domingo, 30 de novembro de 2025

A SEMANA VERMELHA E A ESPERANÇA DE FUTURO Frei Bento Domingues, O.P. 30 Novembro 2025

 

A SEMANA VERMELHA E A ESPERANÇA DE FUTURO

Frei Bento Domingues, O.P.

30 Novembro 2025

 

1. O Papa Leão XIV foi à Turquia e ao Líbano de 27/11 a 02 de Dezembro, em viagem ecuménica por ocasião do 1 700º aniversário do Concílio de Niceia. Foi um concílio verdadeiramente ecuménico, embora tenha sido convocado pelo Imperador Constantino, em 325, e cujas consequências não foram todas boas.

Isto não significa um ecumenismo de retorno ao estado anterior às divisões, nem um reconhecimento mútuo do actual status quo da diversidade das Igrejas e das Comunidades eclesiais, mas um ecumenismo voltado para o futuro, de reconciliação no caminho do diálogo, de troca dos nossos dons e patrimónios espirituais.

É este o espírito com que Leão XIV realiza esta viagem, publicando uma Carta Apostólica – In Unitate Fidei (Na Unidade da Fé) dirigida a toda a Igreja.

Como afirma nessa Carta, «para podermos desempenhar este ministério de forma credível, devemos caminhar juntos para alcançar a unidade e a reconciliação entre todos os cristãos. O Credo de Nicéia pode ser a base e o critério de referência deste caminho. Propõe-nos efetivamente um modelo de verdadeira unidade na legítima diversidade. Unidade na Trindade, Trindade na Unidade, porque a unidade sem multiplicidade é tirania, a multiplicidade sem unidade é desintegração.

A dinâmica trinitária não é dualista, como um aut–aut excludente[i]mas sim um vínculo envolvente, um et–et: o Espírito Santo é o vínculo de unidade que adoramos juntamente com o Pai e o Filho. Devemos, portanto, deixar para trás as controvérsias teológicas, que perderam a sua razão de ser, para adquirir um pensamento comum e, mais ainda, uma oração comum ao Espírito Santo, para que nos reúna a todos numa única fé e num único amor».

2. A situação actual exige espírito e práticas ecuménicas que tendem ao respeito mútuo e à colaboração com todos. O grande trabalho das Igrejas cristãs consiste no reconhecimento da liberdade religiosa, na promoção dos Direitos Humanos.

A semana que passou, designada Semana Vermelha (16-23) foi uma iniciativa da Fundação Ajuda à Igreja que Sofre (AIS) para alertar sobre a perseguição aos cristãos. A iniciativa consistiu em iluminar de vermelho edifícios e monumentos em todo o mundo para combater a indiferença sobre esta situação.

De facto, a perseguição aos cristãos é um problema histórico e contemporâneo, com várias manifestações, principalmente na África e Ásia.

Relatórios recentes indicam um aumento significativo no número de cristãos perseguidos, que sofrem com assassinatos, prisões, sequestros e ataques a igrejas, embora não ignoremos o passado violento entre religiões. O desenvolvimento do espírito e da prática do movimento ecuménico tornou-se a única atitude reconhecida pela Igreja.

O Papa Leão XIV (16/11) não nos deixa esquecer a situação actual dos cristãos que sofrem discriminações e perseguições em várias partes do mundo. Penso em particular, disse ele, em Bangladesh, Nigéria, Moçambique, Sudão e outros países, dos quais chegam frequentemente notícias de ataques a comunidades e locais de culto. Isto obriga a que se faça dos Direitos Humanos e da liberdade religiosa o grande objectivo da fraternidade universalidade, Fratelli Tutti. Não bastam afirmações de circunstância, como se uns dias fossem para a fraternidade e outros para a indiferença.

Que podemos nós fazer? Desde a catequese de crianças e adultos, movimentos de jovens, associações de cristãos devem ser ajudados a pensar e a agir de forma ecuménica. A grande tentação é ignorar e desprezar a diferença. A importância da Semana Vermelha foi a de chamar a atenção para os mundos da violência, como sendo expressões longínquas que nada teriam a ver connosco e nós com elas. O grande movimento a suscitar é o de vencer a indiferença. É talvez o maior inimigo dos movimentos de PAZ.

3. O Cristianismo é, por essência, uma janela aberta para o futuro universal, de crentes e não crentes[ii]. Nunca os cristãos se podem contentar com o presente. O grande presente é o futuro aberto. O advento é a forma de não deixar os cristãos esquecidos do que falta viver e fazer. É o momento da esperança. Não temos direito a pensar e dizer: não há remédio, não há nada a fazer, está tudo perdido! Cristo é quem nos precede sempre.

Pensemos e meditemos na visão de Isaías, o grande profeta do Advento, que hoje a liturgia nos propõe: «No fim dos tempos, o monte do templo do Senhor estará firme, será o mais alto de todos e dominará sobre as colinas. Acorrerão a ele todas as gentes, virão muitos povos e dirão: Vinde, subamos à montanha do Senhor, à casa do Deus de Jacob. Ele nos ensinará os seus caminhos e nós andaremos pelas suas veredas.

Julgará as nações e dará as suas leis a muitos povos, os quais transformarão as suas espadas em relhas de arados e as suas lanças, em foices. Uma nação não levantará a espada contra outra e não se adestrarão mais para a guerra. Vinde, Casa de Jacob! Caminhemos à luz do Senhor[iii].

Devemos fazer deste texto, não só um sonho, mas uma inquietação pelo futuro. O Advento é também o tempo da decisão radical. Os presépios são o símbolo desse cristianismo. Nunca se pode esquecer o gesto do burguês Francisco de Assis, que se despiu de todos os negócios, de toda a riqueza e se tornou o Irmão universal.

O que, nesta viagem, o Papa aponta não é apenas diálogo inter-religioso, mas a reconciliação de todos os mundos. Ele foi em nome da paz e da fraternidade.

