segunda-feira, 30 de outubro de 2023

A QUEM PODERÁ INTERESSAR O SINODO? Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. Quando comentava com um amigo o pouco interesse manifestado nos meios de comunicação pelo Sínodo da Igreja Católica, observou-me que, antes de mais, era preciso mostrar o seu interesse para além do âmbito confessional.  António Marujo, director do 7Margens, que tem acompanhado o andamento do Sínodo, conta a reacção de três cardeais – um austríaco, um mexicano, ambos veteranos, e um terceiro francês, mais novato – ao silêncio para o exterior que foi pedido aos participantes do Sínodo para evitar a polarização interna.

O cardeal austríaco Christoph Schönborn, em conversa recente com o economista Jeffrey Sachs, contou-lhe que na assembleia sinodal se procura fazer um exercício de escuta dos argumentos de cada participante que nela intervém – há um tempo de silêncio após um conjunto de meia dúzia de intervenções. «Ah – suspirou o economista – se o Conselho de Segurança da ONU fizesse só um bocadinho assim, talvez o mundo tivesse um pouco mais de paz!»

O Papa Francisco procurou alargar o tempo para a recuperação da sinodalidade de toda a Igreja e não, apenas, dos Bispos. Era essa a antiga forma de ser Igreja – Igreja de todos e para todos – reafirmada no Vaticano II e depressa esquecida. Estava previsto só para 2021-2023. Esta data ficou, apenas, como a sua primeira fase a terminar neste Domingo[1].

O resultado desta primeira sessão será retomado pelos diferentes movimentos, paróquias e dioceses até Outubro de 2024, recolhendo novos contributos para a segunda sessão deste importante acontecimento.

Durante a primeira fase, eclodiu uma guerra devastadora que envolve Israel e Palestina. Consta que o arcebispo católico da província paquistanesa de Punjab, a mais populosa do país e lar de grande parte da comunidade cristã, exortou os fiéis a evitarem hinos litúrgicos e salmos de louvor a Israel, temendo uma possível reação negativa, naquela nação de maioria muçulmana[2].

Não há razões para escândalo. De facto, no Antigo Testamento (AT) existem dois iaveísmos. Um nacionalista, baseado na história das relações entre Iavé e Israel, e outro cósmico que abrange toda a criação, todo o universo, todas as pessoas e todos os seres vivos.

O grande exegeta português da Escola Bíblica de Jerusalém, Francolino Gonçalves, O.P. (1943-2017), insistiu para não se confundirem os dois iaveísmos. Contrariamente à opinião comum, a fé na criação – o iaveísmo cósmico – não é um elemento recente. Constitui a vaga de fundo do universo religioso do AT[3]. A Bíblia não é só o livro de um povo. Nesta perspectiva, pode ser acolhida por todos os povos e acerca de toda a realidade.

2. O Espírito de Cristo – Deus à solta – actua em todo o tempo e lugar, não pede licença às estruturas da Igreja para saber o que pode e deve fazer. O importante é o acolhimento de tudo o que é bom, dentro e fora das Igrejas e o que fazemos ao mundo em que vivemos.

Quando a Igreja assume o mundo em que vivemos na sua complexidade, em todas as suas dimensões, para a sua transformação, como acontece com o Papa Francisco – participante neste Sínodo –, interessa e inquieta pessoas de boa vontade. Podia dar muitos exemplos. Basta-me referir algumas vozes.

Viriato Soromenho-Marques, no comentário à Laudato Deum, exortação apostólica do Papa Francisco, publicada oito anos depois da Laudato Si’, diz que somos o que fazemos ao mundo.

Identifica três características essenciais que unem método e conteúdo neste documento de Francisco. O Papa assume uma perspectiva universal. Pluralismo e multilateralismo não são obstáculos, mas sim condições de possibilidade de uma consentida unidade humana, ecuménica e cosmopolita, no enfrentar dos problemas comuns da humanidade contemporânea.

Em segundo lugar, no pensamento do Papa Francisco vislumbramos um modelo de linguagem que se articula como uma espécie de esperanto, ecuménico e laico. Francisco integra num todo fluido e coerente conhecimentos provenientes das ciências da natureza, das ciências sociais e humanas, da teologia e da filosofia. Os leitores, mesmo com uma formação académica reduzida, desde que dotados de uma genuína curiosidade intelectual, têm na escrita de Francisco o que deve ser a responsabilidade com o presente e o futuro de todos.

Nenhum leitor sairá desta exortação com um sentimento de tranquilidade. O Papa Francisco revela-se como o único líder mundial – religioso, espiritual e político – com coragem inabalável para não voltar as costas aos titânicos desafios do futuro que comprometem a humanidade inteira.

Estou convencido que Francisco quis que, aos leitores, não fosse escondida a verdade sombria de um mundo em perigo. A exortação fala-nos de uma luta gigantesca pela sobrevivência do mundo e de valores que nos conferem dignidade como seres humanos. O que está em causa é a redenção da própria ideia de uma centelha divina habitando no coração da humanidade. A luta decisiva ainda está em curso e é de nós próprios que nascerá a esperança que procuramos. Se falharmos, será a herança e a memória de toda a humanidade histórica que soçobrará[4].

3. Por seu lado, Maria Eugénia Abrunhosa chamou a atenção para o conhecido escritor israelita, Amos Oz (1939-2018). Foi também um grande activista político e defensor da Paz no Médio Oriente. Um ano antes da sua morte foi publicado o seu livro, Caros Fanáticos, já editado em português pela Dom Quixote, que reúne três ensaios.

Define o fanatismo como «a essência perene da natureza humana, o gene mau». Não é característica de um povo ou de uma etnia; é comum a todos os seres humanos. Tudo o que seja diferente do que ele, fanático, pensa, é para demolir, esmagar, matar. O grito tristemente conhecido, viva la muerte, explicita bem este conceito: «A morte, a sua ou a dos outros… se possível muitos, excita e agita a imaginação do fanático». Opõe-se assim à vida, considerando o mundo com desprezo. Pretende reabilitá-lo, sonhando com um paraíso aqui ou noutro mundo, através dessa louca eliminação.

A infantilização da sociedade, a vida levada «como um entretenimento, o seguidismo, a obediência sem reflexão, o desejo de pertencer a um bloco humano muito coeso…» estão relacionados com o fanatismo. Mas há também o «fanatismo antifanático»: exemplo disso é todo o fervor em Israel e no Ocidente, toda a espécie de cruzadas para travar a jihad e toda a espécie de jihades destinadas a vencer os novos cruzados. É provável que o único factor capaz de conter a ascensão do Islão radical seja justamente o Islão moderado[5].

