segunda-feira, 9 de novembro de 2020

DEUS NÃO É UM RIVAL Frei Bento Domingues, O.P.

1. A Humanidade de Deus[1] é o título do primeiro volume que reúne algumas das minhas primeiras crónicas no Público. Por razões de trabalho, tive de revisitar a introdução que escrevi para a essa minha colectânea. Hoje, parece-me que foi a procura de fidelidade, à significação implicada na escolha desse título, que explica a alegria que encontro nos gestos e textos do Papa Francisco e dos quais tenho procurado dar testemunho em algumas crónicas dos últimos anos.

Encontrei, nessa introdução, a referência a um acontecimento dos agitados anos 50 do século passado, que provocou em mim, para sempre, o desassossego teológico.

 Eram anos em que se consumava a repressão das vozes livres na Igreja, retomada nos finais do século 19 e na primeira metade do século XX. Esse acontecimento, aparentemente banal, foi para mim o encontro com um texto dos anos 30, recomendado por Paul Denis, um professor que buscava as fontes dos rios filosóficos e teológicos a partir da sua foz, o mundo contemporâneo.

 Em 1935, pediram a Yves Congar O.P. para comentar os resultados alarmantes de um Inquérito realizado pela famosa revista La Vie Intelectuelle, sobre as “razões da descrença actual”!

Depois de analisar o longo processo de divórcio entre a Igreja e os movimentos científicos, culturais e sociais, que agitaram a gestação do mundo moderno, sintetizou-o numa expressão que me marcou: «a uma religião sem mundo, sucedeu um mundo sem religião».

Trinta anos mais tarde, em pleno Vaticano II, voltou a insistir no mesmo ponto: «o maior obstáculo que os seres humanos de hoje encontram no caminho da fé vem da falta de ligação que julgam verificar entre, por um lado, a fé em Deus e, por outro, o ser humano e a sua obra terrestre. É urgente mostrar o laço íntimo que os une. É na superação desse fosso que se deveria procurar a resposta mais eficaz às razões da descrença moderna»[2].

O célebre jesuíta, Teilhard de Chardin, numa breve nota, de 1920, sobre a evangelização dos novos tempos, já pressentia a gravidade do que estava a acontecer: «Cristão e humano tendem cada vez mais a não coincidir. É este o grande cisma que ameaça a Igreja».

Na mesma introdução, cito o grande medievalista dominicano, Marie-Dominique Chenu, que, sempre atento aos sinais dos tempos, continuava a verificar, em 1960, que «o novo mundo dos nossos dias ainda não tinha sido integrado no pensamento cristão».

Philippe Roqueplo, na sua tese de doutoramento, Experience du monde: Experience de Dieu?[3] –, ao percorrer o monumental Dictionnaire de Théologie Catholique (publicado entre 1904 e 1950, em 22 grandes volumes) verificou que a teologia oficial se tornara impermeável a todas as tentativas de assumir, na  experiência cristã, a construção do mundo.

Foram os considerados teólogos heterodoxos, acolhidos por João XXIII que, no Vaticano II, tentaram iniciar, de modo oficial, a superação desse divórcio. Outros, depois, procuraram fazer esquecer esse começo de revolução. Bergoglio, na linha do Cântico das Criaturas de Francisco de Assis, tem procurado retomar, concretizar e alargar a linha mais luminosa do Vaticano II e da Pacem in Terris, para eliminar os instrumentos do supremo terror.

2. O primeiríssimo capítulo que abre a Bíblia, na sua organização actual (Génesis, 1-2), é um poema que apresenta Deus a dizer, de forma extasiada: Que o mundo seja! Não é um Deus preocupado com o seu prestígio, com o seu ego, mas com a afirmação do outro, do diferente e criativo em face da divindade. Deus não se manifesta aí a querer ser tudo. A ideia de ver em Deus um rival do ser humano é uma megalomania diabólica. Deus não quer reservar para si os segredos, os enigmas do universo. Investigá-los é tarefa humana.

Devia ser esta a convicção da religião que recusa qualquer espiritualidade que despreza o mundo em nome de Deus; que fecha os olhos para a beleza e para os enigmas do cosmos, para o calor do amor humano, para a importância da criação artística, para o valor da investigação cientifica, para os trabalhos de ganhar o pão com o suor do próprio rosto, para a competência em socorrer as vítimas das doenças, para os problemas grandes ou pequenos de governar uma casa ou um país num mundo cada vez mais globalizado.

3. J. P. Audet, em 1966, no contexto das discussões em torno do sagrado, do religioso e da fé judaico-cristã, publicou um importante estudo sobre “a vingança de Prometeu ou o drama da religião e da cultura”[4]. Procura mostrar que, na Bíblia, não se encontra o equivalente do mito de Prometeu, tal como este vem apresentado em Hesíodo e Ésquilo: os deuses escondem aos homens o segredo da vida feliz. Aquilo de que os homens precisam para fazer a sua vida, por sua conta e risco, o fogo (ciências e técnicas) tem de ser arrancado aos deuses contra a sua vontade, como o fez Prometeu. Deuses e homens são rivais.

A felicidade dos deuses é a desgraça dos seres humanos e a felicidade destes é um roubo aos deuses. Nada disto existe na Bíblia. Aí, a terra é dada ao homem e à mulher para que façam dela a sua morada[5]. A pastorícia, a agricultura, a música, as técnicas, os negócios, as ciências e a sabedoria não são roubos a Deus, são acontecimentos humanos normalíssimos[6]. Não, porém, o trabalho escravizante[7], fruto de um ser humano que, quando se desorienta, desorienta as dimensões todas da vida e esquece que os outros são seus irmãos[8].

A tese de Audet não consiste apenas na contraposição do mito grego da rivalidade entre deuses e homens e o universo bíblico, em que Deus é princípio de gratuidade, de dom, e a religião da sabedoria, em Israel, uma percepção admirativa do divino.

Isto representa apenas o espaço para abrir uma outra perspectiva: a ideologia da “consagração do mundo” não deve merecer cobertura teológica porque não tem cobertura bíblica.

A relação religiosa co-habita, sem medo nem remorso, com o profano. O religioso pode ser espaço do profano e o profano, espaço do religioso. O sagrado, “o reservado para Deus”, é apenas o reservado para uma das mediações da religião, a mediação ritual.

O sagrado e o religioso não são co-extensivos. Tudo o que é percebido como sagrado (separado) tem a ver com a religião, mas nem tudo o que tem a ver com a religião tem a ver com esse sagrado. A percepção religiosa supera e enquadra, diferentemente, o sagrado e o profano. A mediação ritual tende a fechar o fenómeno religioso no seu espaço.

Daqui o perigo das preocupações com a “consagração do mundo”. Esta, sem se dar conta, consagra a perspectiva prometaica das relações entre religião e cultura. Parece beneficiar a religião, mas a religião só pode esperar pela vingança. Reencontramo-nos, assim, com o diagnóstico de Yves Congar, nos anos 30: a uma religião sem mundo, sucedeu um mundo sem religião.

 

08. Novembro. 2020



[1] Edição de Mário Figueirinhas, Porto 1994 – as crónicas são de 1992-1993

[2] Chrétiens en dialogue, Paris, Cerf 1964, p. XXXIII.

[3] Cerf, Paris 1968.

[4] La revanche de Promété ou le drame de la religion et de la culture, in Rev. Biblique, 73 (1966), 5-29

[5] Gn 1,28; Sl 8,9-14; 115,16

[6] Gn 4,19-22; 1Rs 5,9-14

[7] Gn 3,17

[8] Cerf, Paris 1968.

  


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