1. A Humanidade de Deus[1]
é o título do primeiro volume que reúne algumas das minhas primeiras
crónicas no Público. Por razões de
trabalho, tive de revisitar a introdução que escrevi para a essa minha colectânea.
Hoje, parece-me que foi a procura de fidelidade, à significação implicada na
escolha desse título, que explica a alegria que encontro nos gestos e textos do
Papa Francisco e dos quais tenho procurado dar testemunho em algumas crónicas
dos últimos anos.
Encontrei, nessa introdução,
a referência a um acontecimento dos agitados anos 50 do século passado, que
provocou em mim, para sempre, o desassossego teológico.
Eram anos em que se consumava a repressão das
vozes livres na Igreja, retomada nos finais do século 19 e na primeira metade do
século XX. Esse acontecimento, aparentemente banal, foi para mim o encontro com
um texto dos anos 30, recomendado por Paul Denis, um professor que buscava as
fontes dos rios filosóficos e teológicos a partir da sua foz, o mundo
contemporâneo.
Em 1935, pediram a Yves Congar O.P. para
comentar os resultados alarmantes de um Inquérito realizado pela famosa revista
La Vie Intelectuelle, sobre as
“razões da descrença actual”!
Depois de analisar o longo
processo de divórcio entre a Igreja e os movimentos científicos, culturais e
sociais, que agitaram a gestação do mundo moderno, sintetizou-o numa expressão
que me marcou: «a uma religião sem mundo, sucedeu um mundo sem religião».
Trinta anos mais tarde, em
pleno Vaticano II, voltou a insistir no mesmo ponto: «o maior obstáculo que os
seres humanos de hoje encontram no caminho da fé vem da falta de ligação que
julgam verificar entre, por um lado, a fé em Deus e, por outro, o ser humano e
a sua obra terrestre. É urgente mostrar o laço íntimo que os une. É na
superação desse fosso que se deveria procurar a resposta mais eficaz às razões
da descrença moderna»[2].
O célebre jesuíta, Teilhard
de Chardin, numa breve nota, de 1920, sobre a evangelização dos novos tempos, já
pressentia a gravidade do que estava a acontecer: «Cristão e humano tendem cada
vez mais a não coincidir. É este o grande cisma que ameaça a Igreja».
Na mesma introdução, cito o
grande medievalista dominicano, Marie-Dominique Chenu, que, sempre atento aos
sinais dos tempos, continuava a verificar, em 1960, que «o novo mundo dos
nossos dias ainda não tinha sido integrado no pensamento cristão».
Philippe Roqueplo, na sua
tese de doutoramento, Experience du
monde: Experience de Dieu?[3] –, ao percorrer o
monumental Dictionnaire de Théologie Catholique
(publicado entre 1904 e 1950, em 22 grandes volumes) verificou que a
teologia oficial se tornara impermeável a todas as tentativas de assumir, na experiência cristã, a construção do mundo.
Foram os considerados teólogos heterodoxos, acolhidos por João
XXIII que, no Vaticano II, tentaram iniciar,
de modo oficial, a superação desse divórcio. Outros, depois, procuraram fazer esquecer
esse começo de revolução. Bergoglio, na linha do Cântico das Criaturas de Francisco de Assis, tem procurado retomar,
concretizar e alargar a linha mais luminosa do Vaticano II e da Pacem in Terris, para eliminar os
instrumentos do supremo terror.
2. O primeiríssimo
capítulo que abre a Bíblia, na sua organização actual (Génesis, 1-2), é um
poema que apresenta Deus a dizer, de forma extasiada: Que o mundo seja! Não é um Deus preocupado com o seu prestígio, com
o seu ego, mas com a afirmação do outro, do diferente e criativo em face da
divindade. Deus não se manifesta aí a querer ser tudo. A ideia de ver em Deus
um rival do ser humano é uma megalomania diabólica. Deus não quer reservar para
si os segredos, os enigmas do universo. Investigá-los é tarefa humana.
