FESTA DO CORPO DE
DEUS, FESTA DE TODA A HUMANIDADE
Frei Bento Domingues,
O.P.
29 Junho 2025
1. O livro de referência dos cristãos é, de facto,
uma biblioteca – a Bíblia – elaborada ao longo de milhares de anos. Hoje, pode
ser vendida e comprada como se fosse um só livro, esquecendo que foi construída
por vários autores, em várias épocas e traduzida em quase todas as línguas.
Quando se recomenda a sua leitura, é fundamental recorrer a uma boa iniciação
para ser fiel ao seu sentido. Não basta dizer que, tal ou tal frase, vem na
Bíblia. Essa é uma prática fundamentalista. O biblismo preocupa-se
apenas com a materialidade das traduções e não com a sua interpretação. Não podemos
esquecer, no entanto, que, mais grave do que o biblismo, é a própria ignorância
dos textos.
O que nunca pode ser esquecido, mesmo quando é considerada palavra
de Deus, que se trata de um antropomorfismo. Ao pôr Deus a falar, a Bíblia
usa metáforas, que têm como referente o ser humano, o único ser falante, no
sentido próprio do termo. O recurso às metáforas é o único meio de que dispõem
os crentes para se referirem a Deus, à Sua actividade e aos Seus atributos.
Deus criou o ser humano à Sua imagem e o ser humano paga-lhe na mesma moeda. É
óbvio que, na Bíblia, Deus fala com palavras humanas, as únicas que sabemos.
Todas as palavras de Deus contidas na Bíblia foram concebidas por espíritos
humanos, ditas por bocas humanas e escritas por mãos humanas. Para os cristãos,
existe uma espécie de sinergia entre Deus e os autores humanos da Bíblia. É, ao
mesmo tempo, palavra divina expressa em palavras humanas.
Segundo uma lógica que lhes é familiar, os cristãos veem, na
Bíblia, a expressão da misteriosíssima palavra de Deus encarnada em palavras
humanas. No Antigo Testamento (AT), estava já em acção o princípio da
encarnação, que teve, finalmente, a plena realização em Jesus Cristo, Palavra (Logos)
de Deus feita carne (Jo 1,14).
Os primeiros onze capítulos da Bíblia (Gn 1-11) têm o cosmos
e a humanidade como horizonte. É ao cosmos e a toda a humanidade que Deus fala
em parábolas. A partir de Gn 11, o horizonte do relato afunila-se,
progressivamente, no quadro de três gerações. Reduz-se primeiro a Abraão;
depois a Isaac, um dos seus filhos; e, finalmente, a Jacob, também chamado
Israel, um dos filhos de Isaac. A partir de Gn 11 e até ao fim do AT, são estes
os principais destinatários dos discursos divinos, os interlocutores de Deus.
Do ponto de vista histórico, o nome Israel refere-se a
diferentes grupos humanos. Mesmo quando Deus se dirige ao caos ou aos elementos
do cosmos, fá-lo, de facto, em função da humanidade e, sobretudo, em função do
povo Israel, o Seu verdadeiro interlocutor na lógica do relato do AT. Mas não
esqueçamos que Deus convoca o céu e a terra para servirem de testemunhas contra
o Seu povo em contexto de julgamento[1].
2. As teologias dos sacramentos, sejam orientais ou
ocidentais, apresentam-se como presença divina e santificante, mas essas
elaborações não esgotam as formas de presença de Deus no Universo.
A actuação salvífica de Cristo aconteceu há dois mil anos,
mas, como diz Tomás de Aquino, atinge todos os tempos e lugares[2]. É uma realidade muito testemunhada
nos textos do Novo Testamento (NT), que importa ler na íntegra[3].
Se fixarmos a nossa atenção em Jesus na última Ceia,
descobriremos que as suas palavras – isto é o meu corpo – e os seus
gestos de partilha e serviço – lava pés – constituem a essência
afectiva e social do cristianismo – de amor e justiça – a verdade central
do Evangelho.
A festa do Corpo de Deus não depende apenas dos textos do
NT. A sua configuração histórica e problemática medieval, depende da Bula Transiturus
de hoc mundo do Papa Urbano IV, de 1264, centrada em dois aspectos da
Eucaristia: o seu carácter memorial e a sua natureza de banquete,
de refeição e de bebida.
3. Uma das mais belas e realistas apresentações da Teologia
do Corpo devemo-la ao Papa Francisco. «Participamos, com muita fé,
dedicação e respeito, das celebrações do Corpo de Cristo, mas pode ser
que, às vezes, façamos uma profunda cisão ou ruptura entre o que celebramos e a
realidade que nos cerca, ou seja, o encontro com os corpos desfigurados,
explorados, manipulados, usados, escravizados, destruídos... Pode ser que
tenhamos um profundo amor e respeito pelo Corpo de Cristo vivo e presente na
Eucaristia, e não O vejamos nos corpos que estão aqui, ali, lá, por
todos os lados. Não nos devemos envergonhar, não devemos ter medo, não devemos
sentir repugnância de tocar essa imensa carne de Cristo, essa
carne da humanidade ferida».
Esta é a festa do grande Corpo de Cristo que é a Humanidade
inteira. Corpo real de Cristo são especialmente todos os que sofrem com Ele no
mundo, os enfermos e famintos, os rejeitados e encarcerados, os pobres e
excluídos... Eles são a humanidade ferida no Corpo do
Filho de Deus. Cada cristão, ao fazer memória do Corpo de Jesus,
entra em comunhão com todas as energias da Criação.
Como diz a Laudato Si’, uma proposta sobre a ecologia
integral, «A criação encontra a sua maior elevação na Eucaristia. A graça, que
tende a manifestar-se de modo sensível, atinge uma expressão maravilhosa quando
o próprio Deus, feito homem, chega ao ponto de Se tornar alimento místico da
sua criatura. No apogeu do mistério da Encarnação, o Senhor quer chegar ao
nosso íntimo através dum pedaço de matéria. Não o faz de cima, mas de dentro,
para podermos encontrá-Lo a Ele no nosso próprio mundo. Na Eucaristia, já está
realizada a plenitude, sendo o centro vital do universo, centro transbordante
de amor e de vida sem fim. Unido ao Filho encarnado, presente na Eucaristia,
todo o cosmos dá graças a Deus. Com efeito, a Eucaristia é, por si mesma, um
acto de amor cósmico. Sim, cósmico! Porque mesmo quando tem lugar no pequeno
altar duma igreja da aldeia, a Eucaristia é sempre celebrada, de certo modo, sobre
o altar do mundo»[4].
Podemos e devemos comungar pelo fim das desigualdades
sociais e raciais, em solidariedade com e nos corpos desfigurados do corpo
de Deus que andam pelas ruas clamando pela paz e o bem de todos. «Comunhão
não é prémio para os perfeitos. A comunhão é um dom, um
presente, é a presença de Jesus na Igreja e na comunidade. Eu nunca neguei
comunhão a ninguém», como afirmou o Papa Francisco.
O corpo é lugar de êxtase e de opressão, de amor e de ódio,
lugar do Reino, lugar de ressurreição.
O corpo é espaço de salvação, de justiça, de solidariedade,
de acolhimento; é lugar da experiência de Deus, da celebração, da festa, da
entrega... Celebrar Corpus Christi é cristificar os nossos
corpos.
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