1. Porque
será que os católicos e, de forma muito mais ampla, os cristãos celebram a
Páscoa todos os anos da mesma maneira, com a repetição dos mesmos textos e dos
mesmos gestos? No geral, os liturgistas não se revelam muito criativos. Tenho
saudades das celebrações do Frei José Augusto Mourão (1947-2011), que sabia
combinar as tradições litúrgicas com ousadas inovações.
No Cristianismo não contam,
sobretudo, as mudanças rituais. Estas devem estar ao serviço da mudança de
vida. Só esta pode provocar expressões sempre novas.
No ano passado, lembrei
alguns contributos teológicos acessíveis e desafiantes[i].
O tempo não pára nem as suas surpresas. Quem poderia adivinhar que estaríamos,
depois de uma época terrível de pandemia, numa guerra absurda e abençoada por
algumas lideranças designadas como cristãs, embora não possamos desconhecer
todos os movimentos, cristãos ou não, que não podem pactuar com o abandono das
vítimas da estupidez[ii]!
De facto, a perspicácia do Papa Francisco já tinha repetido várias vezes que
estávamos à beira de uma guerra mundial aos bocados. Como acontece
frequentemente, as vozes mais lúcidas são as mais esquecidas.
Os produtores de armamento,
cada vez mais sofisticado, precisam desse comércio para fazerem fortunas à
custa do sofrimento e da morte dos outros. Heidegger dizia que o ser humano é
para a morte. Se isso fosse verdade, teríamos de agradecer a todas as máquinas
de guerra que facilitam esse objectivo. Prefiro o que nos disse a filósofa
judia Hanna Arendt: os seres humanos, embora tenham de morrer, não nasceram
para morrer, mas para começar.
Por outro lado, os bons
programas de governo insistem na qualidade do ministério da saúde, para que
haja adequados serviços que possam cuidar dignamente de todas as pessoas,
sobretudo das mais pobres.
Durante muito tempo, repetia-se
que, fora da Igreja, não há salvação. E. Schillebeecckx alterou esse adágio:
fora do mundo não há salvação[iii].
Quer dizer que não nos podemos resignar ao mundo que temos. Isto não é mundo
que se apresente. Em todas as circunstâncias, a esperança cristã confessa que a
morte não é a última palavra. Quem morre é recebido pelo amor infinito que é o
próprio Deus.
2. É neste
mundo que precisamos descobrir o sentido da vida, dos acontecimentos, de tudo o
que nos rodeia. Com a Laudato Sí’ e a sua concepção de uma ecologia
integral, cristãos e não cristãos são chamados a descobrir que é este mundo
que devemos salvar, se nos quisermos salvar a todos. O Papa Francisco, ao
assumir tudo o que se tem feito para salvar a Casa Comum, procurou envolver
todas as pessoas de boa vontade.
Com efeito, a ecologia diz
respeito, não apenas a um oásis para os ricos e poderosos, mas à gestão de um ambiente mais amplo, no qual vivem
os indivíduos, a comunidade local e o conjunto de todas as pessoas, de todas as
gerações. Ora, a casa em questão não é só a natureza que nos rodeia, com todos
os seus recursos de ar, água, luz, animais e plantas; ela também inclui o
ambiente humano, isto é, as pessoas com quem vivemos e com quem nos encontramos
ligados por vínculos de parentesco, de amizade, de trabalho, de cidadania a
todos os níveis.
Quando S. Pedro pede aos
cristãos para estarem sempre prontos a dar razão da sua esperança[1],
esta não se refere, apenas, ao mundo depois da morte, mas à tarefa de começar,
já, os trabalhos para um novo céu e uma nova terra, como diz o Apocalipse.
O que está a acontecer não é
a construção de novo céu e nova terra, mas a destruição de povos inteiros e do
seu mundo.
3. Não
devemos desligar a participação na Eucaristia da participação na nossa
transformação e na transformação do nosso mundo. Na anáfora de São Basílio (329-379) ninguém é esquecido:
“Lembrai-vos,
Senhor, do povo que está ao vosso redor e daqueles que, por um justo motivo,
foram omitidos, e tende misericórdia delas e de nós, segundo a abundância da
vossa misericórdia: enchei as suas despensas de todo bem; conservai as suas
uniões conjugais na paz e na concórdia; criai as crianças, educai os jovens,
fortalecei os idosos; consolai os fracos de ânimo, reuni os dispersos,
reconduzi os errantes e reuni-os à vossa santa, católica e apostólica Igreja.
Libertai
aqueles que são afligidos por espíritos imundos; navegai com os navegantes;
caminhai junto com aqueles que caminham; cuidai das viúvas, protegei os órfãos,
libertai os prisioneiros, curai os doentes; lembrai-vos daqueles que estão nos
tribunais, nas minas, no exílio, em dura escravidão e em todas as tribulações e
necessidades e na perturbação; lembrai-vos também, ó Deus, de todos aqueles que
precisam da vossa grande compaixão, daqueles que nos amam e daqueles que nos
odeiam, daqueles que pediram a nós, indignos, que rezássemos por eles.
Lembrai-vos
também de todo o vosso povo, Senhor, nosso Deus, e derramai sobre todos a
abundância da vossa misericórdia, concedendo a todos o cumprimento dos pedidos
de salvação; e daqueles de quem não fizemos memória por ignorância ou por
esquecimento ou pela abundância de nomes, lembrai-vos vós mesmo, ó Deus, que de
cada um conheceis a idade e o nome, que conheceis a cada um desde o ventre de
sua mãe.
De facto,
Senhor, sois o cuidado dos que são negligenciados, a esperança dos
desesperados, o salvador dos que estão agitados, o porto dos navegadores, o
médico dos doentes; sede tudo para todos eles, vós que conheceis cada um e o
seu pedido, a sua casa e a sua necessidade.
Libertai,
Senhor, este rebanho e toda a cidade e região, da fome, da peste, do terremoto,
do naufrágio, do fogo, da espada e da invasão estrangeira e da guerra civil...”[2].
S.
João, na sua primeira carta, ainda foi mais radical, abrangente e desafiante: sabemos
que passamos da morte para a vida porque amamos os irmãos[3].
Esta é a nossa Páscoa de todos os dias!
17 Abril 2022
[i]Cf. entre
outros, Andrés Torres Queiruga, Repensar la resurrección, Trotta, 2005;
José Antonio Pagola, Jesus. Uma abordagem histórica, Gráfica de
Coimbra, 2008; A. Cunha de Oliveira, A ressurreição dos mortos,
Instituto Açoriano da Cultura, 2016.
[ii] Cf.
Anselmo Borges, Francisco vai a Kiev?, DN, 09.04.2022
[iii] Edward Schillebeeckx, L’histoire
des hommes, récit de Dieu, Cerf 1992
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