segunda-feira, 29 de maio de 2023

SONHOS DO UNIVERSALISMO CRISTÃO Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. Podemos chamar etiologias míticas às narrativas que tentam explicar a origem de certas crenças, costumes, rituais, memórias, acontecimentos e monumentos que escapam à evidência racional. A Torre de Babel, de que fala a Bíblia (Génesis 11, 1-9), situa-se nesse universo mítico. As dificuldades que a multiplicidade das línguas nos causa seria um castigo divino.

O melhor é começar por ler essa célebre narrativa: «Em toda a Terra, havia somente uma língua e empregavam-se as mesmas palavras. Emigrando do oriente, os homens encontraram uma planície na terra de Chinear e nela se fixaram. Disseram uns para os outros: vamos fazer tijolos e cozamo-los ao fogo. Utilizaram o tijolo em vez da pedra e o betume serviu-lhes de argamassa. Depois disseram: vamos construir uma cidade e uma torre, cujo cimo atinja os céus. Assim, havemos de nos tornar famosos e evitamos que nos dispersemos por toda a superfície da Terra».

Ficamos com a ideia de que Deus ficou assustado com esta ousadia dos seres humanos que ambicionavam transformar-se em seus rivais.

«O Senhor reagiu: Eles constituem apenas um povo e falam uma única língua. Se principiaram desta maneira, coisa nenhuma os impedirá, de futuro, em realizarem todos os seus projectos. Vamos, pois, descer e confundir de tal modo a sua linguagem que não consigam compreender-se uns aos outros.

«E o Senhor dispersou-os dali por toda a superfície da Terra e suspenderam a construção da cidade. Por isso, foi-lhe dado o nome de Babel, visto ter sido lá que o Senhor confundiu a linguagem de todos os habitantes da Terra e foi também dali que o Senhor os dispersou».

Este mito etiológico não vem apenas na Bíblia. Esta recebe-o da cultura ambiente. Tem paralelos sumério e assírio, greco-romano e outras tradições antigas[1]. Está colado à experiência humana muito dolorosa de querer comunicar com outros seres humanos e não conseguir por causa de línguas diferentes.

Vendo bem, o que parece assustar a Deus é a destruição da diversidade humana: não aceita uma só língua para todos os povos. É uma apologia da diversidade e do apreço por todas as diferenças culturais. A tendência para a uniformidade é imperialista, totalitária, elimina a diferença em favor do mais forte, do mais poderoso.

Já me referi, várias vezes, a um texto exemplar de J. P. Audet, um grande exegeta, no qual sustenta que, na Bíblia, não existe o equivalente do mito de Prometeu tal como este vem apresentado em Hesíodo e Ésquilo.

Nesse mito, os deuses escondem aos seres humanos o segredo da vida feliz. Aquilo que os seres humanos precisam para fazer a sua vida, por sua conta e risco, o fogo (ciências e técnicas), tem de ser arrancado aos deuses contra a sua vontade, como o fez Prometeu. Deuses e seres humanos são rivais. A felicidade dos deuses é a desgraça dos seres humanos e a felicidade dos seres humanos é uma usurpação aos deuses. Nada disto na Bíblia. Aí, a terra é dada ao homem e à mulher para que a dominem e façam dela a sua morada.

A pastorícia, a agricultura, a música, as técnicas, os negócios, as ciências e a sabedoria não são roubos a Deus. São acontecimentos normalíssimos, embora não assim o trabalho escravizante, fruto de um ser humano que se desorienta e desorienta a vida toda, que se perde do seu irmão e perde o seu irmão[2].

2. Estamos a celebrar a festa cristã do Pentecostes. Conheci muito bem uma leitura que contrapunha radicalmente o mito de Babel ao Pentecostes cristão. Era só este o defensor da diversidade. Na leitura que acabei de fazer, este contraste fica muito atenuado.

