1. Na celebração cristã deste
Domingo, é proposto um enigmático texto do Evangelho, com muitos paralelos no
Novo Testamento (NT)[1]:
«Entre os que tinham
subido a Jerusalém à Festa para a adoração, havia alguns gregos. Estes foram ter com Filipe, que era de Betsaida da Galileia, e
pediam-lhe: Senhor, nós queremos ver Jesus! Filipe
foi dizer isto a André; André e Filipe foram dizê-lo a Jesus. Jesus
respondeu-lhes: Chegou a hora de se revelar a glória do Filho do Homem. Em verdade, em verdade vos digo, se o grão de trigo, lançado à
terra, não morrer, fica ele só; mas, se morrer, dá muito fruto. Quem se ama a si mesmo, perde-se; quem se despreza a si mesmo,
neste mundo, assegura para si a vida em abundância.
Se alguém
me serve, que me siga, e onde Eu estiver, aí estará também o meu servo. Se
alguém me servir, o Pai há-de honrá-lo. Agora a minha alma está
perturbada. E que hei-de Eu dizer? Pai, salva-me desta hora? Mas precisamente
para esta hora é que Eu vim! Pai, manifesta a tua glória!
Veio, então, uma voz do Céu: Já a manifestei e voltarei a manifestá-la!
Entre as
pessoas presentes, que escutaram, uns diziam que tinha sido um trovão; outros
diziam: Foi um Anjo que lhe falou! Jesus respondeu: Esta voz não
veio por causa de mim, mas por amor de vós. Agora é o
julgamento deste mundo; agora é que o dominador deste mundo vai ser lançado
fora. E Eu, quando for erguido da terra, atrairei todos a
mim. Dizia isto dando a entender de que espécie de morte havia
de morrer»[2].
Como é normal para os cristãos, nesta quadra do ano, tudo
se passa entre o sentido da vida e o sentido da morte, assumindo a vida e a
morte, a dor e a alegria que tecem os nossos dias. Não é para morrer nem para
sofrer que viemos ao mundo. O sentido do cristianismo não é a cruz, mas a Ressurreição,
a plenitude da vida.
Uma celebração cristã da Eucaristia parece uma montagem
de textos. Não nos enganemos. Não são eles que nos salvam. O que nos salva é o
acolhimento da graça da nossa transformação e das nossas relações humanas.
São, no entanto, os textos que nos acordam, nos dizem,
nos provocam, para o que é preciso fazer neste mundo. Revestem, por isso, um
carácter comunitário. Não são apenas para nosso proveito, mas para colocar a nossa
vida ao serviço dos outros. Uma celebração eucarística situa-nos na vida de
todos e para proveito de todos, o que exige a morte do nosso egoísmo. É na
medida em que enterrarmos esse egoísmo que floresce a vida para todos.
2. Não podemos identificar uma
celebração da fé cristã com uma exaltação do sofrimento, da dor e da morte. Não
é o que faz sofrer que nos salva. O elogio do sofrimento não é necessariamente
cristão. Supor que Deus gosta do sofrimento é um insulto ao Deus da vida. O
cristianismo, neste mundo – ao contrário das aparências –, é para descrucificar
as pessoas, não para as torturar.
É impressionante o número de textos do NT, de estilos
muito diferentes, para dizer que a nossa vida só tem sentido como dom, como partilha,
tornando-nos cada vez mais competentes para aliviar o sofrimento que atormenta pessoas
e multidões.
Passamos pela vida a correr para não nos confrontarmos
com as suas interrogações. A função do Domingo é a de nos fazer parar: que ando
eu a fazer da minha vida? É bom saber o que nos salva e o que nos perde: gastar
a vida de forma que dê mais vida ou gastar a vida para dar cabo da vida dos
outros.
O filósofo checo, Tomáš Halík,
ordenado sacerdote na clandestinidade, em 1979, tornou-se conhecido pelo seu
empenho num diálogo construtivo com não-crentes e crentes de outras tradições
religiosas e por uma vasta bibliografia[3].
Chamou a atenção que, na fé cristã,
é impossível desligar a realidade de Deus da realidade humana e a realidade
humana da realidade de Deus. «A fé cristã consiste em estabelecer uma relação
constante entre o Evangelho e a nossa vida; consiste na coragem de entrar
nesta história. Trata-se de tentar redescobrir, de forma sempre nova e mais
profunda, o sentido das narrativas bíblicas, com base nas próprias experiências
pessoais e comunitárias, deixar actuar as possantes e fortes imagens do
Evangelho para que elas, gradualmente, iluminem, interpretem e transformem o
fluxo da nossa vida»[4].
3. O
texto-acontecimento escolhido para este Domingo é uma interrogação radical que a
prática cristã não pode nem quer evitar, hoje. A alma de todas as expressões desta
vida religiosa está no desejo de querer ver Jesus. Isto significa que o
conhecimento de Jesus tem de ser um conhecimento de experiência feito, o
conhecimento do amor.
O cristianismo transformar-se-ia em
algo abstracto – num estudo, por exemplo – sem o desejo, a vontade, o esforço de
um encontro pessoal e comunitário com Jesus. O desejo vai além da realidade
aparente: «Tendo entrado
em Jericó, Jesus atravessava a cidade. Vivia ali um homem rico, chamado Zaqueu,
que era chefe de cobradores de impostos. Procurava ver Jesus e não
podia, por causa da multidão, pois era de pequena estatura. Correndo à
frente, subiu a um sicómoro para o ver, porque Ele devia passar por
ali. Quando chegou àquele local, Jesus levantou os olhos e disse-lhe:
Zaqueu, desce depressa, pois hoje tenho de ficar em tua casa. Ele desceu
imediatamente e acolheu Jesus, cheio de alegria[5].
Todo o NT está dependente da visão
do Ressuscitado e são bem-aventurados os que acreditam sem ver porque a fé é a
mais profunda das visões[6].
Quem, em termos de desejo, escreveu
os poemas cristãos mais sugestivos foi José Augusto Mourão, O.P. (1947-2011): não
se extinga o desejo que nos faz viver, / Deus do nosso desejo;// alimenta em
nós o fogo das paixões / que nos leva a agir / e o fogo da palavra que por
dentro queime / e faça escuta;// tu que és o guardião do nosso desejo, / aviva
a chaga que o nosso imaginário / constantemente quer sem falha; / que vivamos o
nosso desejo sem culpabilidade;// circuncize-nos o coração a espada do amor, / pregão
antigo e novo / em nosso corpo adormecido e acordado[7].
Sem o desejo, a alma morre,
ficamos sem a linguagem da esperança, sem a linguagem da Páscoa.
[1] Mt 16,
24-26; Mc 8, 14-37; Lc 9, 23-25
[2] Jo 12,
20-33
[3] A Paulinas Editora publicou vários dos seus livros,
entre eles, Paciência com Deus e A noite do confessor.
[4] Cf. Tomáš Halík, O meu Deus é um Deus ferido,
Paulinas Editora
[5] O caso
de Zaqueu: Lc 19, 1-10
[6] Madalena
diz: Vi o Senhor, Jo 20,18; os discípulos exultaram por verem o
Senhor, Jo 20, 20.25. 29
[7] do desejo, in dizer Deus ao (des)abrigo
do Nome, Difusora Bíblica, 1991, p. 35
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