1. O
tema da conspiração contra o Papa Francisco parece inesgotável. Deparei, na Religión Digital, com uma
longa entrevista de Jesus Bonito a Vicens Lozano, autor do livro VaticanGate[1],
a investigação que desvenda as raízes e os protagonistas dessa militante
oposição. A
Espanha estaria à cabeça desse movimento contra Francisco, acompanhada pela
Itália e os Estados Unidos. Com grandes recursos económicos procuram que a
Europa volte a ser a “Europa cristã” anterior ao concílio Vaticano II. O
objetivo é que este Papa renuncie, desapareça quanto antes e voltemos a ter uma
Igreja tradicional, como Deus manda.
Aqui fica o registo dessa obra, mas não estou nada
interessado em alimentar o vício da autorreferencialidade da Igreja.
Como escreveu Enzo Bianchi[2],
«há mais de sessenta anos, desde antes do Concílio, que [a Igreja] só se
preocupa consigo própria. Todos os discursos que temos feito desde então
colocam a Igreja no centro, a Igreja e a sua estrutura, a Igreja e os seus
ministérios, a Igreja e a sua missão, a Igreja e a sua liturgia, sempre e só a
Igreja, obsessivamente, colocada no centro de todos os discursos. E tenho a
impressão de que isto, mesmo que nem todos estejam conscientes disso, frustrou
e cansou as pessoas e não deu esse primado à Palavra do Evangelho, que pelo
menos brilhou durante o Concílio como uma urgência, nem deu essa centralidade a
Cristo que deveria ser objecto de fé, de preocupação, de toda a solicitude
pastoral. Em vez disso, sempre, sempre a Igreja. Creio que este
eclesiocentrismo reinante, do qual não somos capazes de nos despojar, não nos
faz bem, não nos fez nenhum bem. Também esperava que este Sínodo assumisse uma
forma em que Cristo fosse colocado mais no centro, mas em vez disso, ficamos
mais uma vez centrados nos problemas da Igreja»[3].
É breve este texto, mas toca
numa questão essencial. A Igreja não existe para falar dela própria, mas para
celebrar a presença de Cristo no nosso mundo, para nos lembrar que Ele é nosso
contemporâneo em todas as dimensões da vida. Na liturgia cristã, nunca se pode
prescindir da proclamação do Novo Testamento (NT) que fala de um acontecimento
histórico, de há dois mil anos, mas cuja realidade mística, salvífica, atinge
todos os tempos e lugares, acolhida pela fé viva, como confessa e explica Tomás
de Aquino[4].
Além disso, nunca se pode
esquecer que Deus não está dependente da Igreja nem dos sacramentos, como se actuasse
apenas por meio da Igreja e dos sacramentos. Deus misterioso está presente e
actuante em todo o mundo, mas não se impõe à liberdade humana. Quando se dizia
que fora da Igreja não há salvação, estávamos inconscientemente a dizer
que a acção da Igreja restringia a presença de Deus no mundo. A Igreja estaria, segundo essa falsa concepção,
a mandar em Deus e na sua liberdade. Deixava de ser uma mediação do divino para
se tornar proprietária de Deus. Isso seria um puro absurdo teológico.
É a própria Igreja institucional
que não pode aceitar esse exclusivismo eclesial. Seria um atentado contra Deus
e o Seu mistério insondável. A missão essencial das igrejas consiste em
proclamar que, em Jesus de Nazaré, Deus revelou-se nosso irmão para nos dizer
que, fora do trabalho por um mundo de irmãos, não há salvação.
2. As
comunidades cristãs nasceram da convicção de que Jesus de Nazaré não
desapareceu com a sua morte. Todos os textos confessam que Deus O ressuscitou.
