A pergunta por Deus: uma questão infinita
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
11 Maio 2024
Tem-se frequentemente a ideia de que, à partida, o ateu, quando nega a existência de Deus
ou quando afirma que, com a morte, acaba tudo, tem do seu lado a razão, ficando o crente
sob a suspeita de não-racional, de tal modo que é a ele apenas que compete ter de
apresentar razões da sua fé.
Ora, as coisas não são assim, de modo nenhum. Por paradoxal que pareça, também o ateu
assenta a sua negação da existência de Deus ou da vida depois da morte num acto de fé,
melhor, numa crença. “Em qualquer das suas formas, o ateísmo é uma crença e não uma
evidência, escreveu o filósofo Pedro Laín Entralgo, um ‘creio que Deus não existe’ e não um
‘sei que Deus não existe’.”
O chamado crente e o ateu encontram-se exactamente no mesmo plano: o crente não pode
demonstrar a existência de Deus, nem a vida eterna, exactamente como o ateu não pode
demonstrar que Deus não existe ou que a morte é o termo definitivo da existência da
pessoa. No que se refere a Deus ou à vida depois da morte, as posições do crente, do
agnóstico ou do ateu assentam na crença.
Evidentemente, sendo humanos e, portanto, racionais, todos - o crente, o agnóstico, o ateu -
têm de apresentar razões para a sua crença, pois esta, se quiser ser verdadeiramente
humana, não pode ser cega. Sublinhe-se, porém, que se trata, para todos, de um acto de fé,
certamente com razões, mas sempre de um acto de fé, e não da conclusão de uma
demonstração.
Assim, o crente, o agnóstico, o ateu, em vez de se excluírem, devem encontrar-se e
enriquecer-se mutuamente num conflito dialógico de razões, e, por paradoxal que pareça,
num diálogo sincero e aberto, concluirão que há entre eles muito mais sintonias do que
poderiam supor à primeira vista. Quantos crentes, por exemplo, não ficarão surpreendidos
ao ler em Santo Tomás de Aquino que o saber da fé, não podendo ser evidente, convive com
a opinião, a dúvida...
Fé religiosa e dúvida não se excluem. Pelo contrário, a fé está sempre acompanhada de
perguntas. Estas perguntas humanizam a religião, pois impedem todo o tipo de
fundamentalismo, abrem ao diálogo não só com os crentes de outras religiões, mas também
com os ateus e agnósticos, obrigando a uma reformulação constante das fórmulas
doutrinais, que ao mesmo tempo que tentam dizer o Mistério também o ocultam. Por outro
lado, é bem possível que também ateus e agnósticos aceitem que há um Mistério inominável
que a todos envolve...
Aprofundando a conhecida diferença entre problema e mistério, estabelecida por Blondel e
sobretudo por Gabriel Marcel, Pedro Laín Entralgo distinguia entre problema, enigma e
mistério.
Problemas são aquelas questões que, mais tarde ou mais cedo, o Homem pode resolver.
Assim, concluiu-se que a Terra é redonda e que gira à volta do Sol, e pode encontrar-se
solução para uma crise financeira...
O enigma está referido àquelas questões que nunca serão completamente resolvidas, mas
de cuja solução racional o Homem se vai aproximando cada vez mais, ainda que apenas
assintoticamente.
Enigmas são, por exemplo, a realidade da matéria ou o pensamento. Hoje, sabemos muito
mais sobre o que é a matéria do que Aristóteles ou mesmo Galileu ou Newton, mas isso não
significa que tenhamos uma intelecção plena ou que algum dia venhamos a possuí-la. Neste
domínio, há um saber cumulativo, mas num horizonte assintótico, na medida em que, como
escreveu H.-G. Gadamer, o horizonte não é uma fronteira fixa, mas algo para onde viajamos
e que ao mesmo tempo se desloca connosco, de tal modo que o não alcançamos...
Finalmente, o mistério refere-se a uma realidade na qual se crê, mas cuja intelecção racional
estará para sempre vedada ao Homem. O mistério refere-se às perguntas últimas, como:
Qual o sentido último do universo e da existência? Por que é que existo precisamente eu?
Por que é que há algo e não nada? A vida continua depois da morte? Deus existe?
Estas perguntas colocam-nos perante o que é, por si mesmo, misterioso, pois relacionam-se
com a ultimidade, que não é objecto do saber de evidência, mas do saber de crença. Daí, um
dos dramas maiores da existência, pois, como não se cansava de repetir P. Laín Entralgo, o
objecto da ciência é penúltimo, mas o último é objecto de crença, seguindo-se daí que “o
certo é penúltimo e não pode não ser penúltimo, será sempre penúltimo, e o último é
incerto e não pode não ser incerto, será sempre incerto”.
Mas, por outro lado, repetindo, a crença, para ser autêntica e verdadeiramente humana, não
pode ser cega, o que significa, portanto, que tem de ser argumentativa, isto é, tem de dar
razões de si mesma. A fé não demonstra, mas tem de argumentar, de tal modo que mostre
que é razoável. As razões que tem a capacidade e o dever de apresentar têm de mostrar a
sua plausibilidade.
Concretamente quanto à questão de Deus e da vida depois da morte, isto é, com a morte, o
Homem acaba definitivamente ou, pelo contrário, entrará na sua plena realização na
Realidade Última e Primeira a que chamamos Deus? Quanto a esta questão, nem o não-
crente nem o crente podem demonstrar a sua respectiva posição, pois é de uma crença que,
em última análise, se trata. No entanto, um e outro apresentarão razões a que ambos serão
sensíveis. Ser ser humano é levar consigo esta questão. Melhor: ser esta própria questão. E o
que, em última instância, une os homens é esta procura sem fim e o diálogo à volta desta
questão infinita.
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