Apesar de todas as dificuldades, não temos direito a perder a esperança. Recorremos, mais uma vez e não será a última, à inspiração do profeta Isaías: «Brotará um rebento do tronco de Jessé, e um renovo brotará das suas raízes. Sobre ele repousará o espírito do Senhor: espírito de sabedoria e de entendimento, espírito de conselho e de fortaleza, espírito de ciência e de temor do Senhor. Não julgará pelas aparências nem proferirá sentenças somente pelo que ouvir dizer; mas julgará os pobres com justiça e com equidade os humildes da terra. A justiça será o cinto dos seus rins e a lealdade circundará os seus flancos. Então, o lobo habitará com o cordeiro e o leopardo deitar-se-á ao lado do cabrito; o novilho e o leão comerão juntos e um menino os conduzirá. A vaca pastará com o urso e as suas crias repousarão juntas; o leão comerá palha como o boi. A criancinha brincará na toca da víbora e o menino desmamado meterá a mão na toca da serpente. Não haverá dano nem destruição em todo o meu santo monte, porque a terra está cheia de conhecimento do Senhor, tal como as águas que cobrem a vastidão do mar[iv].

a poesia, como transfiguração da linguagem, anuncia a mudança que nos falta fazer, o desafio ao qual não podemos fugir.

Acolher o advento de Cristo na nossa vida é o coração da fé cristã que nos oferece a esperança, nos tempos difíceis que vivemos.



[i] Aut–aut é uma expressão latina que significa "ou-ou" e é frequentemente usada para se referir a uma escolha entre duas opções exclusivas.

[ii] Mt 8, 5-13

[iii] Is 2, 1-5

[iv] Cf. Is 11, 1-9

Construir a nossa arca - P. Manuel João Pereira Correia, mccj

 

Construir a nossa arca

Ano A – Advento – 1º Domingo
Mateus 24,37-44:
“Portanto, vigiai, porque não sabeis em que dia virá o vosso Senhor.”

Com o primeiro domingo do Advento inicia-se um novo ano ou ciclo litúrgico: o ano A, no qual meditamos o Evangelho de Mateus. É o Ano-Novo da nossa vida de fé! De fato, o ano litúrgico não coincide com o ano civil. Começa no primeiro domingo do Advento e conclui-se na semana de Cristo Rei. Não se trata simplesmente de uma repetição cíclica dos mistérios da fé cristã. O Mistério nos encontra em uma situação pessoal diferente, e a vida da Igreja e do mundo também mudou. Poderíamos falar de um avanço em espiral.

1. O Advento: uma tríplice vinda

Advento, do latim Adventus, significa vinda, a Vinda de Cristo. Mas, quando falamos da vinda de Cristo, não se trata apenas de recordar sua visita no passado, mas de reavivar a nossa esperança na promessa do seu retorno. Porém, entre o passado e o futuro, existe a realidade da sua manifestação no presente: Cristo veio e virá, mas ELE VEM hoje, atualizando para nós sua visita de Belém e antecipando sua chegada no fim dos tempos.

São Bernardo diz a esse respeito: «Conhecemos uma tríplice vinda do Senhor. Na primeira ele veio na fraqueza da carne; na última virá na majestade da glória. Uma vinda oculta situa-se entre essas duas que são manifestas. Esta vinda intermediária é, por assim dizer, um caminho que une a primeira à última: na primeira Cristo foi nossa redenção, na última se manifestará como nossa vida, e nesta é nosso descanso e nossa consolação».

2. Em caminho, acompanhados: as figuras do Advento

Quatro personagens nos acompanharão neste tempo de Advento:

- ISAÍAS, o profeta que encontraremos na primeira leitura destes domingos. Ele é o profeta que, sete séculos antes de Cristo, contempla e anuncia a vinda do Messias e nos convida à ALEGRIA messiânica. Ele nos fala portanto com verbos no futuro. Esse futuro iniciado com a chegada do Messias, contudo, ainda está em curso.
Na primeira leitura de hoje (Is 2,1-5), ele já contempla a paz definitiva: «Transformarão suas espadas em arados e suas lanças em foices; uma nação não levantará a espada contra outra, e não aprenderão mais a arte da guerra.». Jesus, porém, despedindo-se dos seus, fala de guerras: «Nação se levantará contra nação e reino contra reino» (Mt 24,7). A situação desde o tempo de Jesus não mudou — pelo contrário. Basta olhar o cenário mundial de guerras e conflitos. Estima-se que existam no mundo mais de um bilhão de armas leves, 85% delas em mãos de civis!

- JOÃO BATISTA, que — no segundo e terceiro domingos — com palavras de fogo nos chama à CONVERSÃO para preparar a vinda de Cristo: «Convertei-vos, porque o Reino dos Céus está próximo!... Preparai o caminho do Senhor, endireitai suas veredas!»

- JOSÉ e MARIA, que — no quarto domingo — nos convidam a CONCEBER o Senhor no ventre do nosso coração, na obediência e no amor.

3. Quem esperamos: o amigo ou o ladrão?

Jesus utiliza várias imagens para falar do seu retorno, mas três são particularmente significativas: o ESPOSO que chega na noite (Mt 25,1-13, parábola das dez virgens); o PATRÃO da casa que chega de surpresa (Mt 24,43; Mt 25,14-30, parábola dos talentos); e o LADRÃO que irrompe na noite (Mt 24,43-44).

O Senhor, certamente, deseja ser esperado como esposo ou amigo. Não podemos ignorar, porém, que às vezes sua chegada nos intimida, como o patrão ao servo. Ele é o Senhor a quem devemos prestar contas. Contudo, não é um patrão autoritário, mas aquele que aprecia nosso serviço e se dispõe a nos fazer sentar à mesa para ele mesmo nos servir (Lc 12,37).
Mas o que dizer da intrigante imagem do ladrão? Permitam-me uma alusão pessoal.

Em 1998, pregando um retiro espiritual em Lima (Peru), tocou-me de modo especial o aviso de Jesus à comunidade de Sardes: «Se não fores vigilante, virei como um ladrão, sem que saibas a que hora venho a ti» (Ap 3,3). Intuía que essa visita seria particularmente dolorosa. Desde então, durante anos, acompanhei-me desta oração: “Senhor, não me visites como ladrão! Visita-me como amigo! E, se por acaso me encontrares distraído, bate à porta do meu coração como um amigo insistente, e bate, bate, até que eu seja obrigado a abrir-te. Mas não venhas a mim como ladrão!”
Quando, alguns anos mais tarde, recebi o diagnóstico da minha doença (ELA), brotou espontaneamente “Senhor, visitas-me mesmo como ladrão!” Mas fiz uma descoberta: até a visita como ladrão é graça! Sempre que a doença me tirava algo, o Ladrão me deixava algo ainda mais precioso. E assim, cada visita sua, misteriosamente, me enriquecia.

