sábado, 16 de agosto de 2025

“Estar perto de mim é estar perto do Fogo” -P. Manuel João Pereira Correia mccj

 “Estar perto de mim é estar perto do Fogo”

Ano C – Tempo Comum – 20.º Domingo
Lucas 12,49-53: “Vim trazer fogo à terra”

Decididamente o Senhor não nos deixa tranquilos nem mesmo em tempo de férias. Depois dos seus ensinamentos sobre a oração, as riquezas e a vigilância, nos domingos passados, hoje as suas palavras tornam-se ainda mais fortes e desconcertantes, empregando uma linguagem enigmática, que muitas vezes foi mal interpretada. Estamos a caminho de Jerusalém e Jesus coloca diante dos seus discípulos as exigências radicais da sua sequela. Hoje, porém, Jesus fala de si mesmo, da sua missão e do seu destino. Fá-lo através de três imagens: o fogo, o batismo e a divisão. Detenhamo-nos sobretudo na primeira: o fogo.

1. “Vim trazer FOGO à terra
e como gostaria que já estivesse aceso!”

O fascínio do fogo sobre a imaginação humana e o seu valor simbólico são universais. Não nos surpreende, portanto, que a palavra “fogo” (esh em hebraico; pyr em grego, na versão dos LXX) apareça mais de 400 vezes no Antigo Testamento e mais de 70 vezes no Novo Testamento.

O fogo, na Bíblia, é um dos símbolos mais ricos e polivalentes. Está muitas vezes ligado à manifestação da Shekinah (a presença visível de Deus), como na sarça ardente, na coluna de fogo do Êxodo, no monte Sinai e nas visões proféticas. Pode ser instrumento do juízo divino ou representar a purificação espiritual. Ao mesmo tempo, o fogo simboliza paixão e amor intenso. No Novo Testamento, finalmente, torna-se imagem do Espírito Santo.

1. De que fogo fala Jesus? Poderíamos pensar no fogo do Espírito, mas aqui parece tratar-se sobretudo do fogo da sua Palavra, inflamada pela paixão do Amor divino. Os Evangelhos concordam em apresentar Jesus como um homem apaixonado. Ele é o novo Elias, “profeta como um fogo; a sua palavra ardia como uma tocha” (Sir 48,1), devorado pelo zelo divino (cf. 1 Rs 19,10). O zelo de Jesus era o de cumprir a vontade do Pai (Jo 4,34; Lc 2,49). Durante a purificação do Templo os apóstolos lembrar-se-ão da palavra do Salmista: “O zelo da tua casa me consumirá.” (Jo 2,17).

Este fogo passional manifesta-se tanto na ira contra escribas, fariseus e autoridades do Templo, que tinham colonizado a religião, como na compaixão pelas multidões e os doentes, na misericórdia para com os pecadores e no amor pelos seus discípulos, que “amou até ao fim”. É deste fogo que Cristo quer incendiar o mundo!

2. São Paulo recorda-nos que “o amor de Deus foi derramado nos nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,5). O que fizemos dele? Ainda arde no nosso coração? Fulgura e inflama à nossa volta? Ou é apenas uma chama vacilante? Vivemos uma vida cristã morna? Que o Senhor não tenha de nos dizer o que disse à Igreja de Laodiceia: “tu não és nem frio nem quente” (Ap 3,15-16).

3. Como aquecer o coração? Aproximando-nos do Fogo! No “Evangelho de Tomé”, um apócrifo do séc. I-II que recolhe muitos ditos atribuídos a Jesus, encontramos estas duas afirmações: “Acendi fogo ao mundo, e vede, eu o guardo até que se inflame” (n. 10); “Quem está perto de mim está perto do fogo, e quem está longe de mim está longe do reino” (n. 82). O Senhor que não veio “apagar o pavio que ainda fumega” (Mt 12,20) é o guardião do Fogo no nosso coração, mas devemos aproximar-nos dele com confiança. O medo de ser “queimado” pelo Fogo divino é bem real. Neste sentido, comenta com uma ironia melancólica o grande teólogo e autor espiritual Von Balthasar:
“Se tens fogo no teu coração, guarda-o bem dentro de um lar incombustível e mantém-no coberto, porque se salta sequer uma faísca e tu não o notas, tornar-te-ás presa das chamas juntamente com a casa. Deus é um fogo devorador. Tem cuidado com a forma como tratas com Ele, para que não comece a exigir e tu já não saibas para onde te conduz. Deus é perigoso. Presta atenção, Ele esconde-se, começa com um pequeno amor, com uma pequena chama e, antes que te apercebas, já te possui inteiro e és prisioneiro.” (O coração do mundo)