Continua vivo. Como escreveu Frederico Lourenço, esses textos, «por terem sido
escritos num grego despretensioso, sem vestígios da sumptuosidade verbal dos
grandes autores helénicos, é provável que estes quatro textos nem merecessem ao
leitor culto da época o alto estatuto de literatura. No entanto, estes textos
conquistaram o mundo antigo, tanto grego como romano. Lendo-os dois mil anos
depois, não é difícil perceber porquê. Sobre um desses textos já se escreveu
que se trata do “mais divino de todos os livros divinos”: na verdade, essa
descrição assenta a qualquer um deles. São textos que – com a sua mensagem
sublime veiculada por palavras cuja beleza desarmante ainda deixa arrepiado
quem os leu e releu ao longo de uma vida inteira – estão simplesmente numa
categoria à parte»[5].
Não se deve contrapor Cristo
e as comunidades cristãs. Do ponto de vista histórico, as comunidades cristãs das
origens não nasceram com o apóstolo dos gentios, mas precederam-no. Paulo
reconhece a sua dívida em relação a essas comunidades. Na Carta aos Gálatas, recordando
a importantíssima assembleia de Jerusalém que acolheu os gentios na Igreja, que
era só de Judeus, escreve: «Para que não corresse o risco de correr em vão (…)
estenderam-me a sua mão direita em sinal de comunhão»[6].
Paulo não cultivava a mística do isolamento, mas da comunhão.
3. José
Tolentino Mendonça, numa obra encantadora para reler S. Paulo, observa: «Não
admira que nas gerações seguintes, junto dos Padres da Igreja dos séculos I e
II, se tenha assistido a uma certa marginalização de Paulo, ou a uma
desconfiança persistente. Como escreve Pierre-Marie Beaude, “eles estavam
preocupados com a disciplina, a criação de estruturas estáveis, sublinhando a
importância dos ritos identitários – tudo coisas que não estavam no horizonte do
pensamento metafórico do apóstolo”. Para Paulo, a Igreja está destinada a
habitar uma contínua transformação. E que transformação é essa? O
epistolário paulino não deixa margem para dúvidas: essa transformação é
mística. Não é certamente por acaso que Paulo utiliza fórmulas do domínio da
mística para descrever, não um exercício de piedade individual, mas o
itinerário básico de todo o crente. Acolher continuamente o Espírito e
tornar-se portador de Cristo é a condição normal e vulgar de todo o cristão»[7].
A festa da Ascensão não é uma evasão da história, mas a universalização da Sua
presença.
Tomás de Aquino, no interior
de uma obra imensa e muito arrazoada para nos dar razões da nossa fé e da nossa
esperança, afirma, de uma forma muito enxuta, que o que há de essencial no
NT é a graça do Espírito Santo acolhida na fé. Tudo o resto é só para
ajudar[8].
A história das igrejas
mostra que aquilo que foi concebido para ajudar corre o risco de se transformar,
muitas vezes, no centro de todas as preocupações. Bergoglio vê aí uma das
patologias da Igreja que se tem mostrado muito difícil de curar, mas quem se
deixa possuir pelo Espírito de Cristo não desiste nem pode desistir da verdadeira
reforma da Igreja.
21 Maio 2023
[1] RD, 01.05.2023;
Roca Editorial, Março 2023
[2] Enzo
Bianchi, fundador e ex-prior do Mosteiro de Bose e da comunidade religiosa
ecuménica, Comunità di Bose.
[3] Cf. Luís
Castro, As raízes do dinamismo sinodal da Igreja nos Actos dos Apóstolos, in
Igreja e Missão, 251 (Set.-Dez. 2022), Ano 75, pp. 255-256
[4] ST, III Pars, q. 48 e 49
[5]
Frederico Lourenço, Bíblia I. Novo Testamento. Os Quatro Evangelhos,
Quetzal, 2016, p. 22
[6] Gal 2, 2.9
[7] José
Tolentino Mendonça, Metamorfose necessária. Reler São Paulo, Quetzal,
2022, pp. 150-151
[8] Cf. ST
I-II, qq. 106-108
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