Devia ser esta a convicção
da religião que recusa qualquer espiritualidade que despreza o mundo em nome de
Deus; que fecha os olhos para a beleza e para os enigmas do cosmos, para o
calor do amor humano, para a importância da criação artística, para o valor da
investigação cientifica, para os trabalhos de ganhar o pão com o suor do
próprio rosto, para a competência em socorrer as vítimas das doenças, para os
problemas grandes ou pequenos de governar uma casa ou um país num mundo cada
vez mais globalizado.
3. J.
P. Audet, em 1966, no contexto das discussões em torno do sagrado, do religioso
e da fé judaico-cristã, publicou um importante estudo sobre “a vingança de
Prometeu ou o drama da religião e da cultura”[4]. Procura mostrar que, na
Bíblia, não se encontra o equivalente do mito de Prometeu, tal como este vem apresentado
em Hesíodo e Ésquilo: os deuses escondem aos homens o segredo da vida feliz.
Aquilo de que os homens precisam para fazer a sua vida, por sua conta e risco,
o fogo (ciências e técnicas) tem de ser arrancado aos deuses contra a sua
vontade, como o fez Prometeu. Deuses e homens são rivais.
A felicidade dos deuses é a
desgraça dos seres humanos e a felicidade destes é um roubo aos deuses. Nada
disto existe na
Bíblia. Aí, a terra é dada ao homem e à mulher para que façam dela a sua morada[5]. A pastorícia, a
agricultura, a música, as técnicas, os negócios, as ciências e a sabedoria não
são roubos a Deus, são acontecimentos humanos normalíssimos[6]. Não, porém, o trabalho
escravizante[7],
fruto de um ser humano que, quando se desorienta, desorienta as dimensões todas
da vida e esquece que os outros são seus irmãos[8].
A tese de Audet não consiste
apenas na contraposição do mito grego da rivalidade entre deuses e homens e o
universo bíblico, em que Deus é princípio de gratuidade, de dom, e a religião
da sabedoria, em Israel, uma percepção admirativa do divino.
Isto representa apenas o
espaço para abrir uma outra perspectiva: a ideologia da “consagração do mundo”
não deve merecer cobertura teológica porque não tem cobertura bíblica.
A relação religiosa co-habita,
sem medo nem remorso, com o profano. O religioso pode ser espaço do profano e o
profano, espaço do religioso. O sagrado, “o reservado para Deus”, é apenas o
reservado para uma das mediações da religião, a mediação ritual.
O sagrado e o religioso não
são co-extensivos. Tudo o que é percebido como sagrado (separado) tem a ver com
a religião, mas nem tudo o que tem a ver com a religião tem a ver com esse
sagrado. A percepção religiosa supera e enquadra, diferentemente, o sagrado e o
profano. A mediação ritual tende a fechar o fenómeno religioso no seu espaço.
Daqui o perigo das preocupações com a “consagração do mundo”. Esta, sem
se dar conta, consagra a perspectiva prometaica das relações entre religião e
cultura. Parece beneficiar a religião, mas a religião só pode esperar pela
vingança. Reencontramo-nos, assim, com o diagnóstico de Yves Congar, nos anos
30: a uma religião sem mundo, sucedeu um
mundo sem religião.
08. Novembro. 2020
[1] Edição de Mário Figueirinhas, Porto
1994 – as crónicas são de 1992-1993
[2] Chrétiens en dialogue, Paris, Cerf 1964, p. XXXIII.
[3] Cerf, Paris 1968.
[4] La revanche de Promété ou le
drame de la religion et de la culture, in Rev.
Biblique, 73 (1966), 5-29
[5] Gn 1,28; Sl 8,9-14; 115,16
[6] Gn 4,19-22; 1Rs 5,9-14
[7] Gn 3,17
[8] Cerf, Paris 1968.
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