Um conselho: faz-te amigo do Ladrão, e cada visita sua será graça!

4. O domingo de Noé

O tempo do Advento, que nos conduz ao Natal, desenvolve-se em quatro domingos, correspondendo aos quarenta dias da Quaresma em preparação à Páscoa. Cada domingo tem sua fisionomia. O primeiro poderíamos chamar de domingo de Noé, porque Jesus recorda essa figura para interpretar o tempo da sua vinda: «Como foram os dias de Noé, assim será a vinda do Filho do Homem».
Este domingo convida-nos à VIGILÂNCIA, na espera do retorno do Senhor.
Os contemporâneos de Noé «não deram por nada, até que veio o dilúvio, que a todos levou». São Paulo, na segunda leitura (Rm 13,11-14), exorta-nos a ter bem presente «em que tempo estamos: Chegou a hora de nos levantarmos do sono». Ser conscientes do momento que estamos vivendo é hoje mais urgente do que nunca. Consequentemente, Jesus nos diz no Evangelho: «Portanto, vigiai, porque não sabeis em que dia virá o vosso Senhor».

Precisamos reconhecer que também nós vivemos demasiado distraídos. A distração e a superficialidade são “o vício supremo da nossa época” (R. Panikkar). Corremos o risco de viver também nós “sem darmos por nada”, arrastados pelos acontecimentos, engolidos pela rotina, fazendo muitas coisas sem lhes dar sentido ou direção.

A evocação de Noé e da sua arca, neste primeiro domingo de Advento, não me parece casual. Na verdade, o relato de Noé e da sua arca fala de nós e do nosso tempo! Ondas e tsunamis de todos os tipos ameaçam hoje, mais do que nunca, a vida de todos e o nosso planeta!
Cristo é o verdadeiro Noé, aquele que construiu a Arca da Nova Aliança, de comunhão de vida entre o céu e a terra. Cada um, contudo, é chamado a ser um novo Noé e a construir uma arca interior, no próprio coração, para acolher e proteger a vida.

Uma proposta para este Advento: construir uma “arca” — cada um a sua, pessoal, segundo a própria vocação e habilidade — para proteger uma dimensão específica da vida ou pessoas que correm o risco de ser submersas pelas ondas agitadas da existência!

P. Manuel João Pereira Correia, mccj


domingo, 23 de novembro de 2025

O Rei, crucificado connosco malfeitores - P. Manuel João Pereira Correia, mccj

 

O Rei, crucificado connosco malfeitores

Ano C – 34.º Domingo do Tempo Comum
Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo
Lucas 23,35-43: “Hoje estarás comigo no paraíso”

Hoje, último domingo do ano litúrgico, celebramos a solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo. Esta festividade foi introduzida pelo Papa Pio XI em 1925, num período histórico marcado pelas dificuldades e turbulências do pós-guerra. Pio XI estava convencido de que só a proclamação da realeza de Cristo sobre todos os povos e nações poderia garantir a paz. Com a reforma litúrgica, após o Concílio Vaticano II, a festividade foi colocada no final do ano litúrgico, como sua conclusão natural.

O texto do Evangelho de hoje é tirado de São Lucas, que nos acompanhou durante este ano litúrgico, ciclo C.

A Mãe do Rei e o seu longo sofrimento

Lucas inicia o seu evangelho com o relato de uma dupla visita celeste: a Zacarias, no templo de Jerusalém, e a Maria, em Nazaré da Galileia. A Maria, o anjo Gabriel faz um anúncio e uma promessa solenes e impressionantes: “Conceberás e darás à luz um filho, e dar-lhe-ás o nome de Jesus. Será grande e chamar-se-á Filho do Altíssimo; o Senhor Deus dar-lhe-á o trono de David, seu pai, e reinará eternamente sobre a casa de Jacob e o seu reino não terá fim” (Lc 1,31-33). Filho do Altíssimo e Rei! Três vezes sublinha a sua realeza e, por duas vezes, afirma que ela será eterna.

Todo o evangelho de Lucas desenvolve-se em torno desta promessa, levada adiante porém em ritmos lentíssimos para as nossas expectativas e de modo paradoxal para os nossos critérios.

  • Um rei à mercê do imperador de Roma. Maria é obrigada a ir dar à luz a Belém. A Palavra vem em seu auxílio: David, seu pai, também nasceu em Belém!

  • Um rei que nasce num estábulo. A Palavra recorda-lhe que Deus escolheu David, seu servo, “e o tomou dos apriscos das ovelhas” (Sl 78,70).

  • Um rei que tem de fugir da fúria assassina de Herodes. A Palavra de Deus sustém-na mais uma vez: também David foi fugitivo para escapar ao rei Saul.

  • Um rei que vai morar na periferia do reino, numa aldeia perdida da Galileia chamada Nazaré. Também aqui a Palavra vem iluminar Maria: “Será chamado nazareno” (Mt 2,23). O nome hebraico “Nazaré” tem a mesma raiz verbal “naszar”, que significa “rebento”, o rebento de David (Is 11,1).

Mas seguem-se então trinta longos anos em que o Rei trabalha como carpinteiro, pondo à dura prova a fé de Maria!

O Rei vindo de longe para reivindicar o seu Reino

Todo o evangelho de Lucas desenrola-se em torno desta dupla revelação: Jesus, Filho de Deus e Rei Messias. Na primeira parte, Jesus é proclamado Filho de Deus pelo Pai, no batismo e no monte Tabor, mas só Satanás e os possessos o reconhecem como tal.
Na segunda parte do evangelho de Lucas, o Reino de Deus torna-se o tema privilegiado da sua pregação. A certo momento, Jesus põe-se a caminho de Jerusalém (Lc 9,51) para reivindicar o seu título de Rei. Como Ele próprio conta numa parábola, enquanto sobe de Jericó para a Cidade Santa: “Um homem de família nobre partiu para um país distante, a fim de receber o título de rei e depois voltar” (Lc 19,12). Obtém-no por ocasião do “segundo batismo” (cf. Lc 12,50), o de sangue, no trono da cruz: “Este é o rei dos Judeus”.

