1. Hoje,
no calendário litúrgico da Igreja Católica, celebra-se a Santíssima Trindade.
Há quem diga que é uma festa desnecessária, pois, é com essa expressão da fé
cristã que começam todas as celebrações da Eucaristia: «Em nome do Pai, do Filho
e do Espírito Santo». Os fiéis respondem – Ámen, isto é, estamos de
acordo, acreditamos. Este é um credo tão breve que nem dá tempo de pensar no
que se diz e, pior ainda, passou a ser usado para dizer: estes dizem ámen
a tudo.
A seguir, quem preside a
assembleia explicita em estilo narrativo: «A graça de Nosso Senhor Jesus
Cristo, o amor do Pai e a comunhão do Espírito Santo estejam convosco».
Sendo assim, até parece que
têm razão os que dizem que é uma festa redundante. O perigo é passar por estes
enunciados sem pensar e, quando se começa a pensar, pode acontecer como a I.
Kant: «tomada em sentido literal, a doutrina da Trindade, mesmo se se julgasse
compreendê-la, é totalmente inútil em termos práticos e, menos ainda, ao
reconhecer que ultrapassa totalmente os nossos conceitos. A Trindade ter três pessoas ou dez seria a mesma coisa».
K. Rahner dizia que, se o dogma trinitário fosse eliminado como falso, a maior
parte da literatura religiosa poderia permanecer quase inalterável e Goethe não
encontrava, na fé trinitária, a mais pequena ajuda.
Quem não ficou satisfeito
com essa inutilidade foi Leonardo Boff. Durante o ano de silêncio imposto pelo
Vaticano, escreveu uma obra que tentava mostrar a Trindade como a melhor comunidade. Por outro lado, Paul
Blanquart via, na expressão trinitária da fé cristã, o que as nossas democracias
não deviam ignorar, pois nessa expressão, as pessoas são todas iguais e
diferentes, todas activas sem subordinação, todas autónomas e todas em mútua relação.
Como já escrevi em crónicas
passadas, considero fundamental esta simbólica para escutar, acolher e pensar a
realidade misteriosa de Deus e do mundo, questionando os modelos actuais que
regem a vida familiar, cultural, política, do lazer e da vida das igrejas.
Não é por acaso que a grande
questão das nossas sociedades, a todos os níveis, é sempre a da coexistência
pacífica da unidade e da pluralidade. Será possível viver juntos, respeitando e
promovendo, ao mesmo tempo, a comunhão entre todos e a originalidade de cada
um?
Se acentuamos a pluralidade,
corremos o risco da fragmentação. Se sublinhamos muito a urgência da unidade,
espreita-nos a uniformidade. No entanto, a coincidência entre unidade e
pluralismo parece um milagre sempre diferido.
S. Paulo gastou muita
energia para encontrar metáforas e razões que tornassem criativa a coabitação eclesial
da unidade e da diversidade dos carismas. Eram dons e frutos do mesmo Espírito,
num só corpo com muitos órgãos e membros[1].
2. Na
expressão, cunhada por Paul Ricoeur, os chamados «mestres da suspeita» – Marx,
Freud e Nietzsche – negavam Deus em nome da liberdade, da criatividade e da
felicidade humanas. Para eles, Deus era o inimigo da nossa alegria. Santo Ireneu
sustentava o contrário: a glória de Deus é que o ser humano viva e desabroche
na fruição da divindade[2].
Não via nenhuma oposição entre as duas afirmações. Gozavam da mesma festa.
Ludwig Wittgenstein não
pertencia aos «mestres da suspeita». Levantou a questão fundamental: «Que sei eu sobre Deus e o sentido da vida?
Sei que este mundo existe. Que estou nele como o meu olho no seu campo visual.
Que algo nele é problemático, a que chamamos o seu sentido. Que este sentido
não reside nele, mas fora dele. (…) Ao sentido da vida, i. é, ao sentido do
mundo, podemos chamar Deus e associar-lhe a metáfora de Deus como um pai. A
oração é o pensamento do sentido da vida. (…) Crer em Deus significa
compreender a pergunta pelo sentido da vida. (…) Crer em Deus significa ver que
a vida tem um sentido»[3].
