1. Custa,
e muito, mas é preciso tudo fazer para que não se repita o actual cenário obrigatório
desta Quaresma e desta Páscoa. Os católicos cumprem o seu dever, testemunhando
um comportamento cívico que ponha acima de tudo a saúde das pessoas. A
suspensão dos rituais presenciais da Quaresma e da Páscoa, que a pudessem afectar,
realiza o supremo critério de sabedoria humanista e religiosa de Cristo: as
prescrições rituais são para o ser humano e não o ser humano para os rituais.
No ano passado, o Papa sozinho, na Praça de S.
Pedro, sem o aparato habitual, fez a celebração mais eloquente de quantas já se
realizaram naquele espaço. Não quis inaugurar um novo ritual, fez apenas da extrema
necessidade virtude.
Ao escrever isto, estou a
esquecer o que mais importa. Uma Igreja que se ocupasse, apenas e
principalmente, com rituais litúrgicos e com as normas quaresmais que vigoraram
em diferentes épocas da sua história, não parece ser uma Igreja com as
preocupações de Jesus Cristo.
As normas prescritas para
esta quadra litúrgica, ao longo da história da Igreja, foram diferentes de
época para época. As pessoas da minha idade ainda se lembram das ridicularias
sobre jejum e abstinência e a bula conseguida, pela astúcia dos portugueses, para
não se importarem com essas esquisitices. O Papa Francisco, como tem sentido de
humor, acaba de prescrever um “jejum que não dá fome”:
o das coscuvilhices das maledicências e lembrou a importância de ler todos os
dias uma passagem dos Evangelhos, levando-os para todo o lado, no bolso, na
bolsa, para incentivar a abrir o coração a Deus.
A apresentação de S. Mateus
acerca da avaliação final de uma vida humana não passa por rituais, mas por
atitudes de solidariedade dada ou negada a quem precisa de ajuda. A vida humana
não tem preço, mas tem valor de eternidade[1].
Apesar de tudo, o calendário
litúrgico pode ajudar a ir directamente ao essencial. Neste Domingo, a leitura
do Antigo Testamento pertence à teologia nacionalista de Israel: Israel é o
povo de Deus, por Ele libertado. Deus é o Deus de Israel que lhe dá normas
éticas muito concretas e reserva, para Ele, um dia inteiro todas as semanas, o
Sábado[2].
No dia 27 do mês passado, S.
Mateus põe na boca de Jesus uma distinção essencial: «Ouvistes o que foi dito: Amarás
o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu, porém,
digo-vos: Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem. Fazendo assim, tornar-vos-eis filhos do vosso Pai que está no Céu,
pois Ele faz com que o Sol se levante sobre os bons e os maus e faz cair a
chuva sobre justos e pecadores. Porque, se amais os que vos
amam, que recompensa haveis de ter? Não fazem já isso os cobradores de
impostos? E, se saudais somente os vossos irmãos, que
fazeis de extraordinário? Não o fazem também os pagãos? Portanto,
sede perfeitos como é perfeito o vosso Pai celeste»[3].
Há de passar ainda muito tempo para que esta nova
época pertença à história da humanidade. Muitas vezes, me parece irritante a
reza dos salmos. Alguns são poemas fantásticos em qualquer tempo e em qualquer
lugar. Outros são tão nacionalistas que estão sempre a pedir a Deus que nos
proteja e dê cabo dos inimigos. Já era tempo de acabar com o elogio dessa
religião nacionalista, fazendo uma poda nos salmos que os tornem uma oração
universal. Gostei muito do trabalho de José Antonio Pagola – um exegeta catalão
– ao seleccionar os Salmos para rezar em qualquer momento da vida[4].
No entanto, não admira que, num mundo de lutas pela
dominação económica, política e religiosa – que molda o imaginário de velhas e
novas gerações –, se continue a recorrer a salmos que acentuam a divisão e o
ódio entre pessoas e povos. Não servem a pedagogia da Fratelli Tutti,
mas reflectem a missão que nos cabe nas sociedades em que vivemos.
2. Como o Papa recomendou, vamos aos textos do Novo
Testamento deste Domingo, que não são só para o Domingo.
Encontramo-nos com este fragmento da Carta de
Paulo aos Coríntios: «Enquanto os judeus pedem sinais e os gregos andam em
busca da sabedoria, nós pregamos um Messias crucificado,
escândalo para os judeus e loucura para os gentios. Mas,
para os que são chamados, tanto judeus como gregos, Cristo é poder e sabedoria
de Deus. Portanto, o que é tido como loucura de Deus, é mais
sábio que os homens, e o que é tido como fraqueza de Deus é mais forte do que
os homens»[5].
Paulo sente a resistência à sua proposta, tanto
nos que são moldados pela cultura judaica como pela cultura grega. Não se
surpreende. Ele quer marcar que, de facto, a novidade de Cristo não é a
consagração do mundo que existe. O que ele procura é alterá-lo. Tanto a cultura
judaica como a cultura grega julgavam-se, cada uma a seu modo, como perfeitas.
Um crucificado, que é proposto como a salvação, não era admissível em nenhuma delas.
Porquê?
O suplício da cruz era utilizado, apenas, para as
classes baixas da sociedade e para os escravos. Em geral, os cidadãos romanos
não eram submetidos a tal pena, a menos que a gravidade do crime os
considerasse destituídos dos seus direitos cívicos. Era, também, aplicado aos
estrangeiros rebeldes, aos criminosos e aos malfeitores. Foi o caso na Judeia
aquando das movimentações políticas na época de Jesus.
À crueldade própria do suplício da cruz –
suplício da morte lenta que dava livre curso aos gestos mais sádicos –
correspondia o seu carácter infamante, escandaloso e mesmo obsceno. O
crucificado era, normalmente, privado de sepultura e abandonado aos animais
selvagens e às aves de rapina. A cruz era o suplício mais cruel e repugnante, a
infâmia suprema[6].
Quando se procurou mostrar que Jesus se deixou
crucificar para fazer a vontade Deus, Nietzsche viu muito bem que se estava a tornar Deus e o
Evangelho impossíveis.
3. A proposta de leitura
do Evangelho, para este Domingo, é extraída de S. João: «Estava próxima a Páscoa dos judeus e Jesus subiu
a Jerusalém. Encontrou no templo os vendedores de bois,
ovelhas e pombas e os cambistas nos seus postos. Então,
fazendo um chicote de cordas, expulsou-os a todos do templo com as ovelhas e os
bois; espalhou as moedas dos cambistas pelo chão e derrubou-lhes as
mesas; e aos que vendiam pombas, disse-lhes: Tirai isso
daqui. Não façais da Casa de meu Pai uma feira»[7].
Segundo a narrativa de S. Marcos, os sumos
sacerdotes e os escribas ouviram isso e procuravam como fazê-lo perecer[8]. Encontraram a solução no poder romano,
ocupante, que se encarregou de O eliminar pela condenação à morte na cruz.
O crime de Jesus foi o de pôr em causa a
dominação económica, política e religiosa representada pelo templo. Teremos de
voltar a esta questão central que tem muitas facetas.
07. Março. 2021
[1] Mt 25,
31-46
[2] Ex 20,
1-17
[3] Mt 5,
43-48
[4] José
Antonio Pagola, Salmos. Para rezar em qualquer momento da sua vida, A
Esfera dos Livros, 2009
[5] 1Cor 1,
22-25
[6] Cf.
Bernard Sesboüé, Pensar e Viver a Fé no Terceiro Milénio, Gráfica de
Coimbra, 2001, 315-324
[7] Jo 2,
13-25
[8] Mc 11,
15-19
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