Durante o percurso da Galileia a Jerusalém, porém, Jesus vai alienando progressivamente os seus seguidores, que esperavam um rei bem diferente. Há ainda uma tentativa entusiasta dos seus conterrâneos galileus de o proclamar rei, com a entrada triunfal em Jerusalém, mas fracassa logo. Os chefes religiosos e políticos retomam rapidamente o controlo da situação. E a multidão dos seus simpatizantes, intimidada e desiludida, limita-se a observar, à espera dos acontecimentos. Assim farão também os seus discípulos.
Um rei, portanto, sem reino, sem súbditos, sem exército e sem lugares-tenentes. O rei ficará sozinho!

Um rei no alvo da tentação

O seu título de Filho de Deus tinha sido por três vezes posto à prova por Satanás: “Se és Filho de Deus…”. Agora é “o momento fixado” para o regresso do Adversário (cf. Lc 4,13). Com efeito, o demónio volta ao ataque por mais três vezes, através de três protagonistas da crucifixão: os chefes religiosos, os soldados e um dos malfeitores: “Se és o Cristo, o rei dos Judeus, salva-te a ti mesmo”.
Se, na primeira série de tentações, Jesus vencera o demónio com a Palavra, agora fá-lo com o Silêncio. Fala três vezes: mas a primeira e a terceira dirigindo-se ao Pai (Lc 23,34.46) e a segunda para responder à súplica do segundo malfeitor.

Um rei com um único súbdito

“Jesus, lembra-te de mim quando entrares no teu reino. Ele respondeu-lhe: Em verdade te digo: hoje estarás comigo no paraíso.” É surpreendente! Este malfeitor é o único a reconhecer a realeza de Cristo e torna-se o primeiro cidadão do seu Reino.

Segundo alguns autores, o diálogo de Jesus com o segundo malfeitor não é um simples detalhe acrescentado pelo evangelista, mas o ponto culminante e central do quadro lucano da crucifixão (J.A. Fitzmyer e W. Trilling). Neste sentido, torna-se a síntese e o ápice da missão de Jesus segundo o Evangelho de Lucas: “O Filho do homem veio procurar e salvar o que estava perdido” (Lc 19,10).

A tradição apócrifa (Evangelho de Nicodemos, apócrifo do século IV) atribui ao chamado bom ladrão o nome de Dimas ou Dismas, e coloca-o à direita de Jesus, enquanto o outro, que o insultava, se chamaria Gesta ou Gestas. E Dimas torna-se… São Dimas, muito popular na Idade Média. A Igreja celebra-o a… 25 de março, data ligada pela tradição à morte de Jesus! “Santo já!”, por via directíssima, é o primeiro decreto do Rei: “Em verdade te digo: hoje estarás comigo no paraíso”! Nem João Paulo II conseguiu semelhante feito, apesar da aclamação popular!

“Hoje mesmo estarás comigo no paraíso!” São Lucas é o evangelista do “hoje”, sémeron (dez vezes, oito das quais na boca de Jesus). É a última vez que encontramos este advérbio temporal. Nos lábios de Jesus torna-se a sua palavra suprema. Trata-se do “hoje” da misericórdia, que nos introduz no HOJE eterno. Portanto, uma palavra cheia de esperança e de consolação, para Dimas e para nós, visto que este “hoje” continua a durar (Hb 3,13). Aliás, “Deus fixa de novo um dia, hoje” (Hb 4,7) para cada um de nós. Como não aproveitar?

Gesta ou Dimas?

O nome Gestas, numa interpretação algo fantasiosa, poderia significar, do latim “gesta” (proezas heroicas). Dimas significaria “ocaso”, “poente”, em grego. Gestas e Dimas poderiam espelhar a nossa humanidade, duas maneiras antagónicas de conduzir a existência.

Todos nós somos “mal-feitores” e, mais cedo ou mais tarde, vemo-nos, de algum modo, na cruz. E então temos apenas duas alternativas: pôr a nossa confiança nas obras das nossas mãos ou entregar a nossa vida nas mãos de Deus. Podemos ser como Gestas e olhar para trás, para as “gestas” do nosso passado: poucas vezes orgulhosos das nossas conquistas ou, mais frequentemente, desiludidos e amargurados. Ou podemos fazer como Dimas: olhar para a cruz do Rei e implorar com confiança: Jesus, lembra-te de mim! Jesus, lembra-te de mim! Só Ele poderá encher de luz serena o nosso ocaso!

P. Manuel João Pereira Correia, mccj


segunda-feira, 17 de novembro de 2025

SERÁ A POBREZA UMA FATALIDADE? Frei Bento Domingues, O.P. 16 Novembro 2025

 

SERÁ A POBREZA UMA FATALIDADE?

Frei Bento Domingues, O.P.

16 Novembro 2025

 

1. Não falta quem diga que foi o próprio Jesus que fez da pobreza uma fatalidade: pobres sempre tereis entre vós[1]. Dizer isso é ler fora do contexto. Na sua terra, em dia de sábado na Sinagoga, Jesus apresentou como programa da sua intervenção no mundo, usando palavras mais antigas, palavras do profeta Isaías 61, 1: O Espírito do Senhor está sobre mim / porque me ungiu / para anunciar a Boa-Nova aos pobres / enviou-me a proclamar a libertação aos cativos / e, aos cegos, a recuperação da vista / a mandar em liberdade os oprimidos / a proclamar um ano favorável da parte do Senhor.

Ele suprimiu intencionalmente, na sua leitura de Isaías, a parte do texto que incluía o dia da vingança do nosso Deus. Esta não fazia parte do seu programa. Ele veio, precisamente, para suprimir a vingança, para anunciar o contrário: amai os vossos inimigos, fazei bem a que vos faz mal… O que não vai fazer parte do seu programa é a violência, a inimizade entre pessoas e povos.

Além disso, o Nazareno teria dito, segundo o testemunho do Novo Testamento (NT), esta passagem assustadora: não venho trazer a paz, mas a espada. Convém ver o que Tomás de Aquino diz acerca da paz: há uma paz, fundada na injustiça, que é preciso destruir. É uma falsa paz. A verdadeira paz, fundada no amor e na justiça, é aquela que deve ser promovida (pax delenda et pax instauranda). Sem esta distinção, atribuímos a Jesus de Nazaré uma verdadeira barbaridade incompatível com todo o NT.

