O Homem: questão para si mesmo.
As vítimas inocentes
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
24 Novembro 2024
Quando olhamos para os horrores do mundo hoje, concretamente para a Ucrânia e o Médio
Oriente, é o horror pura e simplesmente, pensando concretamente nas vítimas inocentes. Mas
não foi sempre assim? Veja-se Auschwitz. A gente vai lá e fica estarrecido. Bento XVI foi lá
também e deixou estas palavras: Há “um silêncio que é um grito interior para Deus: Por que te
calaste? Por que quiseste tolerar tudo isto? Onde estava Deus nesses dias? Por que se calou?”
Ele deixou uma encíclica sobre a esperança - Spe salvi -, e nela debruça-se sobre uma pergunta
decisiva, “a pergunta fundamental da Filosofia” (Max Horkheimer) : o que podem esperar as
incontáveis vítimas inocentes da História? Quem lhes fará justiça? Elas clamam, um grito
ensurdecedor percorre a História.
E ergue-se um ateísmo moral precisamente por causa das injustiças do mundo e da História .
“Um mundo no qual há tanta injustiça, tanto sofrimento dos inocentes e tanto cinismo do poder,
não pode ser obra de um Deus bom.” Quase se poderia dizer que se é ateu ad majorem Dei
gloriam, para a maior glória de Deus, como se, perante o horror do mundo, a justificação de
Deus fosse não existir. É-se ateu por causa de Deus.
Afastado Deus, deve ser o Homem a estabelecer a Justiça no mundo. Mas não será esta uma
pretensão arrogante e intrinsecamente falsa? Quem não ouve o eco das palavras de Sófocles: Na
terra “há muita coisa terrível, mas nada existe mais terrível do que o Homem”. Tem, pois, razão
Bento XVI, ao acrescentar: “Um mundo que tem de criar a sua Justiça por si mesmo é um mundo
sem esperança. Ninguém, nem nada responde pelo sofrimento dos séculos.”
Aqui, ele lembra a Escola de Frankfurt, nomeadamente Max Horkheimer e Theodor Adorno, que
viveram filosoficamente a inconsolável “tristeza metafísica” da impossibilidade de fazer justiça
às vítimas da História. De facto, mesmo supondo, no quadro do marxismo e da ideia do
progresso moderno, que algum dia fosse possível erguer uma sociedade finalmente justa,
transparente e reconciliada, ela não poderia ser feliz, já que ou essa sociedade se lembrava de
todas as vítimas do passado, que não participam dela, e seria atravessada pela infelicidade, ou
não se interessava por elas e então não era humana, porque insolidária.
Horkheimer e Adorno exprimiram uma filosofia em tenaz: por um lado, não podiam acreditar
num Deus justo e bom; por outro, há uma verdade da religião, apesar de todas as suas traições
no conluio com o poder e os vencedores: a religião “no bom sentido” é, segundo Horkheimer, “o
anelo inesgotável, sustentado contra a realidade fáctica, de que esta mude, que acabe o
desterro e chegue a justiça”.
Não se trata de um desejo egoísta, mas da esperança contrafáctica de que a realidade
dominante da injustiça não tenha a última palavra. Daí, o “anelo do totalmente Outro”, o “anelo
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
24 Novembro 2024
Quando olhamos para os horrores do mundo hoje, concretamente para a Ucrânia e o Médio
Oriente, é o horror pura e simplesmente, pensando concretamente nas vítimas inocentes. Mas
não foi sempre assim? Veja-se Auschwitz. A gente vai lá e fica estarrecido. Bento XVI foi lá
também e deixou estas palavras: Há “um silêncio que é um grito interior para Deus: Por que te
calaste? Por que quiseste tolerar tudo isto? Onde estava Deus nesses dias? Por que se calou?”
Ele deixou uma encíclica sobre a esperança - Spe salvi -, e nela debruça-se sobre uma pergunta
decisiva, “a pergunta fundamental da Filosofia” (Max Horkheimer) : o que podem esperar as
incontáveis vítimas inocentes da História? Quem lhes fará justiça? Elas clamam, um grito
ensurdecedor percorre a História.
E ergue-se um ateísmo moral precisamente por causa das injustiças do mundo e da História .
“Um mundo no qual há tanta injustiça, tanto sofrimento dos inocentes e tanto cinismo do poder,
não pode ser obra de um Deus bom.” Quase se poderia dizer que se é ateu ad majorem Dei
gloriam, para a maior glória de Deus, como se, perante o horror do mundo, a justificação de
Deus fosse não existir. É-se ateu por causa de Deus.
Afastado Deus, deve ser o Homem a estabelecer a Justiça no mundo. Mas não será esta uma
pretensão arrogante e intrinsecamente falsa? Quem não ouve o eco das palavras de Sófocles: Na
terra “há muita coisa terrível, mas nada existe mais terrível do que o Homem”. Tem, pois, razão
Bento XVI, ao acrescentar: “Um mundo que tem de criar a sua Justiça por si mesmo é um mundo
sem esperança. Ninguém, nem nada responde pelo sofrimento dos séculos.”
Aqui, ele lembra a Escola de Frankfurt, nomeadamente Max Horkheimer e Theodor Adorno, que
viveram filosoficamente a inconsolável “tristeza metafísica” da impossibilidade de fazer justiça
às vítimas da História. De facto, mesmo supondo, no quadro do marxismo e da ideia do
progresso moderno, que algum dia fosse possível erguer uma sociedade finalmente justa,
transparente e reconciliada, ela não poderia ser feliz, já que ou essa sociedade se lembrava de
todas as vítimas do passado, que não participam dela, e seria atravessada pela infelicidade, ou
não se interessava por elas e então não era humana, porque insolidária.
Horkheimer e Adorno exprimiram uma filosofia em tenaz: por um lado, não podiam acreditar
num Deus justo e bom; por outro, há uma verdade da religião, apesar de todas as suas traições
no conluio com o poder e os vencedores: a religião “no bom sentido” é, segundo Horkheimer, “o
anelo inesgotável, sustentado contra a realidade fáctica, de que esta mude, que acabe o
desterro e chegue a justiça”.
Não se trata de um desejo egoísta, mas da esperança contrafáctica de que a realidade
dominante da injustiça não tenha a última palavra. Daí, o “anelo do totalmente Outro”, o “anelo
da justiça universal cumprida”, “a esperança de que a injustiça que atravessa a História não
permaneça, não tenha a última palavra”. E Adorno também escreveu que, frente às aporias da
razão, neste domínio, a única filosofia legítima seria “o intento de contemplar todas as coisas
como aparecem à luz da redenção”.
Embora se não possa afirmar nada para lá da imanência, a pergunta pela esperança truncada
das vítimas, que acusam o mundo da História dos vencedores, obriga a pensar para lá dos
limites da imanência, colocando a pergunta pelo Absoluto enquanto pergunta pela Justiça
universal
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