1. Os
negacionistas, que atribuíam a intenções malévolas as notícias sobre os abusos
sexuais do clero, já não podem ignorar o Relatório Final da Comissão
Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica
Portuguesa (CI). Está publicado e muito acessível.
Esta Comissão não foi
constituída contra a Igreja. Pelo contrário, é fruto de um convite dirigido a
Pedro Strecht, médico pedopsiquiatra, no final de 2021, por parte de D. José
Ornelas, presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP). A equipa de
trabalho foi escolhida por Pedro Strecht e organizada de forma paritária,
multidisciplinar, integrando profissionais de reconhecido mérito e com
diferentes percursos de vida. Iniciou os seus trabalhos em Janeiro de 2022,
definindo o tempo de um ano como prazo de duração dos mesmos, com a
apresentação final de um relatório que acaba de ser apresentado e publicado, na
Fundação Calouste Gulbenkian. Foi entregue a D. José Ornelas que se mostrou
muito agradecido, mas só no dia 3 de Março haverá uma assembleia extraordinária
da CEP para análise desse Relatório, sabendo já que vários bispos não ajudaram
nada o trabalho exemplar da dita Comissão.
Espero que, entretanto,
recolha vozes de dentro e fora da Igreja, para encontrar os melhores caminhos
para responder à situação trágica das vítimas dos abusos. Parece-me que a CI
deveria ser convidada para participar na configuração das medidas que o
passado, o presente e o futuro impõem. E não só ela. Como eco do que já revelou
a CI, surgiram, nos meios de comunicação, comentários extremamente pertinentes
e certamente vão continuar. Seria importante que fosse criado um fórum aberto,
não só para ampliar testemunhos das vítimas e o modo de as escutar, mas também
para sugerir as alterações que devem ser promovidas no seio da Igreja e da
sociedade.
No momento em que escrevo,
verifiquei a alta qualidade dos textos publicados no Jornal Público, nos
dias 14,15 e 16, que já constituem um excelente dossier. Teve, este Jornal, o
cuidado de começar por dar expressão a muitas vozes católicas.
Além da atenção contínua às
vítimas do abuso sexual do clero, o Editorial do 7Margens (13.02.2023),
com o título Não foi um meteorito, são pessoas destruídas. Que fazer com
esta tragédia?, António Marujo, Clara Raimundo, Jorge Wemans e Manuel Pinto
perguntam que vamos fazer com esta realidade que foi agora desvendada e que alguns,
inclusive na hierarquia da Igreja, desconsideraram e até ridicularizaram, ao
considerar este país um oásis em questões de abusos? Que vão fazer os
bispos? Que vão fazer os responsáveis políticos? Que vamos fazer todos nós,
enquanto sociedade?
Com o Papa Francisco, desde
o começo até agora (2013-2023), a Igreja Católica, na sua vida interna, nas
suas relações ecuménicas, de diálogo inter-religioso e com o mundo secular,
viveu uma complexidade de experiências como talvez nunca tenha vivido. Foi, no
entanto, a convocatória (21.05.2021) para o Sínodo previsto para 2023,
entretanto alargado até 2024, com uma inédita consulta ao povo cristão em
assembleias paroquiais, diocesanas, nacionais e continentais, que pode vir a
alterar a realidade e o estilo de vida e organização da própria Igreja. O que
se pretende é que a Igreja seja de todos e para todos, isto é, uma Igreja
sinodal: comunhão, participação e missão.
Só quando se tornar prática
corrente este estilo de vida, em Igreja aberta ao mundo sem segredos, é que
será possível erradicar os abusos apresentados no citado Relatório.
Sem esta reforma
fundamental, o clericalismo continuará a exercer o seu poder de dominação e de
ocultação.
2. Foi
esclarecido, entretanto, que o Sínodo não é um evento, mas um processo, no qual
todo o povo cristão é chamado a caminhar junto até que o Espírito Santo o ajude
a discernir qual a vontade do Senhor para a sua Igreja. Por isso, também a própria
Assembleia Sinodal assumirá uma dimensão processual, configurando-se como um
caminho dentro de um caminho, para favorecer uma reflexão mais madura para
o bem maior da Igreja ao serviço de todos os povos, sejam crentes ou não.
Como todos os católicos
foram convocados a participar activamente no processo sinodal, se o não fizeram
a culpa não é do Papa Francisco.
Em Praga, de 5 a 12 de
Fevereiro, realizou-se a fase continental europeia do Sínodo. É impossível
narrar tudo o que aconteceu durante essa semana. Existem várias formas de
acesso a essa vasta documentação, por exemplo, 7Margens, Ecclesia
e Vaticano[1].
Na abertura desta reunião,
Tomás Hallík, um teólogo muito conhecido, fez uma Introdução espiritual aos
trabalhos[2].
Sublinhou que, no caminhar
juntos, que carateriza a sinodalidade, a Igreja precisa urgentemente de
aliados, com quem partilha o caminho comum. Mas, para tal, não deve abordar os
outros com o orgulho e arrogância de quem possui a verdade. A verdade é um
livro que nenhum de nós leu até ao fim. Não somos os donos da verdade, mas
amantes da verdade e amantes d’Aquele que pode dizer: Eu sou a Verdade.
Ao caracterizar a situação actual, este teólogo referiu-se também
ao paradoxo da globalização que caracteriza a pós-modernidade. Por um lado, a
interligação quase universal; por outro, a pluralidade radical. O lado negro da
globalização tem vindo a manifestar-se de forma cada vez mais inquietante.
Pense-se na propagação global da violência, desde os ataques terroristas aos EUA,
em 2001, até ao terrorismo de Estado do imperialismo russo e ao actual
genocídio russo na Ucrânia, sem esquecer pandemias de doenças infeciosas,
destruição do ambiente natural, destruição do clima moral através do
populismo, fake news, nacionalismo, radicalismo político e
fundamentalismo religioso.
3. Entre
as muitas conclusões da Assembleia Continental Europeia (09.02.2023), destaco a
vontade de aprofundar
a prática, a teologia e a hermenêutica da sinodalidade. Temos que
redescobrir algo que é antigo, que pertence à natureza da Igreja e é sempre
novo. Estamos a dar os primeiros passos num caminho que se abre à medida
que o percorremos.
Um dos
grandes problemas que o Sínodo não pode evitar é o de tomar decisões concretas
e corajosas sobre o papel da mulher na Igreja e sobre o seu maior envolvimento
a todos os níveis, também nos processos de tomada de decisão. Não existe um
baptismo cristão para homens e outro diferente para mulheres. É o baptismo assumido
que constitui homens e mulheres sacerdotes. A organização dos ministérios, dos
serviços eclesiais, não pode trair esta realidade de base.
Importa
renovar um vivo sentido de missão, fazendo a ponte entre fé e cultura para que
o Evangelho volte a fazer parte dos sentimentos das pessoas, encontrando
uma linguagem capaz de articular tradição e aggiornamento, mas acima de
tudo, caminhar com as pessoas em vez de falar delas ou para elas. O
Espírito pede-nos para ouvir o grito dos pobres e da terra na Europa e, em
particular, o grito desesperado das vítimas da guerra que exigem uma paz justa.
19 Fevereiro 2023
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