2. Para o conhecido teólogo, Juan José Tamayo, Gustavo Gutiérrez, OP (1928-2024) é justamente reconhecido como o pai do novo paradigma teológico, que representou uma verdadeira revolução epistemológica, metodológica, espiritual e social no discurso religioso e na prática libertadora de cristãos e grupos com especial sensibilidade ao sofrimento da maioria popular.

Segundo este teólogo, estamos diante de uma nova maneira de fazer teologia que teve repercussões sociais e políticas, desestabilizadoras para o sistema neocolonial latino-americano e continua a tê-las, hoje, para o sistema de globalização neoliberal que o Papa Francisco define como a globalização da indiferença que nos torna indiferentes aos gritos dos outros e descreve como fundamentalmente injusto.

Não deixa de ser curioso que seja o Papa Francisco a escrever o prefácio do último livro de Gustavo Gutiérrez, Viver e pensar o Deus dos pobres.

Neste prefácio, Francisco, que tinha denunciado a economia que mata, testemunha que esta voz latino-americana, durante a sua longa vida, foi um servo fiel de Deus e um amigo dos pobres. A sua teologia marcou a vida da Igreja e ainda é actual, com um frescor que abre caminhos ao seguimento de Jesus.

Neste último livro, ofereceu-nos, mais uma vez, o fruto do seu empenho, da sua oração e da sua reflexão. Quero destacar nessas páginas a profunda e permanente fidelidade à Igreja no seu caminho. Uma fidelidade vivida com humildade, às vezes com dor e, fundamentalmente, com liberdade.

Muitos grupos cristãos estavam a viver desafios, questionamentos e esperanças que derivavam do forte clamor dos pobres e do crescente compromisso com este mundo. A irrupção dos pobres, como Gustavo a chama, exigia justiça e uma outra maneira de viver a fé, de pensar a fé, de dizer a fé, em suma, de ser Igreja. Gustavo frequentemente lembrava, oralmente e por escrito, a frase de João XXIII de 11 de Setembro de 1962, um mês antes da inauguração do Concílio: a Igreja apresenta-se como é e quer ser, como a Igreja de todos e, particularmente, a Igreja dos pobres.

A sua pergunta constante, Como podemos falar de Deus a partir do sofrimento do inocente? continua a ser premente para os crentes diante do poder da injustiça e da mentira. Os pontos centrais da sua teologia querem estar presentes onde a marca de Deus parece ter sido apagada na atmosfera cultural. Enraizada na libertação que Cristo nos oferece, a sua teologia afirma a gratuidade do amor de Deus que nos envolve na história. A teologia de Gustavo permanece na Igreja não como um belo tesouro do passado, mas como aquele segundo acto, uma tarefa sempre aberta, para pensar a nossa experiência vivida de Deus; uma experiência já iniciada e experimentada justamente ali, onde nos tornamos próximos dos feridos, abandonados à beira da estrada e de onde tentamos dizer com humildade, com terna convicção, aos mais pobres e a todos: Deus ama-te. Gustavo deu-nos as ferramentas teológicas indispensáveis para que nunca nos esquecêssemos dos pobres.

Neste último livro, deixa muito claro que lembrar-se dos pobres significa muito mais do que um peditório; não é um acréscimo piedoso. Como ensina S. Paulo, é o coração da mensagem cristã (2 Cor 8 – 9).

Em consonância com este texto, convém evocar as palavras de uma pessoa muito querida a Gustavo, Bartolomé de Las Casas, OP (1484-1566): De cada um dos pequenos e mais esquecidos, Deus guarda uma recordação muito próxima e viva.

A partir daqui, o Reino que Jesus anuncia abraça toda a criação, cada ser humano e realidade humana, em todos os tempos e lugares. É este o Deus de Jesus de Nazaré[2].

Em Portugal, no âmbito da Teologia da Libertação, Bruto da Costa, Manuela Silva e Gonçalo Pereira Diniz, OP, podem ser incorporados nesse vasto movimento internacional[3]. Quando se pensa nos pobres, é preciso nunca esquecer o Padre Américo e todas as suas iniciativas. Não fez teologia. Praticou-a.

3. George Bernanos afirmava que há cristãos capazes de se instalar comodamente mesmo debaixo da cruz de Cristo. Gustavo Gutiérrez pretende corrigir essa tendência conformista, activando as energias utópico-libertadoras do cristianismo. A sua referência intelectual é Bartolomé de Las Casas, OP, defensor dos índios e africanos escravizados pelos conquistadores e pioneiro do reconhecimento e respeito pela pluralidade cultural. Parafraseando-o (os índios morrem antes de tempo) o teólogo peruano afirma que os pobres na América Latina morrem antes de tempo.

As questões existenciais, ou melhor, vitais que queimam os lábios de Gustavo e lhe atormentam a consciência têm a ver com a linguagem sobre Deus: como falar de Deus a partir do sofrimento dos inocentes? Com a fraternidade: como falar de Deus Pai num mundo onde os seres humanos não são irmãos? E com a vida e a morte: como falar da ressurreição num mundo onde os excluídos são carne para canhão?

A pobreza não será uma fatalidade se tiver pessoas como Gutiérrez e o Papa Francisco que criem movimentos que atingem a economia que mata.

 

 



[1] Jo 12, 8

[2] O livro, traduzido do espanhol para italiano por Marta Pescatori, foi publicado postumamente pela Editora Queriniana (Brescia 2025), segundo a notícia de L'Osservatore Romano

[3] Cf. Gonçalo Pereira Diniz, OP, O clamor do “não homem”. A obra de Gustavo Gutiérrez como proposta atual de ética política e social, Universidade Católica Editora, 2020

sábado, 15 de novembro de 2025

Fim ou começo? - P. Manuel João Pereira Correia, mccj

 Fim ou começo?

Ano C – 33º Domingo do Tempo Comum
Lucas 21,5-19: “Com a vossa perseverança salvareis a vossa vida”

Estamos no penúltimo domingo do Tempo Comum e o ano litúrgico aproxima-se do fim. A liturgia aproveita para falar-nos das “realidades últimas” (éschata, em grego). O fim dos tempos, o fim deste mundo, o fim das coisas, o fim da nossa vida... A Palavra quer evangelizar os nossos medos e libertar-nos tanto da angústia quanto de uma despreocupação tola. Convida-nos ao discernimento, a refletir sobre o fim e o sentido da existência, a cultivar a esperança e uma visão positiva da vida.

