lugares, por ser obra de Deus na intervenção humana de
Cristo[3]. Esta presença actuante é
acolhida quando hoje o nosso agir se identifica com o sentido do itinerário
histórico de Cristo que passou fazendo o bem[4].
Jesus não escreveu nada.
Não pediu aos seus discípulos que escrevessem a sua mensagem, mas que
testemunhassem com a vida o seu Testemunho. O facto é que, passados alguns anos,
surgiram muitos escritos sobre a pessoa de Jesus, sobre a sua actividade e
sobre a sua mensagem. A Primeira Carta
aos Tessalonicenses é considerada o escrito mais antigo, geralmente datado
do ano 50. Mais tarde, surgiram os outros textos do Novo Testamento, no seio de
comunidades que viviam ligadas pela fé a Jesus ressuscitado sem texto.
Com o tempo, às primeiras comunidades
de discípulos, não bastou viver da fé em Jesus ressuscitado e das narrativas
orais que partilhavam com aqueles que tinham andado com Jesus. Dessa situação,
nasceram os 4 Evangelhos, em lugares diversos e de comunidades com
problemáticas diferentes. Tinham fontes comuns e fontes próprias.
3. Estamos
no Domingo de Páscoa. As narrativas pascais[5] deixam muitos fiéis
perplexos. O Ressuscitado aparece, nuns casos na Galileia, noutros em Jerusalém
e nos seus arredores. Na primeira versão do Evangelho de Marcos, o Ressuscitado
não aparece a ninguém. Foi-lhe depois acrescentado um final que já integra o de
outras narrativas. Há, no entanto, um traço comum: a ressurreição é inesperada,
não se pode descrever, não é de ordem histórica, mas é real, porque o real não
se limita ao que a história pode documentar. A linguagem das narrativas das
aparições de Jesus é muito divertida pelos seus contrastes, pois está diante de
uma grande dificuldade: como mostrar que é o mesmo antes e depois da
ressurreição, mas não é nada da mesma maneira? Usa um artifício para mostrar a
continuidade e a ruptura. Não vou entrar nessa apresentação que exigiria
explicações que não cabem nas dimensões desta crónica.
Não acredito que a morte
seja a última palavra da nossa vida.
No cemitério de Castro
Daire, foi fixado um poema de Frei José Augusto Mourão (1947-2011) que é
cantado em todos os funerais. No convento de S. Domingos, pertence à liturgia
de Sexta-Feira Santa. Só a Páscoa de sempre celebra a sua memória:
Não
pode a morte reter-me na cruz./Não pode o mundo arrancar-me à raiz/ Ao pé de
Deus hei-de sempre viver/ Com Deus cheguei e com Ele vou
partir// A tua vida me toma e transporta/ Teu sangue inunda meu corpo de paz/
Vejo as mãos do Senhor glorioso/ Nas minhas mãos a memória de Deus// A Ti,
Senhor, meus desejos regressam/ Findo o andar, disponíveis as mãos/ Abre meu
corpo ao devir que não sei/ Eu chamo a esperança pelo nome de Deus.
12. Abril. 2020
[1] Act 17, 28-29
[2] O Mistério do Culto Cristão, Secretariado Nacional de Liturgia,
2019
[3] S. T. 3, q. 58, a. 1
[4] Act 10, 38-39
[5] Mc 16; Mt 28; Lc 24; Jo 20-21
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