Estas vozes merecem ser escutadas para a segunda sessão do Sínodo. A linguagem e as iniciativas de Francisco, membro da assembleia sinodal, já mostraram um possível caminho para todas as pessoas de boa vontade, como diria João XXIII.

 

 

29 Outubro 2023



[1] Quando estava a fazer a redacção final desta crónica, li a Carta ao Povo de Deus. Cf. www.vatcan.va

[2] Cf. 7Margens, 20. 10. 2023

[3] Cf. Cadernos ISTA, Iavé, Deus de Justiça e de Bênção, Deus de Amor e de Salvação, nº 22 (2009) pp. 107-152

[4] Cf. Cf. 7Margens, 07.10.2023 e JL de 18 a 31 de Outubro 2023

[5] Cf. 7Margens, 23.10.2023

domingo, 29 de outubro de 2023

Fora do amor não há salvação! Pe. Manuel João,mcc

 Manuel João - Fora do amor não há salvação!

 

Ano A - 30º Domingo do Tempo Comum 
Mateus 22,34-40: Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?

 

No domingo passado, assistimos a uma disputa entre Jesus e os fariseus, que se tinham aliado com os herodianos para armar-lhe uma cilada a propósito do imposto a pagar a César. O evangelho deste domingo apresenta-nos uma nova disputa com os fariseus, desta vez aliados com os saduceus, a rica elite sacerdotal e política. Entre estas duas disputas, houve uma outra entre Jesus e os saduceus (omitida na liturgia), sobre a ressurreição dos mortos, com a famosa história da mulher viúva de sete maridos. 

 

A) Uma pergunta inocente e pertinente?

 

A controvérsia de hoje é sobre uma questão teológica: “Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?”. A pergunta é feita por um doutor da Lei, por assim dizer um teólogo, a quem os fariseus tinham pedido uma ajuda para pôr à prova a ortodoxia de Jesus. Mas, desta vez, onde é que está a armadilha? 

A pergunta parece inocente e pertinente. De facto, com a intenção de regular toda a vida segundo a lei de Deus, os rabinos tinham identificado 613 preceitos na Torá (ou seja, no Pentateuco, os cinco primeiros livros da Bíblia), para além dos Dez Mandamentos. Desses 613 preceitos, 365 eram negativos, proibições (coisas a não fazer), correspondentes ao número de dias do ano civil, e 248 eram positivos, prescrições (coisas a fazer), correspondentes ao número de órgãos do corpo humano, segundo a crença da época. Neste emaranhado de leis, sentia-se a necessidade de discernir o que era mais importante. 

Mas se a questão era pertinente, onde estava a armadilha? Para a mentalidade comum, o grande mandamento era o terceiro do decálogo: a observância do sábado, porque o próprio Deus o tinha observado após o “trabalho” da criação. Os seus adversários esperavam, portanto, que Jesus desse esta resposta e, nessa altura, dir-lhe-iam: “Então porque é que tu e os teus discípulos não guardam o sábado?”.

Jesus, porém, confunde-os mais uma vez. Não menciona nenhum dos Dez Mandamentos. Não se coloca no terreno legalista deles, mas eleva-se ao nível do amor. Jesus cita a profissão de fé do Shema' (Deuteronómio 6,4-5), a oração que cada israelita recita três vezes por dia (de manhã, à noite e ao deitar): “‘Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todo o teu espírito’. Este é o maior e o primeiro mandamento”. Jesus acrescenta, porém, uma citação do Levítico 19,18: “O segundo, porém, é semelhante a este: ‘Amarás o teu próximo como a ti mesmo’”. Quem é este “próximo”? A primeira leitura especifica-o: o indigente, o pobre, o estrangeiro, o órfão e a viúva (Êxodo 22,20-26). 

Nunca... em toda a Escritura, os "dois amores" são colocados tão indiscutivelmente no mesmo plano para se espelharem um no outro. O segundo é semelhante ao primeiro: isto é, não é idêntico, nem sequer mais ou menos importante. Mas é feito da mesma matéria, um espelhando o outro, um tornando verdadeiro o outro”(Gabriella Caramore).

S. Agostinho comenta: “O amor a Deus é o primeiro que se ordena, mas o amor ao próximo é o primeiro que se deve praticar”.

 

B) Alguns pontos de reflexão 

 

1. O amor é a lei!

O amor torna-se a chave da existência. Deus é amor (1Jo 4,8.16) e amou-nos primeiro (1Jo 4,19) e o crente é aquele que acreditou no amor (1Jo 4,16). Não um amor sentimental, mas um amor feito de escuta de Deus e de boas obras para com os irmãos. Porque aquele que diz que ama a Deus e não ama o seu irmão é mentiroso (1 Jo 4,20-21). O amor do irmão é o espelho e a prova do amor de Deus. É por isso que Jesus sintetiza tudo no seu “mandamento novo”: “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei” (Jo 13,34; 15,12). O amor é o motor da vida e da história!

 

2. Do deus-senhor ao Deus-Esposo!

O caminho de amadurecimento para a revelação de Deus-Amor e a passagem do regime da lei para o do amor foi um longo processo efectuado pelos Profetas. Jesus leva-o à sua plenitude. “E acontecerá naquele dia - oráculo do Senhor - que me chamarás 'meu marido', e não me chamarás mais 'Baal, meu senhor'” (Oséias 2,18). 

 

3. A sinfonia do amor

O teólogo protestante alemão D. Bonhoeffer escreveu da prisão: “O amor de Deus é como o cantus firmus” da“polifonia da vida” . “Gostaria de vos pedir que fizésseis ressoar claramente o cantus firmus na vossa vida em comum, e só então haverá um som pleno e completo.... Só quando nos encontramos nesta polifonia é que a vida se torna completa” (carta de 20 de maio de 1944). Só quando existe este cantus firmus, a melodia de fundo do amor de Deus, é que podemos unir todos os amores e fazer um canto polifónico dos três amores fundamentais da nossa existência: Deus, o próximo e nós próprios!

