segunda-feira, 25 de setembro de 2023

“Queria extinguir o inferno e... incendiar o céu!” - Pe. João..MC

 Queria extinguir o inferno e... incendiar o céu!”

 

Ano A - 25º Domingo do Tempo Comum
Mateus 20,1-16: “Ide vós também para a vinha”.

 

Iniciamos hoje um ciclo de três parábolas de Jesus sobre a vinha: a parábola dos trabalhadores contratados por um proprietário para trabalhar na sua vinha, neste domingo; a parábola dos dois filhos enviados a trabalhar na vinha, no próximo domingo; e, finalmente, a parábola dos vinhateiros assassinos, no domingo seguinte. 

 

1. Uma bondade escandalosa

A parábola chama a atenção, em primeiro lugar, para o comportamento insólito do dono da vinha, que vai à praça cinco vezes para arranjar trabalhadores: às 6h, às 9h, ao meio-dia, às 15h e até às 17h, uma hora antes do fim do dia de trabalho! O cerne da história reside no contraste entre os trabalhadores contratados de madrugada e os da undécima hora, a quem o patrão paga o mesmo: um denário a cada um, o salário acordado com os primeiros. Mas o que se torna irritante e provocador no comportamento do patrão é o facto de ele fazer esperar os primeiros para presenciarem a sua generosidade para com os últimos. Isto, num primeiro momento, suscita as expectativas dos primeiros, que acreditam que ele é um patrão bom e generoso, para depois suscitar o seu protesto, julgando-o, pelo contrário, um patrão injusto. E mais intrigante ainda é a conclusão de Jesus: “Assim, os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos”. Que parábola estranha! 

 

2. Um golpe contra a meritocracia!

É quase certo que esta parábola, que só encontramos no evangelho de Mateus, tem como alvo um certo número de crentes da primeira hora, provenientes do judaísmo, que se consideravam superiores e com mais direitos do que os da última hora, os pagãos recém-convertidos. Esta situação na comunidade de Mateus não é, infelizmente, anacrónica. Ainda hoje há “supercristãos” assim. E ai de nós, padres, se por acaso os pusermos contra nós, pois podem ser dos mais empenhados da comunidade, os bons! De facto, nós mesmos podemos ser de esses tais. Explico-me.

Durante séculos, fomos educados numa espiritualidade de “meritocracia”! Multiplicar as boas obras para acumular méritos no céu, diante de Deus, de modo a ter uma bela recompensa no paraiso. Mas será que a salvação é realmente alcançada desta forma? Já a primeira leitura nos adverte: “Os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, os vossos caminhos não são os meus caminhos”! A salvação será sempre um dom. Não é um direito adquirido por ter “suportado o peso do dia e do calor” (v. 12); ou um salário devido a quem faz determinadas obras. 

Mas, se o mérito não tem direitos, porquê fazer muito esforço? Porque é que eu havia de entrar no seminário aos dez anos e tornar-me missionário? Não teria sido melhor casar e levar uma vida “normal” como toda a gente? É assim que raciocinam aqueles que concebem o Evangelho como um fardo, um esforço, um sacrifício e uma servidão, e não como uma boa nova, como um golpe de sorte que nos fez encontrar um tesouro no campo da nossa vida. 

 

3. A vida cristã vivida como escravo, servo ou filho

A vida cristã pode ser vivida com três atitudes e comportamentos diferentes: a do escravo que teme o castigo, para quem Deus é um juiz; a do servo que trabalha por interesse, para quem Deus é um patrão; e a do filho que trabalha desinteressadamente, por amor, para quem Deus é um Pai

Na realidade, porém - e isto é que é estranho! - o Evangelho parece dirigir-se a estas três classes de pessoas com a sua própria linguagem e expectativas. Com efeito Jesus diz:“Aquele que disser [ao seu irmão]: estupido, será destinado ao fogo da geena (Mateus 5,22). A Pedro, que lhe pergunta: “Eis que deixámos tudo e te seguimos; que teremos então?”, Jesus responde: “Sentar-vos-eis [comigo] em doze tronos para julgar as doze tribos de Israel”. E àqueles que deixam tudo para o seguir, promete o “cêntuplo”. Jesus conclui dizendo: “Muitos dos primeiros serão os últimos, e muitos dos últimos serão os primeiros”, o que, por coincidência, enquadra o evangelho de hoje! (Mateus 19,27-30). 

Embora saibamos que é uma forma de enfatizar o seu discurso, porque é que Jesus usa a linguagem de castigo da “geena” (7 vezes em Mateus)? Porque é que Jesus usa tanto a palavra “recompensa” (uma dúzia de vezes em Mateus)? É certo que, para Jesus, Deus é o “Pai” (mencionado cerca de quarenta vezes no evangelho de Mateus, incluindo “Meu Pai”, 16 vezes, e “Vosso Pai”, 14 vezes). O Pai quer filhos, não servos e muito menos escravos! E o objetivo da missão de Jesus é tornar-nos semelhantes ao Pai: “para que sejais filhos do vosso Pai que está nos céus” (Mateus 5,45). Deus gostaria que todos nós fôssemos filhos que o procuram por amor. Infelizmente, muitas vezes o que nos move é o medo ou o interesse próprio. E quem sabe se mesmo uma motivação imperfeita pode servir em certos momentos da vida! E Deus emprega-os porque não quer perder nenhum dos seus filhos!

Surpreendentemente, esta convicção de que Deus deve ser servido por amor, e não por interesse ou medo, aparece também noutros contextos religiosos. O testemunho de uma mística sufi muçulmana do século VIII, Rabia de Basra, é eloquente: “Queria incendiar o paraíso e extinguir o inferno para que estes dois véus desaparecessem e os Seus servos O adorassem sem esperar recompensas e sem temer castigos”. 

 

Para reflexão pessoal

- Que motivação prevalece na minha relação com Deus: o medo, o interesse ou o amor?
- Que responderia à provocação de alguém: “Se o céu não existisse, continuaria a acreditar em Deus?”
- Medita no belo testemunho de S. Paulo na segunda leitura de hoje: “Para mim, o viver é Cristo”.

P. Manuel João Pereira, Comboniano
Castel d'Azzano (Verona) 22 de setembro de 2023

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