1. Não
sabemos qual será o futuro do Cristianismo na Europa. A conjugação da liberdade
religiosa com os movimentos migratórios está a modificar, continuamente, o seu
panorama religioso, embora a ritmos diferentes segundo os países. Espero que os
cristãos acordem para a afirmação da sua identidade, como nos lembrou o Papa
Francisco, desde o manifesto do seu pontificado, com a fervorosa e lúcida
exortação apostólica, A Alegria do Evangelho.
O Presépio, inspirado nos
chamados Evangelhos da Infância (começo dos evangelhos de S. Mateus e de S.
Lucas) é obra de S. Francisco de Assis. Tomás de Celano, o seu primeiro
biógrafo, revelou que ele se referia ao Natal como a festa das festas e
celebrava-a com devoção inenarrável. Três anos antes de morrer, em 1223,
começou a representar o nascimento de Jesus com o fervor poético da sua
imaginação cristificada. Refigurado e desfigurado ao longo dos tempos, o
presépio nunca mais foi esquecido.
É verdade que, para as primeiras comunidades cristãs e não só, a festa
das festas era a Páscoa, a misteriosa flor da vida-dada que venceu a
morte. Mas ele sabia que o nascimento dos seres humanos, em todos os povos e
culturas, é o primeiro fruto do amor que reedita a criação do mundo. Enquanto
houver crianças amadas, há presente e há futuro.
Os
textos messiânicos de Isaías de que tenho evocado nestas crónicas, escolhidos
para o tempo litúrgico do Advento, são poemas para sonhar um mundo novo, a
partir do que eles chamam o ramo do tronco de Jessé (pai de David) e que
os cristãos interpretaram como antepassado de Jesus[1].
Como diz Frederico Lourenço,
na bela introdução aos Quatro Evangelhos, «por terem sido escritos num
grego despretensioso, sem vestígio de sumptuosidade verbal dos grandes autores
helénicos, é provável que estes quatro textos nem merecessem ao leitor culto da
época o alto estatuto de literatura. No entanto, estes textos conquistaram o
mundo antigo, tanto grego como romano. Lendo-os dois mil anos depois, não é
difícil perceber porquê. Sobre um desses textos já se escreveu que se trata do
mais divino dos livros divinos: na verdade, essa descrição assenta a qualquer
um deles. São textos que – com a sua mensagem sublime veiculada por palavras
cuja beleza desarmante ainda deixa arrepiado quem os leu e os releu ao longo de
uma vida inteira – estão simplesmente numa categoria à parte».
E acrescenta: «Apesar de
terem sido lidos, copiados à mão durante séculos e depois impressos milhões de
vezes; apesar de ao longo de dois milénios, estes textos terem mudado a vida de
um número incontável de pessoas, sobre estes quatro textos falta-nos saber,
ainda hoje, quase tudo».
Note-se que os quatro
Evangelhos canónicos não foram os primeiros escritos cristãos. Quando estes foram
escritos, já existiam muitas comunidades cristãs que viviam das narrativas de
quem tinha conhecido o próprio Jesus, a Palavra da Vida, como lhe chama
S. João[2].
S. Lucas, na dedicatória da sua narrativa, confessa que já circulavam várias
outras. Ele vai fazer trabalho de investigador[3].
As Cartas de S. Paulo são
anteriores aos quatro Evangelhos. O próprio confessa, na 1ª Carta aos
Coríntios, que transmite a fé na Ressurreição de Cristo como ele a recebeu:
apareceu a Cefas e
depois aos Doze. Em seguida, apareceu a mais de quinhentos irmãos, de uma
só vez, a maior parte dos quais ainda vive, enquanto alguns já
morreram. Depois apareceu a Tiago e, a seguir, a todos os Apóstolos. Em
último lugar, apareceu-me também a mim, como a um aborto. É que eu sou o
menor dos apóstolos, nem sou digno de ser chamado Apóstolo, porque persegui a
Igreja de Deus[4]. Na mesma Carta, repreende com veemência os
que já se reuniam para celebrar a Ceia do Senhor (a Eucaristia), porque tratavam
de forma diferente os ricos e os pobres[5].
2. Existe um Evangelho, o de S. Marcos, onde não há
Natal. Começa com João Baptista e de uma forma bastante desenvolvida. Ele representava uma
corrente do judaísmo que não se satisfazia com a religião do Templo de
Jerusalém. O banho no rio Jordão significava o culminar de um percurso de
conversão. Jesus é apresentado como fazendo parte dessa corrente, pois também
Ele foi baptizado por João. Tem todo o aspecto de ser um facto histórico, não
só porque consta nos quatro Evangelhos, mas porque complicava a identidade de
Jesus. Os discípulos de João poderiam sempre dizer, não foi o vosso mestre a
baptizar o nosso, mas foi João que baptizou o vosso mestre.
Nesse cenário, porém, acontece o insólito: Jesus,
depois de sair da água, entrou em oração, isto é, abriu-se ao mistério de Deus.
Teve uma experiência que mudou completamente o rumo da sua vida e o desligou do
caminho e das exigências de João. Este era conhecido pela sua austeridade e
pelas ameaças divinas que pregava para quem o não seguisse. Jesus, pelo
contrário, ouve uma voz interior que lhe vem do mais íntimo, figurada como pomba,
voz do Céu: Tu és o meu filho amado, em ti me alegro.
Não quis fazer da sua experiência filial algo de
exclusivo. Pelo contrário, interpretou-a como a missão de revelar que
Deus não era nem como a religião oficial nem como a pregação de João O
representavam. Desse Céu não vêm ameaças, só podem vir as maiores declarações
de amor. Isto diz-se depressa, mas implicava que era o próprio Jesus que tinha
de alterar as imagens do messianismo em que fora educado. Foi para o deserto e,
aí, tornou-se-lhe evidente que o caminho da dominação económica, política e
religiosa, era diabólico. Tinha de romper, para sempre, com essas tentações que
foram, depois, o quebra cabeças da sua relação com os discípulos.
3. Ao terminar os parágrafos anteriores,
mandaram-me um poema de Kleber Lucas, cantado por ele e por Caetano Veloso. Retenho:
Eu preciso aprender mais de Deus/ Porque Ele é quem
cuida de mim// Se uma porta se fecha aqui/ Outras portas se abrem ali/ … Deus
cuida de mim/ Na sombra das Suas asas/ Deus cuida de mim/ Eu amo a Sua casa/ E
não ando sozinho/ Não estou sozinho, pois sei/ Deus cuida de mim…
A alegria deste poema é
realçada, não apenas pela voz de Caetano Veloso e de Kleber, mas também pela
pequena orquestra de jovens, raparigas e rapazes.
Quando ouvi Deus cuida
de mim, lembrei-me que, desde o Génesis ao Apocalipse, passando pelo
capítulo 25 de S. Mateus e pelo capítulo 10 de S. Lucas, entre outros, me pede
para eu não me esquecer desta sua interrogação: Que fizeste do teu irmão?
A alegria verdadeiramente humana
nasce da partilha. Esta é a mensagem de Natal, diz a liturgia deste Domingo.
11 Dezembro 2022
[1] Cf.
Genealogia de Jesus, segundo S. Mateus e S. Lucas com perspectivas diferentes
porque, na de Mateus é a história de Israel e, na de Lucas, é a história da
humanidade.
[2] 1Jo 1,
1-4
[3] Lc 1,
1-4; não se contentou, escreveu depois a 1ª história da Igreja (Actos dos
Apóstolos)
[4] 1Cor 15
[5] 1Cor 11,
17-34. É o primeiro escrito que nos chegou da instituição da Eucaristia.
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