 

4. Amarás!

Os deuses pagãos queriam adoradores submissos, escravos, sob o regime do medo. O Deus de Jesus Cristo quer filhos livres, capazes de amar. O verbo amar - ahav em hebraico - aparece 248 vezes no Antigo Testamento (Fernando Armellini). Um número que me chama a atenção por ser o número de preceitos positivos (coisas a fazer) que coincide com o número de membros do corpo humano, segundo a tradição rabínica. As palavras do Shemà (em hebraico) são 245. Repetindo a última expressão, tornam-se 248. Eu diria, como que para sublinhar simbolicamente, que a única coisa a fazer é amar e devemos fazê-lo com todas as fibras do nosso ser: “com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todo o teu espírito”!

 

P. Manuel Joao Pereira Correia
Verona, 27 de outubro de 2023

P. Manuel João Pereira Correia mccj
p.mjoao@gmail.com
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segunda-feira, 23 de outubro de 2023

A quem é que eu pertenço? Pe. João M:C:

 A quem é que eu pertenço?

Ano A - 29º Domingo do Tempo Comum
Mateus 22,15-21 - Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus!

Hoje a Igreja celebra o Dia Mundial das Missões. A mensagem do Papa para este Dia, convida-nos a reflectir sobre a narração evangélica dos dois discípulos de Emaús, a partir de três imagens sugestivas: “corações ardentes pelas Escrituras explicadas por Jesus, olhos abertos para O reconhecer e, como ponto culminante, pés ao caminho. Meditando sobre estes três aspetos, que traçam o itinerário dos discípulos missionários, podemos renovar o nosso zelo pela evangelização no mundo de hoje”. 

Recordamos certamente que, nos três últimos domingos, Jesus contou três parábolas aos chefes dos sacerdotes e aos fariseus: a dos dois filhos enviados para trabalhar na vinha, depois a dos vinhateiros assassinos e, por fim, a dos convidados para as bodas. As três parábolas eram dirigidas contra os líderes religiosos e políticos de Israel. A tensão foi crescendo e o destino de Jesus foi selado. Todos se tinham virado contra ele e os chefes tinham decidido matá-lo. Só faltava o pretexto. Então, “os fariseus reuniram-se para deliberar sobre a maneira de surpreender Jesus no que dissesse”. 

 

1. Uma armadilha bem montada!

Enviaram-Lhe alguns dos seus discípulos, juntamente com os herodianos”.
Herodianos e fariseus eram adversários mas unem-se contra Jesus. Os herodianos queriam unificar o país sob a égide de Herodes, vassalo de Roma. Os fariseus, pelo contrário, embora moderados em relação aos zelotas, independentistas radicais, aspiravam à autonomia em relação a Roma. 

Os fariseus, porém, não se atrevem a ir ter eles próprios com Jesus e enviam os seus discípulos. Porquê? Para esconder a sua jogada? Para a fazer passar por uma questão de debate de escola? Estes discípulos começam por tecer um longo elogio ao “Mestre”, reconhecendo a sua veracidade e imparcialidade, antes de apresentarem a pergunta combinada com os herodianos: “Diz-nos o teu parecer: É lícito ou não pagar tributo a César?”. A armadilha estava bem montada. Se Jesus respondesse “sim”, antagonizaria o povo, que odiava os romanos. Se respondesse “não”, poderiam acusá-lo de subversão (o que, de qualquer modo, fariam perante Pilatos: cf. Lucas 23,2). 

 

2. Jesus, mestre do discernimento

Na resposta de Jesus, vislumbro, apesar da sua brevidade, uma grande lição de discernimento e, concretamente, quatro indicações preciosas para nós.

 

1) “Hipócritas!”

Primeiro passo: Jesus mostra-se uma pessoa livre, como aliás os seus adversários já tinham reconhecido. Não se deixa cooptar pela adulação farisaica e desmascara a hipocrisia deles. O “incenso” pode turvar os olhos e a mente! E é aqui que nós tropeçamos muitas vezes. Deixamo-nos condicionar pelo elogio ou pela opinião dos outros, o que limita a nossa liberdade e clarividência. Jesus discerne porque é livre e é livre porque discerne!

 

2) “Porque Me tentais?”
Muitas vezes, Jesus responde a uma pergunta com outra pergunta. Fazer perguntas a quem as faz é uma forma de envolver a própria pessoa e de a fazer refletir. Uma abordagem passiva dos problemas tem sido uma das grandes deficiências dos leigos católicos, fruto de um clericalismo que prevaleceu durante séculos. O padre tinha-se tornado uma espécie de atendedor automático. O leigo cristão introduzia a moeda da “pergunta” e recebia a resposta pronta, pré-embalada. E nós prestávamo-nos a esse jogo! Infelizmente, esta era também a atitude da Igreja perante a sociedade até há algumas décadas atrás. Esta pretensão de ser a “mestra”, sempre e em qualquer assunto, parece-me ser uma das principais causas do atual descrédito da Igreja no contexto da cultura ocidental. 

Parece-me, pelo contrário, que é urgente aprender a saber dizer: “Não sei!”, reconhecendo a nossa incompetência perante a complexidade e a novidade de tantas situações problemáticas do mundo atual e colocando-nos numa atitude humilde de procura. 

 

3) “Mostrai-Me a moeda do tributo. Eles apresentaram-Lhe um denário, e Jesus perguntou: De quem é esta imagem e esta inscrição? Eles responderam: De César”. 
Eis o terceiro passo de Jesus para discernir esta questão espinhosa, aparentemente sem saída: ir à situação concreta! Este gesto de Jesus desconcerta os seus interlocutores. Porquê? O denário, a moeda de prata mais comum, trazia a efígie do imperador romano, Tibério (14-27 d.C.), representado como um deus, com a inscrição: “Tibério César Augusto, filho do divino Augusto”; e no reverso: “Pontífice Máximo”. A utilização da moeda era um reconhecimento implícito da soberania romana. Mas havia algo muito mais grave. A discussão tinha lugar no interior do Templo de Jerusalém, onde era proibida a introdução de qualquer imagem, quanto mais a do César, representado sob a forma de um deus! No Templo circulava uma moeda especial e, para isso, havia cambistas à entrada. Os discípulos dos fariseus transgrediram esta regra, introduzindo uma moeda pagã no espaço sagrado do Templo. Assim, aqueles que queriam tecer uma armadilha a Jesus, são eles próprios apanhados em flagrante.

 

4) “Então, dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus!”
O quarto momento de discernimento é um convite a sair do âmbito estreito da situação concreta para a ver de uma forma mais ampla e com um horizonte mais alargado. Uma “questão” isolada e absolutizada torna-se uma verdade falaz ou parcial. Só uma luz exterior mais ampla a coloca na devida perspetiva. 

Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” é uma das frases mais famosas do Evangelho, mas também uma das mais enigmáticas. É frequentemente interpretada como se houvesse duas esferas autónomas de responsabilidade. O “César” ocupa-se das “coisas terrenas” e Deus das “coisas espirituais”! Mas o que é que “pertence” a César? Pertence a responsabilidade pela ordem e pela paz social e de garantir a liberdade e a justiça! E o que é que pertence a Deus? Tudo! “Eu sou o Senhor e não há outro; fora de Mim não há Deus... Eu sou o Senhor e mais ninguém!” (ver primeira leitura, Isaías 45,1.4-6). Toda a autoridade terá de responder perante Deus pelo bem do homem que lhe é confiado: “Eu te cingi, quando ainda não Me conhecias!” (primeira Leitura). É por isso que o cristão nunca pode abdicar do seu livre arbítrio, do respeito pela sua consciência e da sua capacidade crítica. “É preciso obedecer antes a Deus do que aos homens” (Actos dos Apóstolos 5,29). 

Uma pergunta que todos devemos fazer a nós próprios é precisamente esta: a quem é que eu pertenço? A uma família, a uma profissão, a um grupo social, a um povo, a uma nação? Sem dúvida! Mas Jesus recorda-nos a nossa pertença fundamental: Tu pertences a Deus! 

 

3. O denario de César e a moeda de Pedro

O denario de César trazia a sua imagem como marca da sua propriedade. O homem, criado “à imagem e semelhança de Deus” (Génesis 1,26-27), traz no seu espírito a marca da sua pertença ao Senhor. De aí a afirmação de Jesus: “Dai a Deus o que é de Deus!”

Permiti-me uma imagem ousada. O denário do imposto a César leva-me a pensar na moeda que Pedro, por instrução de Jesus, extrai da boca do peixe para pagar o tributo do Templo (Mateus 17,24-27). Uma única moeda para Jesus e para Pedro, ambos associados nessa moeda. Que imagem simbólica trazia essa moeda? A imagem de Cristo na frente, a de Pedro no seu reverso! A imagem de Cristo de um lado da moeda e a tua ou a minha do outro lado! Tu pertences a Cristo e Cristo pertence-te a ti. “Tudo vos pertence, mas vós pertenceis a Cristo e Cristo pertence a Deus” (1 Coríntios 3,22-23). 

 

Para uma reflexão pessoal

Convido-vos a ler a bela e inspiradora mensagem do Papa para o Dia Mundial das Missões.

P. Manuel João Pereira, Comboniano
Verona, 20 de outubro de 2023

SERÁ POSSÍVEL A PAZ ENTRE ISRAEL E A PALESTINA? Frei Bento Domingues, O.P

 

1. Tenho seguido o trabalho notável do Público para oferecer, aos seus leitores, diversas perspectivas para a leitura da tragédia actual que está a destruir Israel e a Palestina. Não era, todavia, sobre esta tragédia que tinha pensado na crónica deste Domingo. Por puro acaso, encontrei um longo texto da minha intervenção na Sessão do Dia Internacional de Solidariedade com a Palestina, em 2009. Nem sabia que esse texto existia. Não o vou reproduzir. Seriam necessárias muitas crónicas. Destaco, apenas, algumas passagens para entender algo deste tempo tenebroso sem ceder ao cinismo e ao pessimismo de que falava Álvaro Vasconcelos e, sobretudo, apontando algum caminho de esperança.

Referi nesse documento que, em 1920, ainda sobre a administração britânica, Einstein escreveu uma carta a um árabe, com uma proposta secreta: nós, árabes e judeus, devemos escolher um conjunto de pessoas, um conselho, em que haja sempre paridade absoluta de um lado e de outro, para fazermos um caminho em conjunto pela autonomia e para reivindicarmos esta terra para nós judeus e árabes. Fez um mini-regulamento para que não fosse absorvido pelos dirigentes políticos nem dum lado, nem do outro, nem de judeus, nem de muçulmanos, nem de árabes e, nem claro, pela presença britânica.

Era evidente que o povo palestino preferia que não existisse o estado de Israel e Israel não queria um estado palestino, a não ser que fosse conforme os seus interesses e ia estudando a maneira de o estado palestino ser impossível.

O que importava era ajudar a fazer compreender os dirigentes, dos dois povos, que estão todos a ser vítimas do medo, estão todos a ser vítimas da desconfiança, estão todos a ser vítimas do ódio, estão todos a multiplicar a violência e o ódio. Isto não é julgar da legitimidade de ninguém, é a própria natureza das atitudes bélicas para as quais não há saída.

Uma solidariedade que não favoreça a cooperação justa entre Israel e o povo palestino também não é solidariedade, apenas alarga o fosso e o muro. Temos exemplos, na História, para provar que só o caminho do perdão mútuo conduz à reconciliação e à paz. A França e a Alemanha estiveram em guerra – e que guerra! –, tiveram de fazer esse gesto. Sem esse gesto teriam um sentido de guerra permanente. Nelson Mandela é o exemplo mais eloquente desse método.

Conhecemos judeus e palestinos que já fazem esse caminho. Atrevo-me a dizer que são eles que precisam da solidariedade mundial, para fazerem uma grande corrente global, que leve as lideranças dos dois povos a perceber que os caminhos que têm seguido não levam a lado nenhum a não ser engrossar o rio de sangue.

As pessoas poderão perguntar, isso é possível? Não tenho resposta. No entanto, diria que é possível escolher um caminho para uma paz, onde não haja vencidos nem vencedores. Na situação actual, estão todos a ser vencidos, estão todos a contribuir para o pior.

Uma sugestão simples: é necessário divulgar, a nível mundial, todas as iniciativas, todas as organizações, todas as pessoas que desejam a paz. Há judeus apaixonados pelo povo palestino e há palestinos que são, também, apaixonados por judeus e já viveram, em muitas épocas, em conjunto e em amizade. Portanto, o que neste momento é necessário é engrossar, de um lado e doutro, aquelas pessoas que pensam que é possível que os dois povos possam viver, organizar-se de outra maneira, diferente. A actuação do Estado de Israel parece a de um estado belicista, é auto-destruidora. Destrói, em primeiro lugar, os próprios israelitas.