Jesus está no final dos seus dias. Pouco antes tinha chorado ao ver Jerusalém e previsto o seu fim: “Não ficará em ti pedra sobre pedra, porque não reconheceste o tempo em que foste visitada!”. Jesus ama a sua cidade, como ama a nossa “cidade”, hoje. Mas – ai de nós – quantas vezes Ele também nos diz, com tristeza: “Se ao menos tu compreendesses hoje o que conduz à paz!” (Lc 19,42).

O fim do templo

Encontramo-nos no templo de Jerusalém, reconstruído por Herodes, o Grande, uma maravilha arquitetónica, orgulho de Israel. A esplanada tinha cerca de 500 metros de comprimento e 300 de largura, com uma superfície equivalente a 22 campos de futebol. Os trabalhos começaram por volta de 19/20 a.C., e todo o complexo arquitetónico só foi concluído por volta de 63/64 d.C., poucos anos antes da destruição romana no ano 70. O historiador judeu-romano Flávio Josefo (37/38–100 d.C.) relata que ali trabalharam 10.000 operários e que 1.000 sacerdotes foram especialmente formados como pedreiros e carpinteiros para trabalhar nas partes sagradas, onde apenas sacerdotes podiam entrar. O templo era considerado a oitava maravilha do mundo. A construção magnífica impressionava tanto aqueles que chegavam a Jerusalém que se dizia: “Quem não viu Jerusalém, a resplandecente, não viu a beleza”.

Podemos imaginar a surpresa e o espanto quando Jesus profetiza a destruição do templo. Era realmente o “fim do mundo” para os ouvidos e o coração dos seus ouvintes.

A destruição do templo faz-nos pensar. É verdadeiramente o símbolo das nossas próprias obras humanas. Tantos anos de sonhos e projetos, de trabalho e investimentos, de empenho e sacrifícios... destruídos de repente e irremediavelmente! A magnífica construção do templo, concluída depois de cerca de oitenta anos, seria logo em seguida arrasada! E isso aconteceu porque o povo de Deus tinha colocado naquele templo a sua segurança.

Em vão o profeta Jeremias havia alertado séculos antes, antes do exílio e da destruição do templo de Salomão: “Não confieis em palavras enganosas repetindo: ‘Este é o templo do Senhor, o templo do Senhor, o templo do Senhor!’ [Se não praticardes a justiça...] Eu tratarei este templo sobre o qual é invocado o meu nome e no qual confiais... como tratei Silo”, o templo do Reino do Norte, destruído pela invasão assíria em 721 a.C. (cf. Jr 7,1-15). O templo tinha-se tornado um ídolo, uma falsa segurança!

Também a Igreja muitas vezes colocou a sua segurança nos seus “templos”: nas suas instituições, no poder e influência social, nas tradições e dogmas... em vez de na fé em Jesus Cristo. Também por isso hoje nos sentimos um pouco perdidos com o fim da “cristandade” e os desafios inéditos do futuro.

E eu, onde ponho a minha confiança? Qual é o “templo” no qual confio? Sinto-me seguro porque vou à igreja, ou porque sou religioso, ou me declaro cristão?

O fim do mundo

No contexto do fim de Jerusalém e do templo, surge também o tema do “fim do mundo”. Jesus fala dele numa linguagem apocalíptica, um género literário que utiliza imagens simbólicas muito fortes. Basta ver, a esse propósito, o livro do Apocalipse. Porém, o objetivo é incutir esperança nos crentes. De facto, o seu significado em grego é revelação, ou seja, “tirar o véu” da história para entendermos o seu sentido.

“Quando é que tudo isto acontecerá?”, perguntam os apóstolos. Jesus não responde diretamente. Aliás, noutra passagem dirá que não sabe. Hoje poderíamos perguntar ao Google e encontraríamos até datas precisas. Mas isso pouco nos interessa. Preocupam-nos antes a ameaça atómica, cada vez mais discutida, e a crise climática. Na verdade, somos nós que determinamos o fim deste mundo e preparamos o novo mundo que desejamos.

Santo Inácio, num dos momentos mais fortes dos Exercícios Espirituais, convida a meditar sobre “As Duas Bandeiras”. Trata-se de uma meditação de discernimento para compreender que “senhor” queremos servir. Inácio apresenta uma cena simbólica: dois “chefes” que reúnem os seus exércitos. Lúcifer convoca os seus na grande planície da Babilónia. Cristo, por sua vez, reúne os seus na planície de Jerusalém. As estratégias são completamente opostas.

Mesmo sem disso nos darmos conta, muitas vezes seguimos um desses “senhores”: ou pertencemos à equipa que tenta retomar a construção da torre de Babel, que ficou inacabada (Gn 11), para alcançar o “céu”; ou pertencemos à equipa que se empenha em preparar a nova Jerusalém. Esta obra acontece agora, aqui, nas nossas escolhas grandes e pequenas, e continua na eternidade.

Diz o conhecido filósofo católico Jacques Maritain, no seu livro As coisas do Céu, que os danados são “ativos” que trabalham todo o tempo: “Farão cidades no inferno, torres, pontes, travarão batalhas. Empreenderão governar o abismo, ordenar o caos”. Mas tudo está destinado a ruir!

No céu, ao contrário, trabalha-se para preparar a Jerusalém celeste, que São João, o vidente do mundo futuro, contempla enquanto desce do céu: “Vi também a cidade santa, a nova Jerusalém, a descer do céu, de junto de Deus, preparada como uma esposa adornada para o seu esposo” (Ap 21).

Então, por qual equipa torcemos? Ou melhor, em qual equipa jogamos? Tentamos reconstruir o velho mundo, apesar de todas as tentativas falhadas? Ou queremos fazer da nossa vida um tijolo da cidade futura?

O fim da nossa vida

Para cada um de nós, o mundo acaba no dia da nossa morte. Trata-se do dia da grande viagem, se – simbolicamente – nos é permitido dizê-lo. De repente, atravessamos bilhões de anos e encontramos-nos noutra dimensão, a dos ressuscitados. É inútil tentar imaginá-la!

Sábio é aquele ou aquela que dá sentido à sua vida em vista desse fim.

