1.
Desde Março até ao final de 2020, vivemos, de modos diversos, uma longa noite.
Repetia-se a frase pouco alentadora: “ainda não vemos nenhuma luz ao fundo do
túnel”.
A investigação científica é um processo. Como
é evidente, o cientista não pode prever, à partida, os resultados do seu
caminho. Agora, a vacina contra a Covid-19 existe e já começou a ser
distribuída. É a epifania da conjugação feliz da ciência, da técnica e da ética
política, ao serviço de todos. O Papa Francisco pede que a vacina seja para todos
e, em primeiro lugar, para os mais vulneráveis.
É verdade que o final de
2020 e o início de 2021 ainda não podem ser celebrados com euforia, porque a
vacina vai levar algum tempo a ser generalizada e testada a sua eficácia.
Importa manter os cintos apertados até ao fim da viagem para reduzir o perigo
de algum imprevisto.
As resistências ao acesso
universal à vacina podem surgir por várias sem-razões.
A política que aposta em manter e aumentar as grandes desigualdades entre
países, e no interior de cada país, não pode aceitar que os seres humanos sejam
todos irmãos, com os mesmos direitos e deveres. Acaba de ser traduzida, para
português, a nova obra de Thomas Piketty na qual faz a história social,
económica e ideológica da desigualdade[1]. Não estamos condenados a
sofrer a intoxicação legitimadora do crescimento das desigualdades criminosas.
2.
A
celebração cristã da Epifania pertence ao ciclo do Natal, à irrupção de Deus na
carne do mundo. Nada nos faz pensar que a Igreja primitiva pretendesse celebrar,
nesses dias, o aniversário do nascimento de Jesus. De facto, revelam-se
infrutíferas as tentativas de fixar a época do ano em que Jesus nasceu.
A história da sua liturgia é muito complexa e
resulta, não de acontecimentos históricos datáveis, mas de razões de
inculturação das convicções cristãs mais ousadas. As suas experiências e
interpretações estão sempre marcadas pelos mundos culturais em que se
desenvolvem. Não se trata de operações oportunistas e indiferentes à
investigação da verdade, mas de fidelidade à matriz incarnacionista do
cristianismo. O que parece mais verosímil pode ser dito assim: o Ocidente
exportou para as Igrejas do Oriente a festa do Natal; o Oriente, por sua vez,
exportou para o Ocidente a festa da Epifania[2].
Em Portugal, a festa litúrgica
dos Reis Magos (Epifania) é, agora, celebrada no primeiro Domingo de Janeiro. A
sua significação é apresentada em quatro textos: dois do Antigo[3] e dois do Novo[4] Testamentos. A escolha é
comandada pela narrativa de S. Mateus. Ela, por seu lado, reflecte um caminho
praticado, de formas diferentes, pelas comunidades cristãs, marcadas pela
vitória da pregação de S. Paulo. A graça de Deus, manifestada em Jesus Cristo,
é uma oferta universal sem acepção de pessoas, povos ou culturas. Ele que era
judeu não fez depender da observância da Lei de Israel o acesso à salvação de
Deus: Os gentios
são admitidos à mesma herança, membros do mesmo Corpo e participantes da mesma
promessa, em Cristo Jesus, por meio do Evangelho. Acabaram os privilégios religiosos: todas as
pessoas, de todos os mundos, estão no coração de Deus.
Podemos dizer que todas as
narrativas, dos chamados Evangelhos da Infância, estão marcadas por este
universalismo. S. Lucas, adepto da visão de Paulo, vai ao ponto de fazer do
mítico Adão o antepassado directo de Jesus Cristo. Ele assumia, no presente,
todo o passado da humanidade e todo o futuro.
Não basta dizer que a
salvação é uma graça da pura generosidade de Deus. Isso está certo, mas não
dispensa os esforços da tacteante caminhada humana. S. Mateus imaginou uns
Magos, vindos do Oriente, pessoas dedicadas à investigação, nos ziguezagues da
vida, da “estrela” que dê sentido à nossa noite.