Quando falamos em povo, devemos potenciar tudo o que existe nos povos de desejo de paz para fazerem caminhos e até de resistência não violenta, mas de resistência activa, algo que impressione pelo amor mútuo que existe nos dois povos.

2. Em 2001, a escritora Karen Amstrong recebeu o prémio TED por ter lançado a Carta da Compaixão, com base na regra de ouro, tanto na sua formulação positiva como negativa – que é central em todas as religiões –, não só nas religiões abraâmicas, mas em todas as religiões. Estas são, quase sempre, apresentadas como focos de guerras. Esse prémio já foi dado a muitos cientistas e personalidades que têm tido uma ideia nova, uma ideia capaz de renovar o mundo. Em 18 minutos, tinha de expor, perante uma grande assembleia com muitos peritos, essa sua ideia.

 A regra de ouro que Karen Amstrong descobriu com espanto, no coração das diferentes tradições religiosas, éticas e espirituais, embora formulada com pequenas diferenças e explicitada de várias maneiras na sua intervenção, costuma exprimir-se de forma negativa, não faças aos outros o que não desejas que os outros te façam e, de forma positiva, faz aos outros o que gostarias que os outros te fizessem. Esta é a regra de ouro que é muito anterior tanto ao judaísmo como ao cristianismo, mas foi acolhida nos princípios do judaísmo e do cristianismo e, depois, também do Islão. Deve englobar ateus, agnósticos, todas as pessoas de diferentes tendências porque é um princípio ético, princípio que serve de guia a toda a Carta da Compaixão.

Compaixão não é comiseração, pena, situação de coitadinhos e de coitadinhas. Quando falamos em compaixão não se trata só de recusar a indiferença perante a tragédia. Impele a trabalhar sem descanso para aliviar o sofrimento do próximo, a destronar o nosso eu do centro do mundo para, nele, colocar os outros. Ensina-nos a reconhecer o carácter sagrado de cada ser humano e a tratar cada pessoa, sem excepção, com respeito, equidade e absoluta justiça.

A carta convoca todos os homens e mulheres a recolocar a compaixão no centro da moral e das religiões, a retomar o antigo princípio de que são ilegítimas todas as interpretações das escrituras religiosas que geram violência, ódio ou desprezo. A cultivar uma inteligência compassiva perante o sofrimento de todos os seres humanos, mesmo daqueles que nós consideramos nossos inimigos e de quem nos consideramos, muitas vezes, inimigos.

Esta carta não pretende lançar uma nova organização. O seu objectivo é fazer ressaltar o esforço de todos os grupos e movimentos para aumentar a visibilidade do seu trabalho e torná-los contagiantes. A carta pretende mostrar, de forma activa, que a voz do negativismo e da violência, muitas vezes associada à religião e às religiões, é apenas de uma minoria e que a voz da compaixão é, pelo contrário, a voz da grande maioria.

3. É urgente revelar os judeus que são solidários com o povo palestino e os palestinos que são solidários com o povo judeu. Sem apoiar e robustecer, de forma prática, esta solidariedade só pensaremos em robustecer o equipamento bélico, de um lado e do outro, para ver quem mata mais.

Fazer crescer este sentimento de estima mútua pode levar muito tempo, mas é a direcção certa, a direcção fecunda porque, desde já, escolhe a cultura da paz que vai gerando uma terra de convívio, uma terra santa. Neste momento, parece uma terra maldita.

O roteiro da paz não deve ficar só na mão dos dirigentes políticos. Deve procurar envolver todas as pessoas de boa vontade a nível mundial.

 

 

22 Outubro 2023

domingo, 15 de outubro de 2023

Convites recusados, convites aceites e convites traídos - Pe. João, MC

 Convites recusados, convites aceites e convites traídos

 

Ano A - 28º Domingo do Tempo Comum
Mateus 22,1-14: “Tudo está pronto, vinde às bodas!”

 

Há cinco domingos que Jesus nos fala por parábolas. A parábola de hoje é a terceira dirigida aos chefes dos sacerdotes e aos anciãos do povo. De facto, parece que se trata de duas parábolas juntas: a do banquete aberto a todos (vv. 1-10) e a do traje nupcial exigido a todos (vv. 11-14).

Habituámo-nos ao gênero parabólico frequentemente utilizado por Jesus, mas não devemos esquecer que, por detrás da aparente simplicidade da sua mensagem, a parábola exige de nós um duplo esforço: a sua compreensão no contexto cultural-histórico-bíblico do tempo de Jesus e a sua aplicação à nossa vida atual. 

 

1. Uma parábola estranha e improvável!

Trata-se de uma parábola e, portanto, de um relato simbólico em vista da transmissão de uma mensagem. Mas São Mateus reinterpreta esta parábola de Jesus em função da sua comunidade, tornando-a complexa e improvável. Para o compreender, basta ler a versão de S. Lucas, com uma intenção catequética diferente, onde a mensagem é muito simples e direta (ver Lc 14,15-24, talvez inspirada em algo que aconteceu realmente!).

A nossa parábola de hoje trata de um banquete preparado por um rei para as bodas do seu filho, portanto uma circunstância de festa e de alegria. Ora, são introduzidos na história três elementos anómalos que contrastam com o ambiente festivo: a rejeição e até a reação violenta dos primeiros convidados; o envio do exército para matar os assassinos e incendiar a sua cidade; e, quando a sala está cheia de novos convidados, a intervenção dura do rei ao ver que um dos convidados não trazia a túnica nupcial. Como compreender a parábola?

Mateus apresenta a história da salvação sob forma alegórica, utilizando uma linguagem provocante. Não esqueçamos que Jesus está a falar aos chefes religiosos de Israel. Os dois primeiros grupos de servos da parábola representam os profetas enviados ao povo de Deus (antes e depois do exílio?). A destruição da cidade é uma alusão à destruição de Jerusalém (a cidade “que mata os profetas!” Mateus 23,37), primeiro pelos babilónios, no ano 587 a.C., e depois pelos romanos, no ano 70 d.C. 

O terceiro grupo são os apóstolos enviados ao mundo para convidar todos a entrar na festa do Reino. A adição do homem despojado da sua veste nupcial é um aviso à comunidade cristã.

