1. Desde o século XVIII, foram muitas as pesquisas
sobre o Jesus da história e o Cristo da fé. Hoje, já não estamos habitados pela
fúria historicista. A grande questão actual é a da significação do itinerário
de Jesus espelhado no Novo Testamento, quer seja nas epístolas, mas sobretudo
nos quatro Evangelhos. Podemos sempre perguntarmo-nos: que sentido, que
beleza, que responsabilidade, que alimento a sua presença viva traz à nossa
vida quotidiana? Jesus é uma presença que alimenta a vida do amor, da
esperança, da fé num mundo que, muitas vezes, parece absurdo. É a adesão à
pessoa e à mensagem de Jesus Cristo que se torna a alma da nossa alma.
É verdade que a referência essencial do Natal é
Jesus que «nasceu durante o reinado do imperador romano Augusto, certamente
antes da morte de Herodes, o Grande, porque teve lugar na Primavera do ano 4 a.
C. Não é possível precisar mais a data exacta do seu nascimento. Os historiadores
coincidem em situá-la entre os anos 6 e 4 antes da nossa era. Provavelmente,
nasceu em Nazaré, embora Mateus e Lucas falem de Belém, por razões teológicas.
De qualquer maneira, Nazaré foi a sua primeira pátria. Os seus pais chamavam-se
Maria e José»[1].
O Cristianismo não pode prescindir dessa
referência à história. Jesus representa o que há de mais divino e humano na
história evocada como história das religiões. Muitas vezes, na experiência
espiritual, existe uma rivalidade entre Deus e o ser humano. Se se dá muito a
Deus parece que roubamos o ser humano; se nos ocupamos muito do ser humano
parece que roubamos a Deus, que perdemos o sentido da transcendência. O Natal
de Cristo é insuperável. Porquê? Porque tornou inseparável a atitude para com Deus
da atitude para com o ser humano em todas as suas expressões. Não existe uma
atitude verdadeira com Deus sem o cuidado do ser humano. S. Mateus começou o
seu Evangelho por revelar a verdadeira identidade de Jesus, mediante uma
expressão do quotidiano: o nome que diz essa identidade é Emmanuel que
significa Deus-connosco. É, também, a expressão definitiva do que o ser
humano está chamado a ser. Seremos julgados pelas atitudes práticas da relação
com os outros: todas as vezes que fizeste ou deixaste de fazer a um dos meus
irmãos foi a mim que fizeste ou deixaste de fazer[2]. A autenticidade da relação
com Deus identifica-se com a relação dos irmãos mais necessitados. A Primeira
Carta de S. João exprime, de forma inequívoca, essa mesma realidade: «Se alguém diz:
Eu amo a Deus, mas odeia o seu irmão, é mentiroso. Pois ninguém
pode amar a Deus, a quem não vê, se não
amar o seu irmão, a quem vê. O mandamento que Cristo nos deu é este:
quem ama a Deus, que ame também o seu irmão»[3].
2. Sophia
de Mello Breyner Andresen é, desde há muitos anos, uma das minhas companhias de
Natal. Pertence-lhe uma multifacetada teologia narrativa muito original: Os três reis do Oriente. É um longo
poema em prosa e um poema não suporta nem dá explicações. Apresento apenas uma
pequena passagem, só como convite a uma nova leitura, perante a crise actual.
Um dos três reis do Oriente,
depois de ter observado tudo, decepcionado com as consultas aos homens das
ciências e da política, Baltazar virou-se para a religião.
(…) Na manhã seguinte,
dirigiu-se ao templo de todos os deuses.
E leu estas palavras
gravadas na pedra do primeiro altar: «Eu sou o deus dos poderosos e àqueles que
me imploram concedo a força do domínio, eles nunca serão vencidos e serão
temidos como deuses.»
Seguiu o rei para o segundo
altar e leu: «Eu sou a deusa da terra fértil e àqueles que me veneram concedo o
vigor, a abundância e a fecundidade e eles serão belos e felizes como deuses.»
Encaminhou-se o rei para o
terceiro altar e leu: «Eu sou o deus da sabedoria e àqueles que me veneram
concedo um espírito ágil e subtil, a inteligência clara e a ciência dos
números. Eles dominarão os ofícios e as artes, eles se orgulharão como deuses
das obras que criaram.»
E tendo passado pelos três
altares, Baltazar interrogou os sacerdotes: – Dizei-me onde está o altar do
deus que proteja os humilhados e os oprimidos, para que eu o implore e adore.
Ao cabo de um longo
silêncio, os sacerdotes responderam: – Desse deus nada sabemos.
Naquela noite, o rei
Baltazar, depois de a Lua ter desaparecido atrás das montanhas, subiu ao cimo
dos seus terraços e disse: – Senhor, eu vi. Vi a carne do sofrimento, o rosto
da humilhação, o olhar da paciência. E como pode aquele que viu estas coisas
não te ver? E como poderei suportar o que vi se não te vir?
A estrela ergueu-se muito
devagar sobre o Céu, a Oriente. O seu movimento era quase imperceptível.
Parecia estar muito perto da terra. Deslizava em silêncio, sem que nem uma
folha se agitasse. Vinha desde sempre[4].
Parece-me vã a discussão sobre o aumento
ou o decréscimo da religião, de que tanto se fala. Talvez seja preferível
perguntar: que olhos me dá a fé para ver o mundo dos humilhados e dos oprimidos
e que olhos me dá esse mundo para descobrir a autenticidade da fé?
3. António Marujo escreveu, para
a revista E/Expresso[5], um texto sobre O Jesus
impressionista contemporâneo, através do contributo de algumas figuras
cristãs: «Esta viagem
vai da Rússia à Palestina e dos Estados Unidos à Terra Santa. Inclui um teólogo
assassinado talvez pelo KGB, um padre que acompanha homossexuais, um tradutor
dos clássicos gregos e protestantes que falam de Jesus como alguém cuja
personalidade marcou e continua a marcar gerações de pessoas pelo mundo fora,
em todas as culturas. A investigação contemporânea do retrato de Jesus já não
passa tanto pela história, pela teologia ou pela arqueologia. É uma
busca impressionista, que radica na experiência espiritual».
No 7Margens (01.01.2022), retomou o
texto dessas viagens, enriquecendo-o com uma selecção, entre as mais de belas
pinturas da figura de Cristo.
Neste Domingo, celebra-se algo de extraordinário:
a passagem de Jesus como discípulo do profeta austero, João Baptista, para
autor de um caminho muito novo. Jesus não nasceu feito, foi-se fazendo como ser
humano, na relação com Deus e com o mundo. Entrou no movimento dos penitentes
que recorriam ao baptismo de João, mas algo curioso aconteceu que provocou uma
ruptura espiritual com o seu venerado mestre: no momento em que Jesus, também
baptizado, se achava em oração, o céu abriu-se e o Espírito Santo desceu sobre
ele. Do céu veio uma voz: Tu és o meu Filho bem-amado; eu, hoje, te gerei![6].
O Cristianismo, propriamente dito, começou com
esta ruptura, como veremos em próximas crónicas.
09. Janeiro. 2022
[1] José
Antonio Pagola, Jesus, uma abordagem histórica, Gráfica de Coimbra 2,
2008, p. 489
[2] Cf. Mt 1,
18-24 e 25, 31-46
[3] 1Jo 4,
20-21
[4] Contos
Exemplares, Livraria Morais, 1ª Edição, 1962. A Porto Editora acaba de
reeditar esta obra em Dezembro 2021, págs. 137-157
[5] Edição de 23 de Dezembro de 2021
[6] Lc 3, 21-22
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