Os cristãos não dizem apenas
que acreditar em Deus é ver que a vida humana tem sentido. Acreditam que Ele é humaníssimo e fonte
do verdadeiro humanismo, como escreveu E. Schillebeeckx[4].
O ser humano é a narrativa humana de Deus, a
máxima unidade na máxima diversidade. Como já ficou dito, a unidade não absorve
nem destrói a diversidade. As pessoas são todas diferentes, todas iguais, todas
activas, todas livres, sem subordinação de umas às outras e em perfeita
comunhão.
Nessas afirmações não há dominadores e dominados.
O Pai e o Filho partilham um mesmo Espírito que nos é dado:
«todos os que se
deixam guiar pelo Espírito são filhos de Deus. Não recebestes um Espírito que
vos escravize e volte a encher-vos de medo, mas recebestes um Espírito que faz
de vós filhos adoptivos. É por Ele que clamamos: Abbá, ó Pai! Esse
mesmo Espírito dá testemunho ao nosso espírito de que somos filhos de Deus[5].
A palavra trindade
não consta nas narrativas do Novo Testamento. Surgiu, na Igreja, para
sintetizar e inculturar essas narrativas na filosofia greco-romana.
A incarnação trinitária de
Deus é a grande originalidade da fé cristã. Se há algo singular no cristianismo
é a fé de que a transcendência de Deus se faz acessível na imanência de um ser
humano. Por mais escandalosa que pareça esta afirmação da fé, tem múltiplas
consequências.
3.
Estai prontos a dar razão da vossa esperança, sem arrogância, é a recomendação
de S. Pedro. A modéstia deve ser o espírito do trabalho teológico. O cristão
deve procurar uma incansável e amante inteligência da fé. Tem de a servir com a
ousadia de todas as forças da sua mente e do seu afecto. A fé cristã não é um
calmante, é um excitante[6].
No entanto, nunca pode esquecer a recomendação de Tomás de Aquino que herdou da
chamada teologia negativa, da teologia mística: de Deus não podemos saber o
que Ele é, mas o que não é[7].
De Deus, tanto mais saberemos quanto mais nos apercebermos que excede tudo o
que Dele compreendermos[8].
Não há só a mística de olhos
fechados. São Macário, o Grande, testemunha que, aqueles que nasceram do
Espírito Santo, acontece-lhes chorar e afligir-se por todo o género humano,
implorando a Deus por toda a descendência de Adão. Se eles sofrem e choram, é
porque estão abrasados de amor espiritual por toda a Humanidade. Depois, de
novo, o Espírito suscita neles uma total alegria e um tal impulso de caridade
que eles quereriam, se fosse possível, encerrar em seus corações todos os seres
humanos, sem distinguir os maus dos bons[9].
Na Eucaristia em que hoje participo,
é cantado o hino de Santa Catarina de Sena: Ó Deus, Trindade Santa,/ ó luz mais radiosa que toda a luz,/ fogo mais
ardente que todo o fogo,/ Tu és um oceano, a paz,/ Tu és um mar sem fundo,/
mais eu mergulho, mais eu me afundo,/ mais eu Te encontro, mais eu Te procuro
ainda./ Sede que Tu saciaste no deserto um dia,/ para sempre ficar com sede de
Ti.
12 Junho 2022
[1] 1Cor 12
[2] Adversus haereses, IV,
20, 5-7
[3] L.
Wittgenstein, Tagebücher 1914-1916, Werkausgabe, Vol. I, Suhrkampf: Francoforte, 1984, 167-8
[4] Não vou entrar, aqui, no debate sobre o humanismo, o
transhumanismo e o pós-humanismo.
[5] Rm 8, 14-17; Gal 3, 26-28
[6] C.G. III, c.40
[7] I Pars, q.3, prólogo
[8] II-II, q.8, 7
[9] Cf. José Mattoso,
Levantar o Céu, Temas e Debates, 2012, pp.192-193
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