Qual é a mensagem da parábola? A primeira parte revela o chamamento universal de Deus, agora dirigido a todos os homens, maus e bons, sem excluir ninguém. Já não existe um povo eleito e uma nação privilegiada, mas todos são chamados: “Ide por todo o mundo e anunciai o Evangelho a toda a criatura”. Assim, cumpre-se o que Isaías profetizou: “Sobre este monte, o Senhor do Universo há de preparar para todos os povos um banquete de manjares suculentos, um banquete de vinhos deliciosos: comida de boa gordura, vinhos puríssimos” (ver primeira leitura, Isaías 25,6-10). A segunda parte, porém, sublinha que não basta aceitar o convite, é preciso converter-se, isto é, sintonizar-se com a alegria das núpcias do Filho do Rei e entrar em convívio com todos os comensais. Concentremos a nossa atenção nesta dupla mensagem.

 

2. Um convite para o banquete: Vinde às bodas!

Preparei o meu banquete..., tudo está pronto. Vinde às bodas!”
Toda a Sagrada Escritura poderia ser relida à luz do convite: “Muitas vezes e de diversos modos outrora falou Deus aos nossos pais pelos profetas. Ultimamente nos falou por seu Filho” (Carta aos Hebreus 1,1-2). É um convite a celebrar, a alegrar-se, a participar na vida de Deus, nas suas núpcias de amor com a humanidade. Infelizmente, a visão dominante da vida como sofrimento e sacrifício deturpou a nossa relação com Deus e a prática da fé.

Não admira, pois, o triste espetáculo das nossas igrejas vazias, como a sala vazia da parábola. O convite não é entendido como uma chamada para um banquete. A Eucaristia é uma antecipação do banquete celeste das núpcias do Cordeiro. O Pai convida, o Filho celebra, mas onde está o Espírito? Muitas vezes o Espírito é deixado do lado de fora da porta. É por isso que falta a alegria e o entusiasmo. Sem o Espírito não há festa! Sem o Espírito não há convívio. E vê-se quando o Espírito está presente: o rosto fica radiante, a alegria da festa contagia, as pessoas aproximam-se porque a festa une as pessoas! Em vez disso, tem-se muitas vezes a impressão de que a celebração é um “ato de devoção” privado, cada um com o “seu Deus”, consumindo a “refeição” por sua conta. Comunicamos ao corpo de Cristo, mas não comunicamos uns com os outros!

Eis a conversão urgente da Igreja: abrir as portas à novidade, à juventude e à alegria do Espírito Santo. Então, cada convidado tornar-se-á um “anjo”, um enviado, um apóstolo, um missionário, e a sala do banquete encher-se-á! 

 

3. Onde está o teu traje nupcial?

Amigo, como entraste aqui sem o traje nupcial?”
O que é o traje nupcial? Muitos pensam na retidão moral ou no compromisso cristão. Santo Agostinho e São Gregório Magno dizem que é a caridade. Outros, a indumentária de serviço, isto é, despojar-se do seu traje para servir, como Cristo fez para lavar os pés dos apóstolos. De facto, “Cristo despojou-se” e, nu, celebrou as suas bodas com a humanidade na cruz. Para mim, é mais natural pensar na túnica batismal. Parece que, no antigo Oriente, o rei também oferecia a veste nupcial aos seus convidados. No Génesis, é o próprio Deus que cobre a nudez dos nossos antepassados (3,21) e, no Apocalipse, a noiva (a Igreja, ou seja, nós!) recebe “um vestido de linho resplandecente e puro”  (19,8). 

O convidado apanhado sem o traje nupcial pode ser aquele que não acolhe a novidade de Cristo, limitando-se a pôr um remendo de pano novo num vestido velho (Lc 5,36). Em conclusão, o traje nupcial é o próprio Cristo: “Todos os que fostes baptizados em Cristo, revestistes-vos de Cristo” (Gálatas 3,27). É por isso que São Paulo nos exorta: “Revesti-vos do Senhor Jesus Cristo” (Romanos 13,14).

 

Para a nossa reflexão pessoal

Reflectamos sobre as nossas recusas perante os numerosos convites e apelos de Deus na nossa vida. Como é que participamos no banquete eucarístico, com ou sem o Espírito, com o traje nupcial ou com túnica remendada? Estamos dispostos a ser “anjos” do convite?

 

P. Manuel João Pereira, Comboniano
Verona, 13 de outubro de 2023
P. Manuel João Pereira 
p.mjoao@gmail.com
https://comboni2000.org

 

 

domingo, 8 de outubro de 2023

Guardiães ou saqueadores? Pe. João MC

 Guardiães ou saqueadores?

 

Ano A - 27º Domingo do Tempo Comum 
Mateus 21,33-43: Ouvi outra parábola!

 

O evangelho deste domingo oferece-nos a terceira parábola que tem como tema a vinha. Tal como a dos dois filhos enviados para a vinha no domingo passado, esta parábola é dirigida aos chefes dos sacerdotes e aos anciãos do povo, bem como aos fariseus (cf. v. 45), que a princípio não se apercebem de que lhes é dirigida. A parábola, conhecida como “dos vinhateiros assassinos”, é contada no Templo, tem um carácter dramático e antecipa profeticamente o fim trágico de Jesus, “preso, expulso da vinha e morto” às portas de Jerusalém.

 

1. Deus é vinhateiro

O simbolismo da vinha como representação do povo de Deus, Israel, é bem conhecido e é iluminado pela primeira leitura do profeta Isaías (5,1-7). Jesus, porém, conta a parábola contra os chefes religiosos que se apoderaram desta vinha, surdos aos apelos dos profetas (os “servos” da parábola) e agora também do Filho, enviados por Deus, o dono da vinha. As primeiras gerações cristãs interpretaram a parábola de forma alegórica: o primeiro grupo de servos seria o dos profetas e o segundo o dos apóstolos. A sua conclusão: “Ser-vos-á tirado o reino de Deus e dado a um povo que produza os seus frutos”, seria o anúncio da passagem da Sinagoga para a Igreja. No entanto, não parece ser este o seu sentido, mas antes uma forte repreensão às autoridades religiosas da sua e de todas as épocas. 

 

2. Nós somos a vinha de Deus

Parece-me oportuno insistir, em primeiro lugar, no cuidado de Deus com a sua vinha, que reflecte o seu amor pelo seu povo e por cada um de nós. “Que mais podia fazer à minha vinha que não tivesse feito?”, queixa-se o Senhor, ao constatar que a vinha, em vez de produzir uvas, produziu agraços (Isaías 5,1-7). Essa vinha plantada “numa colina fértil” (a do Calvário), “lavrada e limpa das pedras” (pela Palavra de Deus) refere-se também a nós. Também nós somos “cepas escolhidas”, enxertadas naquele que é a videira verdadeira (João 15). No nosso coração, “ergueu uma torre”, não a de Babel, mas a do cenáculo do Pentecostes! Ele “escavou um lagar”, da água batismal e do vinho eucarístico! Protegeu-nos no recinto do ovil da sua Igreja.... 