Uma das imagens mais belas e eloquentes que Jesus usa para falar do mundo novo é a das dores de parto: “A mulher, quando está para dar à luz, sente tristeza porque chegou a sua hora; mas, depois de ter dado à luz, já não se lembra da dor, por causa da alegria de ter vindo ao mundo um homem” (Jo 16,21). Estas dores de parto são as da perseguição, do testemunho e da perseverança, diz o evangelho de hoje.

Existe também um sofrimento que não gera vida: “Como a mulher grávida prestes a dar à luz se contorce e grita nas dores, assim fomos nós diante de ti, Senhor. Concebemos, tivemos dores, mas era só vento; não trouxemos salvação à terra e não nasceram habitantes no mundo” (Is 26,17-18).

As nossas dores de parto, são um sofrimento fecundo, ou uma dor estéril, inútil, desperdiçada? Tudo depende daquilo com que alimentamos o seio do nosso coração: se da “palavra e sabedoria” que Jesus promete dar-nos no Evangelho de hoje; ou, ao contrário, de inutilidades e vanglórias! Diz o Eclesiastes: “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade!” (Ecl 1,2). Então, estamos grávidos de vida ou de vanglórias?

P. Manuel João Pereira Correia, mccj


A fé convive com a dúvida - Anselmo Borges Padre e Professor de Filosofia

 A fé convive com a dúvida

Anselmo Borges

Padre e Professor de Filosofia

Insisto constantemente em que no Novo

Testamento há duas “definições” de Deus —

evidentemente, Deus não é definível, mas são

tentativas de dizer algo sobre o seu mistério. Na

Primeira Carta de São João, está escrito que Deus é

Agapê, Amor incondicional. O Evangelho segundo

São João começa com estas palavras: “No princípio

era o Logos, o Logos estava Deus e o Logos era Deus.

Por Ele é que tudo começou a existir.” Logos significa

palavra, razão, inteligência. Deus é, portanto, Amor

e Razão e, assim, a existência humana e cristã

autêntica resultará da convergência e

interpenetração da bondade e da razão, da

inteligência e do amor. Portanto, a fé não só não

pode contradizer a razão como deve ser razoável e,

como diz a Primeira Carta de São Pedro, é preciso

“dar razões da esperança”. E, como tentei explicar

2

na crónica da semana passada, não há resposta

definitiva constringente para o que é a realidade na

sua ultimidade. É no próprio acto de fé que o crente

experiencia o carácter razoável da sua adesão

confiante livre.

Assim, tanto o crente como o ateu, a partir do

mundo comum, que é ambíguo, arrancam de

perguntas humanas radicais — qual é o Fundamento

e o Sentido último? —, e as suas respectivas

respostas de fé ou descrença representam

interpretações da realidade, mas nestes precisos

termos, como escreveu o filósofo da religião Andrés

Torres Queiruga: "não se interpreta o mundo de

uma determinada maneira porque se é crente ou

ateu, mas é-se crente ou ateu porque a fé ou a

descrença aparecem aos respectivos sujeitos como o

modo melhor de interpretar o mundo comum".

Deste modo, também no domínio da fé há uma

"verificação": se o crente dá a sua adesão à fé é

porque comprova que a "hipótese religiosa" é a que

melhor ilumina as questões últimas da vida e da

morte, a realidade do mundo e da história; o

agnóstico confessará que não acha razões

suficientes para decidir-se; o ateu apoia-se na

convicção de que têm mais peso as razões contra a

existência de Deus. Como se não cansava de repetir

3

Pedro Laín Entralgo, só o penúltimo é certo, o último

é e não pode não ser incerto.

Deste modo, torna-se claro que a fé convive com a

dúvida, como já observou Santo Tomás de Aquino e,

para dar exemplos, já aqui citei algumas vezes a

situação angustiante de Santa Teresinha do Menino

Jesus quando as dúvidas da fé a assaltavam. De

qualquer modo, erguer-se-á sempre aquela terrível

pergunta: Como é que Deus é compatível com tanto

mal, tantos horrores no mundo?

Hoje quero chamar a atenção para o querido Papa

Francisco, tão sensível também ele ao problema do

mal, na sua autobiografia, que foi e é um best-seller,

com o título ESPERANÇA. Termina assim: “Uma vez,

um jovem universitário perguntou-me: na

universidade tenho muitos amigos que são

agnósticos ou ateus, o que devo dizer para que se

tornem cristãos? Nada, disse eu. A última coisa que

deves fazer é falar. Primeiro, deves fazer, e então

será quem vê como vives, como geres a tua vida,

que irá perguntar: por que razão o fazes? Então,

poderás falar. No testemunho de uma vida, a palavra

vem depois, é consequência. Deixar também um

espaço para a dúvida, também esta é uma chave

importante”. E acrescenta: “Se uma pessoa diz que

encontrou Deus com certeza total, então não está

4

bem. Se alguém tem respostas para todas as

perguntas, esta é a prova de que Deus não está com

ele. Quer dizer que é um falso profeta, que

instrumentaliza a religião, que a usa para si mesmo.

Os grandes guias do povo de Deus, como Moisés,

sempre deixaram espaço para a dúvida. É necessário

sermos humildes, deixar espaço ao Senhor, não às

nossas fingidas seguranças. A ternura não é

fraqueza: é a verdadeira força. É a estrada que os

homens e as mulheres mais fortes e corajosos

percorreram. Percorramo-la, lutemos com ternura e

com coragem. Percorrei-a, lutai com ternura e com

coragem... Eu sou apenas um passo.”

Quereria fechar esta crónica talvez pouco

sistematizada, observando que é essencial pensar

que, lá no mais fundo, quando a pergunta é a

pergunta pelo Sentido último, se está confrontado

com a questão decisiva: a Vida plena, eterna, em

Deus, ou o nada.

Sábado, 15 de Novembro de 2025

domingo, 9 de novembro de 2025

O dia da purificação - Pe. Manuel João Pereira Correia, mccj

 O dia da purificação

9 de novembro – Festa da Dedicação da Basílica de São João de Latrão
João 2,13-22: “Não façais da casa de meu Pai um mercado!”

Neste ano, o dia 9 de novembro cai num domingo; por isso, a Festa da Dedicação da Basílica de São João Batista em Latrão (Roma), celebrada neste dia, tem precedência sobre o XXXII Domingo do Tempo Comum.

