1. Gostei
muito do artigo de Guilhermina Gomes publicado, no Jornal de Letras (JL),
de 11 a 25 de Julho 2023, intitulado Um ‘legado’: a visão da História. Também
gostei que me tivesse associado ao José Mattoso (JM) por razões diferentes.
Algumas pessoas lamentaram não ter reproduzido, na crónica anterior, a história
da nossa amizade. Não é desta longa história que vou falar, mas com alguma
relutância, vou reproduzir o email que recebi do JM, no ano passado:
«Parece que fazes
anos hoje. Não é mérito meu lembrar-me da data, mas a Lucy, sempre atenta ao
calendário, não deixou de me assinalar o dia, e eu estou-lhe muito grato por
isso. A nossa amizade vem de longe, e és para mim uma das pessoas que mais
estimo e admiro, não só como pessoa, mas sobretudo pelo exemplo da tua vida
como cristão e como religioso. Desde que participei nas tuas aulas de teologia
e espiritualidade em Fátima, há já tantos anos, foste sempre para mim o
testemunho concreto da vida cristã como ela deve ser vivida nos dias de hoje.
És para mim um dom que agradeço a Deus de todo o coração. Sei que a tua saúde é
já frágil (como a minha), e faço votos para que ela continue o tempo que Deus
quiser, sem impedir o teu apostolado, que continuo a seguir graças ao cuidado
que a Lucy tem em me mandar semanalmente os textos das tuas homilias, que leio
e saboreio com grande devoção. Não sei até quando, mas o tempo deixou de contar
para mim e só espero que mais dia, menos dia, o tempo nos aproxime mais ainda,
até que o espaço deixe para sempre de nos separar. Teu muito amigo, José Mattoso».
É estranho que, no momento em que devia falar deste amigo,
consenti em que fosse ele a exprimir o sentido da nossa amizade. De facto,
recebi dele tanto que me achava ridículo escrever sobre ele, embora fosse seu
leitor e confidente de longa data. Desejo que as novas gerações saibam
descobrir as dimensões da sua imensa obra multifacetada.
2. A
Jornada Mundial da Juventude (JMJ) está à porta. É apresentada como um encontro dos jovens de todo o mundo com o Papa.
É, simultaneamente, uma peregrinação, uma festa da juventude, uma
expressão da Igreja universal e um momento forte de evangelização do mundo
juvenil. É um convite a uma geração determinada em construir um mundo mais
justo e solidário. Com uma identidade claramente católica, é aberta a todos,
quer estejam mais próximos ou mais distantes desta Igreja.
Ao ser uma
Jornada Mundial, não podemos fazer de conta que a juventude é a mesma em todos
os países e no interior de cada país. Essa ficção só poderá criar equívocos acerca do alcance
desta grande festa.
Muitos vão receber o Papa Francisco como o mais jovem desta
peregrinação. O melhor é o respeito e o diálogo entre todas as gerações, no
sentido do profeta Joel: «Nos últimos dias, diz o Senhor, derramarei o meu Espírito
sobre toda a criatura. Os vossos filhos
e as vossas filhas hão-de profetizar; os vossos jovens terão visões e os vossos
velhos terão sonhos»[1].
Seja qual for o motivo da adesão a esta Jornada,
é de esperar que seja, por isso, um grande momento de conversão. Se o encontro
é também com este Papa, espera-se que estes dias sirvam para uma alteração de
mentalidades, no sentido em que ele próprio apresentou, quando foi desafiado a explicar os seus 10 anos de
pontificado[2].
Seja em que país for, sejam quais forem as
tendências da juventude, parece-me que um dos aspectos da conversão é recuperar
o nosso vínculo com o mundo natural, no sentido que lhe deu Karen Armstrong.
Lembra-nos como, no princípio dos tempos, a humanidade se maravilhou com a
natureza e viu o seu lado divino. Nos escritos de grandes pensadores de várias
religiões, o mundo natural inspira todos os sentimentos, do medo e da
reverência à contemplação serena. Deus, ou o que for que represente o
transcendente para nós, está presente em tudo. Mas, hoje, quando admiramos uma
árvore ou uma paisagem majestosa, raramente vemos a natureza como sagrada[3].
3. O Evangelho deste Domingo é feito de parábolas,
sobre o Reino dos Céus. Este é semelhante a um tesouro escondido num campo, que
um homem encontra. Volta a escondê-lo e, cheio de alegria, vai, vende tudo o
que possui e compra o campo. É também semelhante a um negociante
que busca boas pérolas. Tendo encontrado uma pérola de
grande valor, vende tudo quanto possui e compra a pérola. É
ainda semelhante a uma rede que, lançada ao mar, apanha toda a espécie de
peixes. Logo
que ela se enche, os pescadores puxam-na para a praia, sentam-se e escolhem os
bons para as canastras e os ruins deitam-nos fora. Por isso,
todo o doutor da Lei instruído acerca do Reino dos Céus é semelhante a um pai
de família, que tira coisas novas e velhas do seu tesouro[4].
Como escreveu José Augusto Mourão (JAM), a linguagem das
parábolas permite sugerir sentidos recônditos, estabelecer paralelos
insuspeitados, revelar harmonias misteriosas, mas sobretudo confrontar o
sujeito com a verdade das suas orientações de fundo. O Evangelho oferece-se à
leitura como Cristo se ofereceu ao mundo. Entrega-se nas nossas mãos com a sua
pobre linguagem crucificada.
Na mesma obra, JAM lembra-nos que o essencial é
hoje – hoje ou nunca – não há meias medidas. Entrai a fundo no essencial o mais
terrível na vida: ter medo a ponto de perder Deus de vista. Deus apazigua-nos
quando o pânico nos toma porque ele é rochedo, cidadela que à sombra das suas
asas nos abriga – passo a noite a pensar em vós porque vos tornastes o meu
refúgio. Ele é o novo. A sabedoria é manter-se atento, não deixar esmorecer
a esperança.
Abrigam-se no desejo raízes de eternidade. O
desejo é a alma da oração, dizia Santo Agostinho. É sempre na fé, na esperança
e no amor, pela continuidade do desejo, que rezamos sempre. Jordão de Saxónia
dizia que o estudo e a oração eram tão necessários como comer e beber. O que
está em jogo na oração é fazer reviver os ossos ressequidos que nós somos. Não
basta dizer mais orações, podem sufocar-nos. A oração é êxodo e cura das fantasias
ou ferida contemplativa (Paul Murray). A sabedoria ensina-nos a
espiritualidade do caminho: o gosto e o medo do desconhecido, a camaradagem no
caminho, o sentido da amizade de Deus, a mobilidade, o destaque das Escrituras,
a alegria de viver em conjunto, na doçura da fraternidade.
Desperta, abre os olhos e vê a que madrugas (Vieira). Vigiai, madrugai para o louvor, não
para o ídolo! Que a sabedoria permaneça sentada à nossa porta. E que o desejo
em nós nunca adormeça: Não adormeça na noite escura, ilumina meus olhos,
Senhor, tua voz me acorde[5].
Estas crónicas vão de férias até Setembro se o Público
tiver paciência para elas.
30 Julho 2023
[1] Act 2,
17
[2]
Francesca Ambrogetti e Sergio Rubin, O Pastor, Paulinas Editora, 2023
[3] Natureza
Sagrada. Recuperar o nosso vínculo com o mundo natural, Temas &
Debates, Círculo dos Leitores, 2023
[4] Cf. Mt
13, 44-52
[5] Cf. José
Augusto Mourão, Luz Desarmada, Prefácio, 2006, pp. 127. 160. 140-141
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