1. Vivemos,
como humanos, na e através das experiências da linguagem ou, melhor, das
linguagens. A significação das nossas concepções, afirmações e negações depende
do seu uso. O uso profano e religioso não são da mesma ordem, embora se possam
servir das mesmas palavras. A diferença da linguagem do sagrado nota-se,
sobretudo, no culto[1].
Quando, no Credo, dizemos que Jesus Cristo desceu dos céus, foi por
nós crucificado sob Pôncio Pilatos, ressuscitou ao terceiro dia, conforme as
Escrituras, e subiu aos céus onde está sentado à direita do Pai, só tem
sentido no âmbito das confissões de fé. Fora desse contexto, presta-se ao
ridículo. Por outro lado, essas expressões nasceram num contexto cultural que
já está muito longe das nossas experiências actuais de relação entre o sagrado
e o profano.
A
interpretação da linguagem simbólica não é para a superar, mas para a entender
e há metáforas vivas e metáforas mortas. Se as religiões e o diálogo
inter-religioso quiserem ser compreendidas, para além do seu âmbito, têm de
mostrar o seu sentido para dimensões da existência humana que transcendem as
verificações científicas.
O
saudoso P. João Resina, professor de Física durante 30 anos e um cristão
fervoroso, era também discípulo de Kant, para o qual, há três questões
fundamentais: o que posso saber, o
que devo fazer, o que me é lícito esperar. À
primeira responde a ciência, à segunda, a ética e à terceira, a religião. Gostava
de sublinhar: uma coisa é tentar compreender o
universo. Para isso há a física e a biologia. Se quero saber se houve ou não big
bang, se a vida evoluiu ou não, não pergunto à Bíblia, não pergunto à
Igreja, que não tem competências nessa matéria. Era alérgico à confusão entre a
linguagem da ciência e a da fé. Para Kant, a pergunta que resume todas as
outras é esta: o que é o ser humano? A esta responde a antropologia.
Não é por acaso que o
Documento sobre a Fraternidade Humana, assinado pelo Papa Francisco e o Grão
Imame Ahmad Al-Tayyeb, em Abu Dabhi, a 4 de Fevereiro de 2019, será adoptado pela
República de Timor-Leste, como um documento nacional, a ser implementado nas
instituições educacionais e culturais da nação do sudeste asiático, como deseja
o seu actual presidente, Ramos-Horta.
2. Segundo
os Actos dos Apóstolos que estamos a ler na liturgia, o primeiro dia da semana
é sempre o Domingo, que não é um dia depois do Sábado. É um começo novo. A
encenação que Lucas faz do início da Igreja cristã supõe um período de
múltiplas manifestações do Ressuscitado, a discípulas e a discípulos, e também
o tempo que nós vivemos sem a experiência misteriosa desses encontros.
Lucas quer marcar que a
Igreja nascente levou tempo a despedir-se de uma restauração política de
Israel. Nasce, então, a narrativa da Ascensão, isto é, o modo que encontraram
para figurar a renúncia a essa nostálgica tentação. A melhor maneira era de
mostrar que os discípulos não podiam continuar a manipular frutos da imaginação
do poder. Cristo era absorvido pelo irrepresentável mistério de Deus, pois, o
céu não é um lugar, mas nós vivemos sempre em categorias de tempo e espaço. Ao
dizer que Cristo subiu aos céus, significa que Cristo entrou na dimensão do
divino, sem tempo e sem lugar. É por isso que surgem figuras da divindade a
dizer: a vossa missão não se deve perder no passado, mas agir no presente
aberto ao futuro.
Este Papa não tem dias nem
semanas suficientes para colocar a Igreja actual em movimento: a intensificação
e alargamento do diálogo inter-religioso, para que as religiões sejam caminhos
de paz e não de guerra; para que a Laudato Sí’ não seja arquivada, mas concretizada,
dedicou-lhe, de novo, uma semana de estudo e conscientização que termina hoje,
não para ser encerrada, mas relançada; o dia 31 deste mês será dedicado aos
meios de comunicação social, estimulando os jornalistas a escutar os
acontecimentos com o ouvido do coração.
Além disso, a preparação do
Sínodo 2023 está em andamento para que, de novo, se torne o próprio estilo de
viver em Igreja; a irradicação do abuso sexual nas comunidades cristãs; a
preparação do Domingo, 24 de Julho, 2022 – 2º Dia Mundial dos Avós e dos Idosos
– já começou com o tema Dão fruto mesmo na velhice e pretende destacar a
que ponto os avós e idosos são um valor e um dom, tanto para a sociedade, como
para a comunidade eclesial. Este tema, segundo uma
nota do Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida, é também um convite a
reconsiderar e valorizar os avós e os idosos, frequentemente deixados às
margens das famílias, das comunidades civis e eclesiais.
A experiência
de vida e de fé deles pode contribuir, com efeito, para construir sociedades
conscientes das suas próprias raízes e capazes de sonhar um futuro mais
solidário, fundamental para uma concepção inter-geracional da aventura humana[2].
3. Há muito, que o Papa Francisco alertou as igrejas, as
religiões e a sociedade para uma realidade em que não se queria pensar: estamos
a viver a III Guerra Mundial aos bocados. A guerra, pela invasão da Ucrânia,
veio ter com um Ocidente distraído. Agora, tornou-se o assunto das televisões,
das rádios, dos jornais, das redes sociais. Francisco ofereceu-se para ser
mediador de paz entre a Rússia e a Ucrânia. Está a enviar continuamente
delegados ao povo sofredor. As consequências desta guerra absurda – como são
todas as guerras – já se fazem sentir a nível mundial e os negócios das armas
estão a enriquecer os muito ricos.
Por falar em
ricos, Victor Ferreira, no Público (25.05.2022), fez eco ao Relatório da
Oxfam, Lucrando com a dor, dizendo com ironia que os multimilionários
que estão no Fórum Económico Mundial de Davos, na Suíça, têm muito que celebrar.
«Durante a pandemia de covid-19, a sua fortuna atingiu picos estonteantes e sem
precedentes. A pandemia – um tempo cheio de dor para a maioria da humanidade –
tem sido um dos melhores momentos na história dos multimilionários».
A referida
confederação internacional de luta contra a pobreza «afirma que nos últimos
dois anos surgiram 573 novos multimilionários, ou seja, um novo milionário a
cada 30 horas, ao mesmo tempo que mais cerca de 263 milhões de pessoas correm
risco de pobreza extrema em 2022 – ou seja, um milhão de pobres a cada 33 horas
–, devido às consequências da pandemia e por causa do custo crescente da
alimentação.
«A Oxfam quer,
acima de tudo, destacar que o crescimento rápido dessas fortunas hoje em dia e
a crise no custo de vida enfrentada por milhares de milhões de outras pessoas
são duas faces do mesmo fenómeno. Isto não é apenas algo que está a acontecer,
enquanto eles mandam; isto está a concretizar-se de forma deliberada com o seu
apoio».
Os relatórios desta
organização pedem, em Davos, medidas contra «uma desigualdade que mata»[3].
Quem poderá
fechar os olhos, os ouvidos e o coração perante esta vergonha?
29 Maio 2022
[1] Cf. Leszek
Kolakowski, Si Dios no existe…, Tecnos, 1995; Juan Martín Velasco, Metamorfosis
de lo sagrado y futuro del cristianismo, Sal Terrae, 1999
[2] Cf. www.vatican.va
[3] Para
muitos outros dados, ver na Internet os Relatórios da Oxfam
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