4. Outra coisa que pode acontecer é que as cinzas cubram o fogo. É necessário, periodicamente, retirar as cinzas e reavivar o fogo. O verbo grego (anazōpureō) traduzido por “reavivar” (acender de novo, reanimar o fogo sob as cinzas) aparece apenas uma vez no Novo Testamento, precisamente em 2 Tm 1,6, onde São Paulo se dirige ao seu discípulo Timóteo dizendo: “Exorto-te a reavivar o dom de Deus que há em ti”. A que “ventilador” recorrer para reavivar o Fogo no nosso coração? Ao sopro do Espírito Santo! Cada manhã peçamos a Ele que remova as cinzas do dia anterior para que o novo dia seja animado pelo Fogo do Amor.

5. O cristão é chamado a ser uma chama viva. Aliás, uma sarça viva, como aquela que Moisés viu no Sinai. Diz um dito dos antigos Padres do deserto:
“Um discípulo perguntou ao padre José de Panefisi: ‘Que devo fazer ainda?’, depois de lhe ter descrito a sua vida de oração, jejum, meditação e pureza interior. Então o ancião levantou-se, ergueu os braços para o céu, e os seus dedos tornaram-se como dez tochas. ‘Se queres — disse-lhe — torna-te todo em fogo.’”

2. “Tenho um BATISMO com que hei de ser batizado,
e como me angustio até que se cumpra!”

Esta afirmação de Jesus é mais compreensível. Ele refere-se à sua morte na cruz. São João insiste que Jesus “é aquele que veio pela água e pelo sangue” (1 Jo 5,6-8). Jesus mergulhou nas águas do Jordão em solidariedade connosco, mas o “batismo” de sangue fá-lo por nós. Jesus diz que “está apressado” (sentido literal do verbo grego, mais do que “angustiado”) para que isso aconteça.

Há uma ligação entre a imagem do batismo e a do fogo. Jesus fala da necessidade deste batismo para que o Fogo do Amor de Deus se propague no mundo. As autoridades judaicas quiseram apagar o fogo da sua palavra e da sua mensagem, mergulhando Jesus nas águas da morte, mas com a sua ressurreição explodirá o Fogo do Espírito por toda a terra.

3. “Pensais que Eu vim trazer paz à terra?
Não, digo-vos, mas DIVISÃO”

Esta afirmação de Jesus é bem compreensível. A sua palavra incomoda e suscita inquietação, resistências e oposições. Acorda-nos das falsas pazes. Onde quer que Cristo entre, traz confusão e divisão, tanto nas consciências como na sociedade e até na Igreja.

Se a mensagem de Jesus é fogo, o cristão é um incendiário. Incomoda os bem-pensantes e os defensores do status quo. Denuncia os compromissos. Provoca a oposição de quem se despreocupa do bem comum e de quem explora a natureza e os pobres.

O Fogo do Evangelho não nos deixa em paz. Eis porque, sem sequer nos darmos conta, procuramos subterfúgios para o manter um pouco afastado. E, paradoxalmente, o mais sofisticado desses subterfúgios pode ser até a própria oração, diz ainda Von Balthasar nesta sua provocação irónica:
“Se não consegues libertar-te do seu olhar, então reza até que já não o vejas. É possível. Rezar até te livrares d’Ele. Rezar o Deus próximo até o tornar num Deus distante. Sepulta-o de orações, até que Ele, com a sua voz, emudeça.” (O coração do mundo)

P. Manuel João Pereira Correia, mccj



P. Manuel João Pereira Correia mccj
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