quarta-feira, 2 de agosto de 2023

O ESSENCIAL É A SABEDORIA DO AMOR Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. Gostei muito do artigo de Guilhermina Gomes publicado, no Jornal de Letras (JL), de 11 a 25 de Julho 2023, intitulado Um ‘legado’: a visão da História. Também gostei que me tivesse associado ao José Mattoso (JM) por razões diferentes. Algumas pessoas lamentaram não ter reproduzido, na crónica anterior, a história da nossa amizade. Não é desta longa história que vou falar, mas com alguma relutância, vou reproduzir o email que recebi do JM, no ano passado:

«Parece que fazes anos hoje. Não é mérito meu lembrar-me da data, mas a Lucy, sempre atenta ao calendário, não deixou de me assinalar o dia, e eu estou-lhe muito grato por isso. A nossa amizade vem de longe, e és para mim uma das pessoas que mais estimo e admiro, não só como pessoa, mas sobretudo pelo exemplo da tua vida como cristão e como religioso. Desde que participei nas tuas aulas de teologia e espiritualidade em Fátima, há já tantos anos, foste sempre para mim o testemunho concreto da vida cristã como ela deve ser vivida nos dias de hoje. És para mim um dom que agradeço a Deus de todo o coração. Sei que a tua saúde é já frágil (como a minha), e faço votos para que ela continue o tempo que Deus quiser, sem impedir o teu apostolado, que continuo a seguir graças ao cuidado que a Lucy tem em me mandar semanalmente os textos das tuas homilias, que leio e saboreio com grande devoção. Não sei até quando, mas o tempo deixou de contar para mim e só espero que mais dia, menos dia, o tempo nos aproxime mais ainda, até que o espaço deixe para sempre de nos separar. Teu muito amigo, José Mattoso».

É estranho que, no momento em que devia falar deste amigo, consenti em que fosse ele a exprimir o sentido da nossa amizade. De facto, recebi dele tanto que me achava ridículo escrever sobre ele, embora fosse seu leitor e confidente de longa data. Desejo que as novas gerações saibam descobrir as dimensões da sua imensa obra multifacetada.

2. A Jornada Mundial da Juventude (JMJ) está à porta. É apresentada como um encontro dos jovens de todo o mundo com o Papa. É, simultaneamente, uma peregrinação, uma festa da juventude, uma expressão da Igreja universal e um momento forte de evangelização do mundo juvenil. É um convite a uma geração determinada em construir um mundo mais justo e solidário. Com uma identidade claramente católica, é aberta a todos, quer estejam mais próximos ou mais distantes desta Igreja.

Ao ser uma Jornada Mundial, não podemos fazer de conta que a juventude é a mesma em todos os países e no interior de cada país. Essa ficção só poderá criar equívocos acerca do alcance desta grande festa.

Muitos vão receber o Papa Francisco como o mais jovem desta peregrinação. O melhor é o respeito e o diálogo entre todas as gerações, no sentido do profeta Joel: «Nos últimos dias, diz o Senhor, derramarei o meu Espírito sobre toda a criatura.  Os vossos filhos e as vossas filhas hão-de profetizar; os vossos jovens terão visões e os vossos velhos terão sonhos»[1].

Seja qual for o motivo da adesão a esta Jornada, é de esperar que seja, por isso, um grande momento de conversão. Se o encontro é também com este Papa, espera-se que estes dias sirvam para uma alteração de mentalidades, no sentido em que ele próprio apresentou, quando foi desafiado a explicar os seus 10 anos de pontificado[2].

Seja em que país for, sejam quais forem as tendências da juventude, parece-me que um dos aspectos da conversão é recuperar o nosso vínculo com o mundo natural, no sentido que lhe deu Karen Armstrong. Lembra-nos como, no princípio dos tempos, a humanidade se maravilhou com a natureza e viu o seu lado divino. Nos escritos de grandes pensadores de várias religiões, o mundo natural inspira todos os sentimentos, do medo e da reverência à contemplação serena. Deus, ou o que for que represente o transcendente para nós, está presente em tudo. Mas, hoje, quando admiramos uma árvore ou uma paisagem majestosa, raramente vemos a natureza como sagrada[3].

3. O Evangelho deste Domingo é feito de parábolas, sobre o Reino dos Céus. Este é semelhante a um tesouro escondido num campo, que um homem encontra. Volta a escondê-lo e, cheio de alegria, vai, vende tudo o que possui e compra o campo. É também semelhante a um negociante que busca boas pérolas. Tendo encontrado uma pérola de grande valor, vende tudo quanto possui e compra a pérola. É ainda semelhante a uma rede que, lançada ao mar, apanha toda a espécie de peixes. Logo que ela se enche, os pescadores puxam-na para a praia, sentam-se e escolhem os bons para as canastras e os ruins deitam-nos fora. Por isso, todo o doutor da Lei instruído acerca do Reino dos Céus é semelhante a um pai de família, que tira coisas novas e velhas do seu tesouro[4].

Como escreveu José Augusto Mourão (JAM), a linguagem das parábolas permite sugerir sentidos recônditos, estabelecer paralelos insuspeitados, revelar harmonias misteriosas, mas sobretudo confrontar o sujeito com a verdade das suas orientações de fundo. O Evangelho oferece-se à leitura como Cristo se ofereceu ao mundo. Entrega-se nas nossas mãos com a sua pobre linguagem crucificada.

Na mesma obra, JAM lembra-nos que o essencial é hoje – hoje ou nunca – não há meias medidas. Entrai a fundo no essencial o mais terrível na vida: ter medo a ponto de perder Deus de vista. Deus apazigua-nos quando o pânico nos toma porque ele é rochedo, cidadela que à sombra das suas asas nos abriga – passo a noite a pensar em vós porque vos tornastes o meu refúgio. Ele é o novo. A sabedoria é manter-se atento, não deixar esmorecer a esperança.

Abrigam-se no desejo raízes de eternidade. O desejo é a alma da oração, dizia Santo Agostinho. É sempre na fé, na esperança e no amor, pela continuidade do desejo, que rezamos sempre. Jordão de Saxónia dizia que o estudo e a oração eram tão necessários como comer e beber. O que está em jogo na oração é fazer reviver os ossos ressequidos que nós somos. Não basta dizer mais orações, podem sufocar-nos. A oração é êxodo e cura das fantasias ou ferida contemplativa (Paul Murray). A sabedoria ensina-nos a espiritualidade do caminho: o gosto e o medo do desconhecido, a camaradagem no caminho, o sentido da amizade de Deus, a mobilidade, o destaque das Escrituras, a alegria de viver em conjunto, na doçura da fraternidade.

Desperta, abre os olhos e vê a que madrugas (Vieira). Vigiai, madrugai para o louvor, não para o ídolo! Que a sabedoria permaneça sentada à nossa porta. E que o desejo em nós nunca adormeça: Não adormeça na noite escura, ilumina meus olhos, Senhor, tua voz me acorde[5].

Estas crónicas vão de férias até Setembro se o Público tiver paciência para elas.

 

 

30 Julho 2023



[1] Act 2, 17

[2] Francesca Ambrogetti e Sergio Rubin, O Pastor, Paulinas Editora, 2023

[3] Natureza Sagrada. Recuperar o nosso vínculo com o mundo natural, Temas & Debates, Círculo dos Leitores, 2023

[4] Cf. Mt 13, 44-52

[5] Cf. José Augusto Mourão, Luz Desarmada, Prefácio, 2006, pp. 127. 160. 140-141

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