Esta é, pois, uma boa ocasião para considerar que “Sim, o Senhor fez por nós grandes coisas” (Salmo 125,3). Mas é também uma ocasião para nos interrogarmos sobre os frutos que a nossa vida cristã está a produzir: uvas ou agraços?

 

3. Somos os vinhateiros de Deus

O Senhor “partiu para longe” e, com grande confiança, entregou-nos a sua vinha para que a cuidássemos. Ou seja, confiou os seus dons à nossa responsabilidade: a vida e a saúde, a terra e os bens, os dons e os talentos pessoais, a fé e as graças espirituais, tudo para ser gerido com sabedoria ao serviço de todos. A grande tentação é apoderar-se da “vinha”, isto é, daquilo que Deus confiou ao nosso cuidado, utilizando-a para nosso próprio prazer e benefício. Por outro lado, o primeiro pecado nasceu do desejo de se apropriar de um dom. A nossa cobiça leva-nos a acumular bens, a ignorar as necessidades dos outros e as suas justas reivindicações, a subjugar pessoas ao nosso serviço, a espezinhar os pobres e até a matar, como bem ilustra a parábola. 

Perguntemo-nos o que é a nossa “vinha” e como a estamos a gerir: como patrões ou como arrendatários? Como estamos a exercer um papel: como serviço ou como poder? O Senhor perguntar-nos-á: que fizestes da minha vinha? Como acolhestes os meus mensageiros? Como tratastes o meu Filho? E recordemos que há muitas maneiras de matar Cristo!...

 

4. Na vinha do mundo: guardiães ou saqueadores?

Há poucos dias, a 4 de outubro, o Papa Francisco publicou uma nova exortação apostólica, Laudate Deum, continuação da Laudato Si', na qual chama todos à responsabilidade na gestão dos bens da terra. As consequências da utilização desenfreada, egoísta e predatória da natureza estão à vista de todos. Muitas vezes temos uma atitude de quase indiferença ou de minimização, como se a questão não nos dissesse respeito, talvez porque não estamos dispostos a mudar o nosso estilo de vida. Outras vezes, transferimos a responsabilidade para outros, especialmente para os políticos, muitas vezes, efectivamente, a mão longa dos latifundiários e das multinacionais, mas não assumimos a nossa quota-parte de responsabi­lidade, considerando-a talvez insignificante. Porém, fazer da terra um paraíso ou um deserto depende de cada um de nós!

Perante a irresponsabilidade evidente de tantos políticos e nações, o Papa lança um novo grito de alarme, antes que seja demasiado tarde. Lembra-nos que “o mundo que nos rodeia não é um objeto de exploração, utilização desenfreada, ambição sem limites” (n.º 25). “Realizamos progressos tecnológicos impressionantes e surpreendentes, sem nos darmos conta, ao mesmo tempo, que nos tornámos altamente perigosos, capazes de pôr em perigo a vida de muitos seres e a nossa própria sobrevivência” (n.º 28). Sublinha que “os esforços das famílias para poluir menos, reduzir os esbanjamentos, consumir de forma sensata estão a criar uma nova cultura. O simples facto de mudar os hábitos pessoais, familiares e comunitários alimenta a preocupação pelas responsabilidades não cumpridas pelos setores políticos e a indignação contra o desinteresse dos poderosos. Note-se, pois, que, mesmo se isto não produzir imediatamente um efeito muito relevante do ponto de vista quantitativo, contribui para realizar grandes processos de transformação que agem a partir do nível profundo da sociedade” (n. 71). O Papa conclui dizendo: “«Laudate Deum» é o título desta carta, porque um ser humano que pretenda tomar o lugar de Deus torna-se o pior perigo para si mesmo” (n. 73).

Perguntamo-nos: a nossa relação com a natureza é um ato de louvor a Deus ou um atropelo ao seu dom? Na vinha da criação, comportamo-nos como custódios e guardiães ou como patrões e saqueadores?

 

Para uma reflexão semanal

1. Para ver se a nossa vida está a produzir as uvas boas do amor e da justiça ou, pelo contrário, os agraços do egoísmo e da injustiça, comparemos a nossa vida com quanto diz São Paulo na segunda leitura: “Tudo o que é verdadeiro e nobre, tudo o que é justo e puro, tudo o que é amável e de boa reputação, tudo o que é virtude e digno de louvor é o que deveis ter no pensamento” (Filipenses 4,6-9).

2. O que podes fazer concretamente para “poluir menos, reduzir os esbanjamentos, consumir de forma sensata”, de maneira a criar uma nova sensibilidade cultural de respeito pela vinha da criação?

 

P. Manuel João Pereira, comboniano
Verona, 6 de Outubro de 2023

P. Manuel João Pereira Correia mccj
p.mjoao@gmail.com
https://comboni2000.org

ESTE OUTUBRO É UM MÊS MUITO ESPECIAL Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. Em Agosto passado (01-06), tivemos, em Lisboa, a Jornada Mundial da Juventude (JMJ). Como observou D. Rui Valério, Patriarca de Lisboa, a JMJ não representou só o encontro de jovens do mundo inteiro, mas foi essencialmente o desconfinamento espiritual da humanidade. E essa circunstância representa uma acrescida responsabilidade para não deixar esfriar a sua pujança.

Esta deve ser inserida num outro acontecimento de toda a Igreja – o Sínodo 2023-2024 – cuja primeira sessão vai ocupar todo o mês de Outubro. Dizer sínodo significa que a Igreja deve ser responsabilidade de todos e deve caminhar para a unidade na diversidade, para se realizar como comunhão, missão e participação.

Nas vésperas do início do Sínodo da Igreja católica, um conjunto de 5 cardeais ultraconservadores, ao contestarem a sua realização nos termos anunciados e preparados, pode ajudar a revelar a sua necessidade. Tentaram pressionar o Papa para responder com sim ou não quando já sabem a resposta.

O próprio Papa começa por observar que embora nem sempre pareça prudente responder diretamente às perguntas que lhe são dirigidas, até porque seria impossível responder a todas elas, neste caso considerou oportuno fazê-lo, dada a proximidade do Sínodo.

