1. É muito repetida a afirmação
atribuída a Jesus de que pobres sempre teremos entre nós como se fosse uma abençoada
fatalidade, uma bem-aventurança premiada com o céu! É o resultado da leitura de
alguns versículos do Evangelho fora do seu contexto. Se assim fosse, não
valeria a pena lutar contra essa fatalidade. O contexto destas afirmações é simplesmente
sublime, um gesto apaixonado de amor[i].
Nos Actos dos Apóstolos[ii],
o combate à pobreza é radical. É o resultado da conversão ao movimento de Jesus.
Nas primeiras comunidades cristãs, não havia pobres porque os que tinham posses
partilhavam entre eles, segundo as necessidades de cada um.
Que pretendia o Papa Francisco ao instituir, em 2017, o
Dia Mundial dos Pobres? Seria para confirmar que pobres sempre teremos entre
nós ou para combater essa afronta à dignidade humana, à fraternidade universal –
Fratelli Tutti?
Existem muitos estudos acerca da pobreza e das formas de
a erradicar das sociedades humanas[iii].
Segundo o Papa, é fácil cair na retórica, quando se fala dos pobres. Tentação
insidiosa é também parar nas estatísticas e nos números. Os pobres são pessoas,
têm rosto, uma história, coração e alma. São irmãos e irmãs com os seus valores
e defeitos, como todos, e é importante estabelecer uma relação pessoal com cada
um deles. O livro bíblico de Tobias ensina-nos a ser concretos no nosso
agir com e pelos pobres. É uma questão de justiça que nos obriga, a todos, a
irmos ao encontro uns dos outros, favorecendo a harmonia necessária para que
uma comunidade se possa identificar como tal.
A recordação, que o velho Tobite pede ao filho para
guardar, não se reduz simplesmente a um acto da memória nem a uma oração
dirigida a Deus. Faz referência a gestos concretos, que consistem em praticar
boas obras e viver com justiça. E a exortação torna-se ainda mais específica: Dá
esmolas, conforme as tuas posses. Nunca afastes de algum pobre o teu olhar, e
nunca se afastará de ti o olhar de Deus.
Que a nossa solicitude pelos pobres seja sempre marcada
pelo realismo evangélico. A partilha deve corresponder às necessidades
concretas do outro e não ao meu supérfluo de que me quero libertar[iv].
2. Por coincidência, na
celebração eucarística deste Domingo – Dia Mundial dos Pobres –, é proposta a estranha
parábola dos talentos. Cada talento seria o correspondente, no dinheiro
de hoje, entre €250 000 e €300 000[v].
Não é nessa correspondência monetária que me vou fixar. No entanto, essa correspondência
ajuda a entender o sentido da zanga do senhor do dinheiro por algo que parece
muito pouco. Normalmente, achamos uma injustiça pedir contas pela
insignificância de um talento e aumentar com ele o que já tem dez.
A correspondência monetária ajuda a entender que, afinal,
um talento era muito dinheiro e com ele podia ser feito ainda mais. O melhor é
ler essa parte do texto: «Veio, finalmente, o que tinha recebido um só talento: Senhor, disse
ele, sempre te conheci como homem duro, que ceifas onde não semeaste e recolhes
onde não espalhaste. Por isso, com medo, fui esconder o teu
talento na terra. Aqui está o que te pertence. O senhor
respondeu-lhe: Servo mau e preguiçoso! Sabias que eu ceifo onde não semeei e
recolho onde não espalhei. Pois bem, devias ter levado o
meu dinheiro aos banqueiros e, no meu regresso, teria levantado o meu dinheiro
com juros. Tirai-lhe, pois, o talento, e dai-o ao que tem
dez»[vi].
Por causa dessas confusões, vou tomar a liberdade de usar
a palavra talentos para referir as capacidades e os recursos que temos e
não os investimos para mudar as situações de miséria ou calamidade.
Vivemos num mundo em que são gastos os seus recursos para
o deixarmos pior do que o encontrámos. O Papa Francisco diz, de uma forma muito
clara, que «de
uma vez por todas acabemos com a atitude irresponsável que apresenta a questão
apenas como ambiental, verde, romântica, muitas vezes ridicularizada por
interesses económicos. Admitamos, finalmente, que se trata de um problema
humano e social em sentido amplo e a diversos níveis. Por isso, requer-se o
envolvimento de todos. Por ocasião das Conferências sobre o Clima, chamam
frequentemente a atenção as ações de grupos ditos radicalizados; mas, na
realidade, eles preenchem um vazio da sociedade inteira que deveria exercer uma
sã pressão, pois cabe a cada família pensar que está em jogo o futuro dos seus
filhos»[vii].
3. Ninguém está dispensado de
fazer render as suas capacidades, sejam grandes ou pequenas. Por isso, na
educação familiar e em todas as instituições educacionais, sobretudo nas ditas
católicas, importa ajudar a fazer a seguinte pergunta: que vou fazer da minha
vida, como vou desenvolver as minhas capacidades e a favor de quem?
Geralmente, as famílias e as escolas preocupam-se com a
orientação profissional para puro benefício individual. Mesmo quando se fala de
educação para os valores, importa perguntar: mas que valores?
As parábolas fazem parte da linguagem de Jesus e são
muitas, mas nenhuma delas é suficiente para explicar a complexidade cristã da
vida individual e colectiva. Não é por acaso que S. Mateus reuniu três no
capítulo 25. As duas primeiras – a das virgens e a dos talentos – parecem
brilhantes, mas não ultrapassam o individualismo, nunca olham para o lado, para
o desgraçado, para o pobre. É a terceira que dá sentido ao desenvolvimento das
capacidades e recursos individuais.
No texto, é a própria História universal que vai a julgamento.
O Senhor da História dirá a uns: Vinde, benditos de meu Pai! Recebei em
herança o Reino que vos está preparado desde a criação do mundo. Porque tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de
beber, era peregrino e recolhestes-me, estava nu e
destes-me que vestir, adoeci e visitastes-me, estive na prisão e fostes ter
comigo. Então, os justos vão responder-lhe: Senhor, quando foi
que te vimos com fome e te demos de comer, ou com sede e te demos de
beber? Quando te vimos peregrino e te recolhemos, ou nu e
te vestimos? E quando te vimos doente ou na prisão, e fomos
visitar-te? E o Senhor da História vai dizer-lhes: Em
verdade vos digo. Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais
pequeninos, a mim mesmo o fizestes.
Nesta
parábola, o que nos julga é o bem ou o mal que fazemos ou deixamos de fazer,
seja a quem for. É a pessoa necessitada que é sagrada. Na interpretação
religiosa, é o próprio Deus que se identifica com as pessoas que precisam de
ajuda.
Há um Dia
Mundial dos Pobres para que os ricos, pessoas ou países, não se esqueçam do
destino universal dos bens.
[i] Cf. Mt
5, 3 e Jo 12, 7-8
[ii] Act 4,
12-14
[iii] Cf.
Observatório Nacional. Luta contra a pobreza: Pobreza e Exclusão Social em
Portugal. Relatório 2022
[iv] Cf.
Mensagem do Papa Francisco para o Dia Mundial dos Pobres, 2023
[v] Cf. Nota
de Federico Lourenço ao texto da parábola dos Talentos em S. Mateus
[vi] Cf. Mt
25, 14-30
[vii] Cf. Laudate
Deum, nº 58
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