1. Cabe
à inteligência prática saber adaptar-se. A pandemia mundial parece dizer-nos
que, se não soubermos adaptar-nos a viver na cadeia – que as medidas se
segurança exigem –, arriscamo-nos a ser suas vítimas e a fazer mais vítimas, correndo
o perigo de servirmos a morte até aos próprios amigos e familiares.
Na cadeia, dizia um
prisioneiro, importa cultivar a saúde mental, a saúde espiritual e a saúde
física. São medidas e artes para conquistar a liberdade no dia a dia do cativeiro,
para não acabarmos derrotados quando se abrirem as portas da prisão.
Para a saúde espiritual, recorro
a uma antífona da Liturgia das Horas, feita de pura serenidade: Salvai-nos,
Senhor, quando velamos e guardai-nos quando dormimos, para estarmos vigilantes
com Cristo e descansarmos em paz. É seguida de uma oração igualmente bela:
Iluminai, Senhor, esta noite, concedei-nos um descanso tranquilo, para que,
amanhã, nos levantemos em vosso nome e possamos contemplar alegres e felizes o
nascer de um novo dia.
A religião não dispensa o
bom senso. Importa resistir à demagogia e ao sadismo de certas vozes, especializadas
em semear a confusão, para defender interesses que não coincidem com os da
população mais carenciada.
Como observa o Professor do
IST e presidente do Inesc, Arlindo Oliveira, antes da Internet, as opiniões das
pessoas menos qualificadas, sobre os mais diversos assuntos, não tinham impacto
global. Com a evolução das tecnologias, o aparecimento da chamada Web 2.0
trouxe consigo a possibilidade de qualquer um poder criar conteúdos de grande
impacto, independentemente da sua competência ou familiaridade com os assuntos.
Como tinha dito Umberto Eco, as redes sociais deram voz a uma “legião de
imbecis”.
Para o referido Professor,
é inegável que a qualidade e a profundidade da discussão política, económica e
social são prejudicadas por esta cacofonia. As vozes dos especialistas acabam
por ser abafadas pela multidão de peritos instantâneos que aparecem de um
momento para o outro, qualquer que seja o assunto.
E acrescenta: em nenhuma
área isso é mais visível do que no apaixonante tema da pandemia, da sua evolução e das medidas que devem ser tomadas. Apesar da
complexidade do problema, apareceram centenas de milhares de epidemiologistas
instantâneos nas redes sociais, com certezas absolutas sobre a evolução futura
da epidemia e sobre as medidas que devem ou não ser tomadas. Estes
“especialistas” impedem, na prática, que se ouçam devidamente as vozes das
poucas pessoas com significativa experiência de gestão e planeamento na área da
Saúde Pública[1].
Uma coisa é a
democratização do saber, da ciência, da cultura, outra é a democratização da
confusão interessada em criar o caos social, para dar voz a falsos profetas e
poder a falsos salvadores.
Perguntaram a Luís Menezes,
presidente da Unilabs-Portugal – entre 2009 e 2014 foi deputado da Assembleia da
República pelo PSD –, como via a gestão da pandemia: Não queria estar no lugar
de quem está a decidir. De todos os momentos da nossa história, se pudéssemos
escolher algum, este é aquele em que ninguém gostava de estar a tomar decisões,
porque são decisões de crítica muito fácil. O Governo geriu muito bem a
primeira vaga da pandemia, mas não viu chegar a segunda, tal como nenhum
governo europeu viu. A questão do Natal
foi muito mal gerida pelo Governo e por todos os partidos políticos. Acho
vergonhoso ver agora os partidos políticos – que antes disseram que o Governo
fazia bem em não pôr limitações ao Natal – virem dizer que a culpa disto é do
Natal e do fim do ano. Tendo estado na política anteriormente, mas estando
atento, é algo que me mete muita confusão[2].
2. Na liturgia de hoje, surge um fragmento do extraordinário livro
de Job, a voz do sofrimento que não se rende aos teólogos que sabem sempre
tudo, sem nunca se interrogarem: Deus recompensa os bons e castiga os maus.
A sua própria experiência de sofrimento inocente é a prova de que essa
teologia, defendida pelos seus amigos, não ouve os gritos da dor.
Vale a pena escutar essa
voz dorida e inconformada:
«A vida do homem sobre a terra, não é ela uma luta? Não são os seus dias como
os de um assalariado? Como um escravo suspira pela sombra e o
jornaleiro espera o seu salário, assim eu tive por quinhão meses
de sofrimento e couberam-me em sorte noites cheias de dor. Se me
deito, digo: 'Quando chegará o dia?' Se me levanto: 'Quando virá a tarde?' E
encho-me de angústia até chegar a noite. A minha carne cobre-se
de podridão e imundície, a minha pele está gretada e supura. Os
meus dias passam mais rápido que a lançadeira e desaparecem sem deixar
esperança. Lembra-te de que a minha vida é um sopro, e os meus
olhos não voltarão a ver a felicidade»[3]. É importante ler todo o livro, uma das grandes criações
literárias e do questionamento teológico da humanidade.
3. Na mesma celebração, S. Paulo irrompe com uma exclamação que
importa procurar entender: anunciar o Evangelho não é, para mim, um título de
glória, é uma obrigação que me foi imposta. Ai de mim se não anunciar o
Evangelho![4]
Esta obrigação é não é um
peso. Não a cumpre como um funcionário, pois ela constitui a descoberta mais
profunda da sua vida: partilhar a graça da alegria recebida. Isto é a essência
do Evangelho que pode revestir muitas formas.
A seguir, na mesma
liturgia, é proclamado o Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo S.
Marcos. Hoje, aparece uma narrativa que tem dado muitas histórias
hilariantes sobre a sorte de algumas sogras. Conta-se que Jesus saiu da sinagoga e foi para casa de Simão e André, com
Tiago e João. Acontece que a sogra de Simão estava de cama,
doente, com febre. Jesus, aproximando-se, tomou-a pela mão, levantou-a e a
febre deixou-a. Mas a narrativa não acaba aqui. O melhor estava para acontecer.
A
sogra não ficou a gozar, de forma egoísta, a saúde gratuitamente recebida. O
texto procura realçar algo de essencial: a sogra de Pedro começou logo a
servi-los. São, hoje, muitos os testemunhos de profissionais da saúde que,
tendo sido vítimas da Covid-19, uma vez curados, voltaram imediatamente ao
serviço.
A
pronta disponibilidade para o serviço dos outros constitui a
verdadeira alegria do Evangelho de Cristo que continua.
A sua realidade não se cumpre
com palavras e mais palavras[5],
sem consequências, sem alterar o mundo do sofrimento. A alegria do Evangelho
nasce e realiza-se a cuidar, a ouvir, a consolar, a curar[6].
07. Fevereiro. 2021
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