Em substância, esclarece que, se por um lado é verdade que a Revelação divina é imutável e sempre vinculante, por outro a Igreja deve ser humilde e reconhecer que nunca esgota a sua insondável riqueza e precisa de crescer na sua compreensão. Assim, as mudanças culturais e os novos desafios da história não alteram a Revelação, mas podem estimular-nos a expressar melhor certos aspectos da sua riqueza transbordante que nos oferece sempre mais[1].

Mais lúcidos do que esses 5 cardeais, foram os líderes cristãos de 20 denominações diferentes – alguns deles representando federações de igrejas – querendo, deste modo, responder à sugestão da comunidade ecuménica de Taizé de rezarem juntos pelos participantes do Sínodo, num encontro do povo de Deus. Várias das confissões cristãs, sobretudo de algumas comunidades evangélicas, estiveram em São Pedro pela primeira vez.

Refugiados, pessoas vulneráveis, freiras, jovens e participantes no Sínodo católico, abriram um rio em plena Praça de São Pedro, no Vaticano. Na enxurrada provocada pelo rio, a sua água levava desejos de paz e unidade entre toda a família humana, compromissos pelo acolhimento da diversidade, apelos a quebrar fronteiras, desejos do fim das guerras. O rio, um grande pano azul de algumas dezenas de metros, quis simbolizar a onda de cuidado pela criação e do alargamento da justiça e da paz proposto no encontro Together/Juntos.

As diferenças, além dos cerca de 70 países representados, estavam desde logo presentes no altar, além do Papa Francisco, vários líderes das principais confissões cristãs: o Patriarca ortodoxo Bartolomeu, de Constantinopla; o Arcebispo Justin Welby, primaz da Comunhão Anglicana; a estoniana Anne Burhardt, secretária-geral da Federação Luterana Mundial; Elijah Brown, da Aliança Baptista Mundial; Jong Chun Park, do Conselho Metodista Mundial; e vários hierarcas de igrejas orientais (ortodoxas, arménias, sírias, coptas…), num total de duas dezenas de líderes, incluindo o Papa[2].

No passado dia 4, dia de S. Francisco de Assis e início do Sínodo, foi publicada a Exortação Apostólica Laudate Deum (Louvai a Deus)[3] que o Papa Francisco descreveu como uma continuação da sua extraordinária Encíclica de 2015, Laudato Sí (Louvado sejas). No dizer do Papa, o novo documento é um olhar sobre o que aconteceu desde 2015 e um olhar sobre o que ainda precisa de ser feito.

Como observa Jorge Wemans, a premência da crise climática, a decadência ética dos poderosos, a fragilidade da política internacional, os incipientes avanços (ou a falência) dos acordos negociados e o desânimo instalado em relação à próxima COP28 obrigaram o Papa Francisco a escrever esta Exortação para dar alento, chamar à esperança e à responsabilidade todos os participantes da reunião que se inicia a 30 de Novembro no Dubai[4]. É mesmo de louvar este Deus que faz olhar para a Terra com outros olhos!

2. No momento em que escrevo, ainda não posso medir todas as dimensões que vão ser trabalhadas e rezadas, durante todo o mês.

Uma das originalidades deste Sínodo foi a sua preparação aberta a todos com plena liberdade. Só não participou quem não quis ou andava muito distraído. Os delegados ao Sínodo têm, todos, de ler e meditar a documentação das três fases de preparação: local, diocesana e continental. Em certo sentido, o Sínodo já começou aí, o Sínodo foi sendo.

Uma outra originalidade foi o seu alargamento. Para além dos Bispos delegados, podemos contar com a inédita inclusão de leigos, mulheres e homens, com direito a voto.

Neste mesmo contexto, um outro acontecimento marcante foi a recomposição e mundialização do Colégio Cardinalício. Poder-se-á perguntar, como fez António Marujo, o que tem em comum a preocupação do arcebispo católico de Madrid (Espanha) com a crise política no seu país e a do arcebispo de Juba (Sudão do Sul), com o eventual contágio da guerra no Sudão para outros países do Nordeste de África? É que ambos foram formalmente investidos, no dia 30 de Setembro, como novos cardeais e ambos reflectem as preocupações do Papa Francisco com a intervenção social e política dos cristãos.

Para não entrar em mais pormenores estatísticos, limito-me a referir que, dos 136 purpurados que passaram a ter direito a voto num eventual conclave, os europeus já não são o maior grupo ao contrário do que aconteceu em 2013, quando Francisco foi eleito.

O arcebispo de Madrid, José Cobo Cano, comentando a realidade de um colégio mais internacional (69 países estão agora na lista de eleitores de um futuro conclave), afirmou que a visão que o Papa está a oferecer é que o mundo é global e está dizê-lo a todas as instâncias: que a Igreja esteja presente em todos os lugares e que tem uma mensagem de globalização que é a mensagem do Evangelho. O Papa, traduz essa realidade muito bem, dando voz a todas as igrejas, incluindo as mais pequenas. De facto, pela primeira vez, vários países pequenos ou com reduzido número de católicos têm hoje cardeais: são os casos do Laos, Timor-Leste, Cabo Verde, Papua-Nova Guiné ou Tonga, por exemplo[5].

3. O Sínodo foi introduzido por três dias de retiro, orientado pelo conhecido dominicano, Timothy Radcliffe[6]: «Quando o Papa me pediu para pregar este retiro, senti-me muito honrado, mas também nervoso. Estou profundamente consciente das minhas limitações pessoais. Sou velho – branco – ocidental – e um homem! Não sei o que é pior! Todos estes aspectos da minha identidade limitam a minha compreensão. Por isso, peço-vos perdão pela insuficiência das minhas palavras».

O Sínodo precisa de humor até para matar o medo. Para alguns é o medo da mudança, para outros é o medo de que nada mude.

 

 

08 Outubro 2023



[1] Cf. Jorge Wemans, 7Margens, 02.10.2023

[2] Cf. António Marujo, 7Margens, 30.09.2023

[3] Já está publicada em português pema Editora Paulus e também pode ser lida através: www.vatican.va

[4] Cf. Jorge Wemans, 7Margens, 04.10.2023

[5] Cf. António Marujo, 7Margens, 29.09.2023

[6] Clara Raimundo seguiu as conferências do retiro dia-a-dia e apresenta-as também em vídeos, 7Margens, 03.10.2023