1. «Se
não tens nada que fazer, não me chateies, vai à missa». Reagir assim, em dia de
semana, era o modo bem-educado de quem recusava o uso de palavrões, muito
frequentes, na aldeia em que nasci. Importa lembrar que a prática religiosa
pautava os momentos mais marcantes do dia. O sino tocava de manhã, ao meio dia
e ao fim da tarde. As pessoas paravam e rezavam, estivessem onde estivessem. O
chofer da camionete, que fazia a carreira de Braga a Terras de Bouro, tirava o
boné quando passava diante de uma Igreja, da Cruz ou das Alminhas. A maioria
das famílias rezava o terço, já cabeceando de sono, depois da ceia. Faltar à
Missa ao Domingo era considerado pecado, a não ser que fosse por razões de força
maior, como a doença ou a velhice. Isto era naquele tempo.
Por muitas e variadas razões,
tudo mudou naquelas aldeias serranas, em progressiva desertificação,
especialmente nas situadas acima da estrada romana, a Geira. A dificuldade
de alguns párocos entenderem que as metamorfoses dos valores também afectam as
práticas religiosas, não os ajuda a entender certas atitudes da pouca juventude
que resta. De qualquer modo, nada vence os romeiros de S. Bento da Porta Aberta
e, no catolicismo português, Fátima é incontornável, embora ainda não possamos
saber as consequências da pandemia que fez desse Santuário um deserto.
A nível mundial, a
perseguição aos cristãos apresenta, um pouco por toda a parte, um crescimento
assustador. As estatísticas disponíveis dizem que, em 2020, já tinha feito mais
de 340 milhões de vítimas. Na Europa, considerada cristã, parece reinar a indiferença,
embora seja preciso ter em conta que o seu mapa religioso, com as migrações de
todas as origens, modifica-se dia a dia.
2. Para
quem continua a ir à Missa, e não é tão pouca gente como se julga, escuta, no
início da proclamação do Evangelho, uma expressão ambígua: naquele tempo.
Digo ambígua porque, de facto, o Cristianismo não se pode desligar de Jesus de
Nazaré, crucificado sob Pôncio Pilatos, a 7 de Abril, do ano 30 do primeiro
século da nossa era. Mas, naquele tempo pode dar a ideia de uma religião
arrumada no passado, quando a significação cristã do seu acontecimento fundador
atinge todos os tempos e lugares. Cristo é nosso contemporâneo.
Esta compreensão vem
testemunhada, de vários modos, nos textos cristãos mais antigos. No passado
Domingo, pediram-me para comentar uma passagem do Evangelho S. Lucas: os discípulos
de Emaús[i].
É uma peça de requintada beleza narrativa, que vai insinuando, passo a passo, o
que verdadeiramente é estruturante na vida de uma comunidade cristã, seja onde for
e seja quando for.
Os textos do Novo Testamento
debatem-se sempre com uma dificuldade paradoxal: têm de mostrar que o Cristo ressuscitado
é a mesma pessoa que teve uma existência terrestre e que, devido às suas opções,
suscitou uma coligação político-religiosa que o crucificou. Mas surge de um modo
tão diferente, na nova situação, que até as mulheres e os homens, seus
discípulos, só O reconhecem quando é Ele próprio a tomar a iniciativa de
manifestar a sua identidade. É o que acontece também com a narrativa dos discípulos
de Emaús. Quem puder vá ver o texto de S. Lucas, que não podemos reproduzir
aqui na íntegra.
Emaús era uma aldeia que
ficava a 12km de Jerusalém. Conta o texto que dois discípulos do Nazareno – um
chamado Cléopas e outro sem nome –, poucos dias depois da morte do Mestre, indo
a caminho dessa
aldeia, enquanto conversavam e discutiam, o próprio Jesus aproximou-se e pôs-se
a caminhar com eles, como se fosse um estranho. Fez-se de curioso e
perguntou-lhes: de que é que estais a falar? Ficaram desconfiados: serás tu o
único a visitar Jerusalém que ignora os acontecimentos que lá se passaram
nestes dias? O desconhecido tornou-se ainda mais curioso: que acontecimentos
foram esses? Resposta: os referentes a Jesus de Nazaré que era um homem, um
profeta poderoso, na acção e na palavra, diante de Deus e de todo o povo e como
os nossos sacerdotes e os nossos chefes O entregaram para ser condenado à morte
e O crucificaram. Esperávamos que Ele viria resgatar Israel, mas já estamos no
terceiro dia e nada.
É muito cómica a situação: são os discípulos que
explicam a Jesus o que aconteceu a Jesus! É, para nós, de grande alcance: Cristo
é o grande clandestino de todas as pessoas, mergulhadas nos seus problemas do
dia a dia para os quais, em certas ocasiões, não descobrem qualquer sentido. Por
vezes, são os próprios crentes que, em situações desesperadas, se interrogam: mas
onde está Deus em tudo isto?
O segundo elemento estruturante da vida da
comunidade cristã é a procura de sentido para os enigmas da existência humana. Sem
interrogações que abalem as nossas certezas convencionais, não podemos caminhar
escutando e interpretando os sinais de esperança semeados nas incertezas da
vida.
A fé cristã não se confunde, porém, com
infindáveis debates filosóficos ou teológicos. Exige nascer de novo para
o acolhimento do inesperado. Quando a comunidade cristã pratica a graça da hospitalidade,
é visitada pela clandestina presença real de Cristo.
O desenlace da aventura dos discípulos de
Emaús, na oferta da hospitalidade a esse desconhecido, é ainda mais
surpreendente. Uma vez à mesa com eles, tomou o pão, abençoou-o, partiu-o,
distribui-o e aconteceu o milagre: então, os seus olhos abriram-se e
reconheceram-no. E ele tornou-se invisível à vista deles. Enquanto o viram
não o reconheceram, quando o reconheceram deixaram de o ver!
3.
Neste belo conto dos discípulos de Emaús estão retratadas as componentes
de uma autêntica comunidade cristã: a
vida quotidiana da semana, a necessidade de a iluminar com a alegria do
Evangelho e o acolhimento do outro. A celebração da Eucaristia é, precisamente,
o tempo dedicado a estabelecer os laços entre todos os aspectos da vida humana,
em processo de iluminação pelo reconhecimento da presença real e invisível
de Cristo na vida toda[ii].
Não se pode esquecer, todavia, uma outra dimensão
da comunidade cristã, inscrita no final da narrativa dos discípulos de Emaús: Voltaram
imediatamente para Jerusalém e contaram o que lhes tinha acontecido pelo
caminho e como Jesus se lhes dera a conhecer, ao partir o pão.
A Missa não pode ficar na Missa. Dar testemunho, com obras e palavras, aos que a
não frequentaram, é a missão dos verdadeiros discípulos. O mero consumismo
religioso não é religioso.
Os cristãos não podem aceitar que se levantem
muros, obstáculos, aos que, acossados pela fome ou pela guerra, batem à porta
da Europa, dos EUA ou de qualquer outro país.
Como diz a Carta aos Hebreus[iii], não vos esqueçais da hospitalidade, lembrai-vos
dos presos, dos que são maltratados, sem perguntar qual é a sua religião, o seu
credo político ou a sua nacionalidade. São nossos irmãos.
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