O Pentecostes cristão inscreve-se numa tradição judaica, numa festa agrícola, na qual, é celebrada a entrega dos Dez Mandamentos no Monte Sinai (a Lei), 50 dias depois do Êxodo.

Para S. Lucas, os Actos dos Apóstolos são a primeira história da Igreja. É o próprio Lucas que o conta.

«No meu primeiro livro, ó Teófilo, narrei as obras e os ensinamentos de Jesus, desde o princípio até ao dia em que, depois de ter dado, pelo Espírito Santo, as suas instruções aos Apóstolos que escolhera, foi arrebatado ao Céu»[3].

«Quando chegou o dia do Pentecostes, encontravam-se todos reunidos no mesmo lugar. De repente, ressoou, vindo do céu, um som comparável ao de forte rajada de vento, que encheu toda a casa onde eles se encontravam. Viram então aparecer umas línguas, à maneira de fogo, que se iam dividindo, e poisou uma sobre cada um deles.

«Ficaram todos cheios do Espírito Santo e começaram a falar outras línguas, conforme o Espírito lhes inspirava que se exprimissem. Ora, residiam em Jerusalém judeus piedosos provenientes de todas as nações que há debaixo do céu. Ao ouvir aquele ruído, a multidão reuniu-se e ficou estupefacta, pois cada um os ouvia falar na sua própria língua. Atónitos e maravilhados, diziam: Mas esses que estão a falar não são todos galileus? Que se passa então, para que cada um de nós os oiça falar na nossa língua materna? (…) Ouvimo-los anunciar, nas nossas línguas, as maravilhas de Deus!

«Estavam todos assombrados e, sem saber o que pensar, diziam uns aos outros: Que significa isto? Outros, por sua vez, diziam, troçando: Estão cheios de vinho doce.

«De pé, com os Onze, Pedro ergueu a voz e dirigiu-lhes então estas palavras: Homens da Judeia e todos vós que residis em Jerusalém, ficai sabendo isto e prestai atenção às minhas palavras. Não, estes homens não estão embriagados como imaginais, pois, apenas vamos na terceira hora do dia. Mas tudo isto é a realização do que disse o profeta Joel: Nos últimos dias, diz o Senhor, derramarei o meu Espírito sobre toda a criatura. Os vossos filhos e as vossas filhas hão-de profetizar; os vossos jovens terão visões e os vossos velhos terão sonhos»[4].

Sem a subversão da festa judaica do Pentecostes – da Lei do Sinai – não haveria a festa aberta a todos os povos de todas as línguas e culturas. É o anúncio da única globalização desejável, a do Espírito que tudo fecunda, sem nada apagar.

3. O Evangelho de S. João, ao terminar, adverte: «Jesus realizou muitos outros sinais na presença dos discípulos, que não estão escritos neste livro. Mas estas coisas foram escritas para que acrediteis que Jesus é o Cristo, o filho de Deus e, para que, acreditando, tenhais vida em nome dele».

Este Evangelho concentrou tudo no dia de Páscoa: «Ao entardecer no mesmo dia, primeiro da semana, e estando as portas trancadas onde estavam os discípulos devido ao medo dos judeus, veio Jesus e pôs-se de pé no meio deles e diz-lhes: Paz para vós. E dizendo isto, mostrou-lhes as mãos e o lado. Então os discípulos alegraram-se ao verem o Senhor. Jesus falou-lhes de novo: Paz para vós. Tal como o Pai me enviou, eu envio-vos a vós. E dizendo isto, soprou e diz-lhes: Recebei o Espírito Santo».

O seu Pentecostes deve tornar-se a missão da Igreja entre todos os povos, de todos os tempos. É o sonho do universalismo cristão!

 

 

28 Maio 2023



[1] Cf. Wikipédia

[2] Cf. J. P. Audet, La revanche de Promété ou le drama de la religion et de la culture, Rev. Biblique, 73 (1964) 5-29

[3] Act 1, 1-2

[4] Act 2, 1-17

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