VENCER
O CEPTICISMO DEMOCRÁTICO
Frei
Bento Domingues, O.P.
14
Julho 2024
1. Realizou-se a 50ª Semana
Social dos Católicos de Itália, em Trieste, com o tema No coração da
democracia. Participar entre história e futuro. O Papa esteve presente no
encerramento dessa Semana, dia 7, de forma muito activa, a começar por uma
antologia dos seus discursos e mensagens com o mesmo tema. Além da apresentação
do livro, temos de ter em conta o discurso que proferiu e a importante homilia
da Missa.
A presença de Francisco, no nosso mundo, não é de
conformismo, de cedência ao que está a acontecer, mas de mudança. Ao procurar redescobrir
o que é a democracia, aponta os perigos que, hoje, está a correr e o contributo
original que o Cristianismo pode e deve oferecer ao mundo contemporâneo. Ao dar
sentido à nossa história, alimenta a esperança sem a qual não há futuro.
O Papa lembrou que democracia é um termo que se
originou na Grécia antiga para indicar o poder exercido pelo povo por meio dos
seus representantes. Uma forma de governo que, embora se tenha difundido
globalmente, nas últimas décadas,
parece
estar a sofrer as consequências de uma doença perigosa, o cepticismo
democrático.
A dificuldade das democracias em assumir a complexidade
do tempo presente cede, muitas vezes, ao fascínio do populismo. A democracia
tem em si um grande e indubitável valor: o de trabalhar e viver juntos
em liberdade. O facto de o exercício do governo se realizar no contexto de uma
comunidade que se confronta, livre e secularmente na arte da procura do bem
comum, é um nome diferente para o que chamamos política.
No discurso, aos 1 200 participantes da Semana, afirmou:
A própria palavra democracia não coincide simplesmente com o voto do
povo, mas exige que se criem as condições para que todos se possam expressar e
participar. E a participação não se pode improvisar: aprende-se desde criança,
adolescente e deve ser treinada, também no sentido crítico, perante as
tentações ideológicas e populistas. Nesta perspectiva, o Cristianismo pode
contribuir, promovendo um diálogo fecundo com a comunidade civil e com as
instituições políticas. Só assim será possível libertar-se das escórias da
ideologia, reflectindo de modo comunitário, especialmente sobre os temas
relacionados com a vida humana e com a dignidade da pessoa.
O caminho democrático exige debater juntos e saber que,
só juntos, esses problemas podem encontrar solução.
2. Em última análise, é na
palavra participar que encontramos o sentido autêntico da democracia e entramos
no coração de um sistema democrático. Num regime de ditadura ou dirigista
ninguém pode participar, todos assistem ou sofrem passivamente.
Uma verdadeira democracia não exclui ninguém nem nenhum
país. Nós sabemos o que foram e são os regimes de ditadura. Sem democracia não
há paz.
É esta forma de governo que ajuda as pessoas a serem cada
vez mais livres, fraternas e criativas. Os totalitarismos são formas de
dominação. Na vida social, o importante é perguntar em que posso eu ajudar,
vencendo a tentação de dominar.
O Papa deu como exemplos de actuação democrática Giuseppe
Toniolo (1845-1918), inspirador e fundador das próprias Semanas Sociais, e o
famoso político católico italiano, Giorgio La Pira (1904-1977) – um grande
amigo – que defendia para o laicado a capacidade de organizar a esperança
porque, sem ela, pode administrar-se o presente, mas não se constrói o futuro.
Já evoquei, nesta coluna, os leigos e padres portugueses
que muito sofreram e lutaram pelo derrube da ditadura que nos oprimiu até ao 25
de Abril[1].
E agora, entre nós, também existem organizações políticas cansadas da
democracia.
Os que lutaram e lutam contra as ditaduras têm de vencer
a indiferença – cancro da democracia – e a passividade de muitos perante
os rumos dos movimentos sociais.
Em Trieste, o Papa lembrou que são muitas as questões
sobre as quais, democraticamente, somos chamados a interagir. Pensemos num
acolhimento inteligente e criativo, que coopera e integra as pessoas migrantes;
pensemos no inverno demográfico que afeta, agora, de forma generalizada,
toda a Itália e não só; pensemos na escolha de políticas autênticas para a paz,
que coloquem em primeiro lugar a arte da negociação e não o recurso ao
rearmamento. Em resumo, aquele cuidado pelos outros, que Jesus nos indica
continuamente no Evangelho, como a atitude autêntica de ser pessoa, de sermos
humanos.
3. Poderíamos dizer que, tanto
no livro que apresentou, no discurso que fez e na Eucaristia que celebrou, foi
o tema da esperança que esteve sempre presente. Foi mesmo para a despertar que
Deus suscitou e suscita profetas entre o povo.
Na celebração da Eucaristia, questionou muitas das nossas
representações da fé cristã e lembrou que são os profetas que não deixam
adormecer a esperança. São a voz de Deus, muitas vezes rejeitados. O próprio
Jesus teve a mesma dolorosa experiência dos profetas, tornando-se escândalo
para os seus conterrâneos.
A palavra escândalo não se refere a algo obsceno
ou indecente como a usamos hoje. Na homilia do Papa, escândalo significa
a própria humanidade de Deus manifestada em Jesus de Nazaré.
Os seus conterrâneos não conseguiam entender como do
filho de José, o carpinteiro – uma pessoa comum –, poderia surgir tanta
sabedoria e até mesmo a capacidade de realizar prodígios. Sob o ponto de vista teológico,
o escândalo é a própria humanidade de Jesus, Deus humanado. O
obstáculo que impede de reconhecer a presença de Deus em Jesus é o facto de Ele
ser humano. Este escândalo é uma fé fundada num Deus que faz parte da
humanidade, que cuida dela, que se comove com as nossas feridas, que toma sobre
si o nosso cansaço, que se parte como pão para nós.
Hoje, precisamos exatamente desse escândalo
da fé. Não de uma religiosidade fechada em si mesma, que ergue o olhar para
o céu, sem se preocupar com o que acontece na terra, e celebra liturgias no
templo, esquecendo-se da poeira que corre pelas nossas estradas.
Precisamos do escândalo da fé, de
uma fé enraizada no Deus que se fez humano e, portanto, de uma fé humana, de
uma fé de carne, que entra na história, que acaricia a vida das pessoas, que
cura os corações partidos, que se torna fermento de esperança e germe de um
mundo novo.
Deus esconde-se nos cantos escuros da
vida e das nossas cidades. A Sua presença revela-se, precisamente, nos rostos
escavados pelo sofrimento e onde a degradação parece triunfar.
O infinito de Deus está escondido na
miséria humana, o Senhor agita-se e torna-se presença amiga, precisamente, na
carne ferida dos últimos, dos esquecidos e dos descartados. Ali, Deus se
manifesta[2].
Precisamos de uma teologia, de uma
espiritualidade, de uma forma de viver que liguem o céu e a terra.
[1] Novos
e velhos rostos da Igreja, in Público 29.04.2024; Memória e presos
políticos no 25 de Abril, ibidem 05.05.2024
[2] Cf. www.vatican.va 07.07.2024
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