Todos os anos faço, por esta
altura, a releitura de Os Três Reis do Oriente,
de Sophia de M.B. Andresen[5]. Na figura de Baltasar
manifesta-se a procura da originalidade cristã de Deus:
«(…) Dizei-me onde está o
altar do deus que protege os humilhados e os oprimidos, para que eu o implore e
adore. Ao cabo de um longo silêncio, os sacerdotes responderam: – Desse deus
nada sabemos.
«Naquela noite o rei
Baltasar, depois de a Lua ter desaparecido atrás das montanhas, subiu ao cimo
dos seus terraços e disse: – Senhor, eu vi. Vi a carne do sofrimento, o rosto
da humilhação, o olhar da paciência. E como pode aquele que viu estas coisas
não te ver? E como poderei suportar o que vi se não te vir?»
3. Em
2018, as Edições Paulinas, depois de terem publicado quatro obras de Tomáš
Halík, apresentaram Diante de Ti, os meus
caminhos, que conta o itinerário da sua vida, marcado pela vontade da
construção de pontes entre crentes e ateus, católicos e evangélicos, religiões
cristãs e não cristãs, entre a Igreja e a sociedade, a fé e a cultura, a Igreja
e a universidade, entre a nossa identidade nacional, entre gerações, entre as
diferentes disciplinas das humanidades, entre a assistência espiritual e a
psicoterapia…
Agora, manifesta a sua
indignação perante novos movimentos tribais que são a negação de todas essas
experiências. 7Margens[6] publicou um ensaio recente e militante deste teólogo para responder à seguinte questão: O que têm em comum os terroristas que proclamam slogans
religiosos, os apoiantes cristãos de Donald Trump, os radicais pró-vida, os
adversários do Papa Francisco que lhe enviam “correcções filiais”, as bandas de
guerrilha que afirmam “defender o homem heterossexual branco”, ou Jarosław
Kaczyński e os esforços para transformar a Polónia num Estado católico
autoritário?
Trata-se
de um texto a não perder porque, também em Portugal, já existem partidos e grupos
afectados por esta patologia político-religiosa.
As
celebrações da Epifania precisam de linguagens em criação permanente porque só a
beleza redime. Já falei, nestas crónicas,
das novas linguagens da arquitectura cristã. Existe também um movimento de renovação na
música litúrgica, que oscila entre a recriação de uma herança musical litúrgica
e uma “via culturalizante, abrindo a liturgia aos diferentes idiomas musicais
disponíveis”.
Alfredo
Teixeira e João Andrade Nunes manifestaram ao 7Margens os movimentos de renovação da música litúrgica, os
limites e potencialidades que encontram na criação contemporânea, as linguagens
que os têm inspirado e as potencialidades da música como experiência
comunitária a merecer hospitalidade. A música pode ser uma arte de dizer Deus[7].
Tornou-se
um slogan repetir que a Igreja anda atrasada, vários
séculos, em relação aos movimentos culturais da história moderna. Certo. Em
relação à extraordinária mensagem de Jesus Cristo, são os movimentos sociais,
culturais e espirituais, dentro e fora da Igreja, que andam sempre atrasados.
03. Janeiro. 2021
[1] Thomas
Piketty, Capital e Ideologia, Temas e
Debates, 2020
[2] Cf. José
Manuel Bernal, Para Viver O Ano
Litúrgico, Gráfica de Coimbra, 2001, 277-345
[3] Isaías
60, 1-6 e Salmo 72
[4] Efésios
3, 2-6 e Mateus 2, 1-12
[5] Contos Exemplares, Figueirinhas, 200435,
143-165
[6] Nós
Somos Igreja reproduziu este texto essencial
[7] Cf. 7Margens (26 Dez 20)
Sem comentários:
Enviar um comentário