Talvez, para a maioria dos cristãos, esta festa pareça anacrónica e distante, no tempo e no espaço; ou até mesmo inconveniente, por ser centralizadora, numa época em que se procura valorizar mais a Igreja local. No entanto, se considerarmos o seu sentido profundo — como sinal de unidade e comunhão, como cátedra do anúncio da Palavra recebida dos apóstolos e testemunhada pelo martírio de Pedro e Paulo — esta festa torna-se uma oportunidade unica para expressar a fé na “Igreja una, santa, católica e apostólica”.

As leituras bíblicas escolhidas para este dia desenvolvem o tema do “templo”. Na primeira leitura (Ez 47), o profeta Ezequiel, do exílio na Babilónia, procura encorajar o seu povo com a visão de um novo templo, coração pulsante de um novo Israel e fonte de vida extraordinária.
Na segunda leitura (1Cor 3), São Paulo passa do templo físico ao espiritual, recordando-nos que nos tornámos templo de Deus porque o Espírito Santo habita em nós.
Por fim, no Evangelho (Jo 2,13-22), por ocasião da primeira Páscoa do seu ministério, Jesus purifica o antigo templo e anuncia o novo templo na sua própria pessoa.

A “mãe de todas as igrejas”

Esta festa tem uma origem muito antiga. Depois do Édito de Constantino, no ano 313, que garantia a liberdade de culto no Império Romano e punha fim às perseguições contra os cristãos, o imperador doou ao Papa o palácio de Latrão e, alguns anos mais tarde, mandou construir uma igreja. Consagrada a 9 de novembro de 324 pelo Papa Silvestre I com o nome de Basílica do Santíssimo Salvador, foi a primeira igreja a ser publicamente consagrada.
Destruída várias vezes ao longo dos séculos, foi sempre reconstruída. Posteriormente, foi dedicada a São João Batista e também a São João Evangelista. A sua última reconstrução ocorreu sob o pontificado de Bento XIII, que a reconsagrou em 1724. Foi nessa ocasião que a festa foi instituída e estendida a toda a cristandade.

A Basílica é considerada a principal, “a mãe de todas as igrejas” do mundo. O seu nome completo é “Basílica Papal do Santíssimo Salvador e dos Santos João Batista e Evangelista em Latrão”, embora seja geralmente chamada Basílica de São João de Latrão.

A “igreja das catacumbas”

Hoje gozamos do direito sagrado da liberdade religiosa e, das catacumbas da clandestinidade, podemos professar a nossa fé abertamente, à luz do dia. No entanto, esquecemos uma triste realidade: a “igreja das catacumbas” ainda existe!
O direito fundamental à liberdade religiosa é negado a muitos cristãos. Isto acontece em algumas nações muçulmanas e em tantas outras, onde grassam fundamentalismos islâmicos e hindus, ou onde se instalaram regimes autoritários, ateus ou comunistas. Um em cada sete cristãos ainda vive numa era pré-constantiniana e é vítima de abusos e perseguições. São forçados a professar a fé no medo, entre lágrimas e sangue.

Não podemos esquecer esta atual “igreja das catacumbas” quando nos reunimos para celebrar a Eucaristia. Infelizmente, isso acontece quase sempre. Ignoramos o seu sofrimento. Cristo Rei há de nos recordar: “Estive preso e não me visitastes!”

Igreja, lugar de encontro

Dedicar ou consagrar a Deus um lugar significa reservá-lo para a sua glória. Ali, nesse espaço físico, podemos fazer a experiência de Jacó: “Na verdade, o Senhor está neste lugar... Esta não é outra coisa senão a casa de Deus, esta é a porta do céu” (Gn 28,16-17). Ou a experiência do rei Salomão, por ocasião da consagração do templo, quando a Arca da Aliança foi introduzida no templo e a nuvem da glória do Senhor encheu o santuário (1Rs 8,1-11).

Lembremo-nos, contudo, de que o encontro com Deus agora acontece na pessoa de Cristo e na comunhão dos irmãos: “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estou no meio deles” (Mt 18,20). Não há encontro com Deus sem o encontro com os irmãos. É triste entrar nas nossas igrejas, meio vazias, durante a celebração eucarística, e constatar a dispersão física dos fiéis. A impressão é que cada um quer encontrar o “seu” Deus, evitando o encontro com o irmão. Esse tipo de religiosidade não é expressão da fé cristã!

Fora daqui!

O episódio da expulsão violenta dos vendedores de animais destinados aos sacrifícios e dos cambistas, em vista das ofertas para o templo, talvez já não nos impressione tanto. Mas esta ação extrema de Jesus, colocada pelo evangelista João no início do seu ministério, por ocasião da primeira Páscoa, deveria interpelar-nos. Esta manifestação de zelo e a consequente “purificação do templo” são válidas para todos os tempos. Valem para o templo físico das nossas igrejas, mas sobretudo para o templo espiritual do nosso coração, consagrado a Deus pelo batismo. As palavras de São Paulo na segunda leitura parecem ecoar a mesma indignação divina: “Não sabeis que sois templo de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós? Se alguém destruir o templo de Deus, Deus o destruirá. Porque o templo de Deus é santo, e esse templo sois vós.”

Também no nosso coração muitas vezes se instalam vendedores e cambistas de todo o tipo. Predominam os nossos interesses, e negociamos com Deus. Do ambão da Palavra, quantas vezes Jesus não terá gritado também a nós: “Tirai daqui estas coisas e não façais da casa de meu Pai um mercado!”? Mas, frequentemente, fazemos ouvidos de mercador, ignorando o aviso de Jesus: “Não podeis servir a Deus e ao dinheiro!” (Lc 16,13).

A festa de hoje é uma excelente oportunidade para também nós tomarmos o chicote e expulsarmos os vendedores e cambistas que se apoderaram do nosso coração. 

Que o Senhor nos conceda que o zelo pela sua casa nos consuma!

Pe. Manuel João Pereira Correia, mccj


segunda-feira, 3 de novembro de 2025

Alguém quer ser santo? - Anselmo Borges Padre e Professor de Filosofia

 Crónicas PÁRA E PENSA

Alguém quer ser santo?

Anselmo Borges

Padre e Professor de Filosofia

Vale! era a saudação latina: Saúde, passa bem,

passai bem! Aliás, a própria palavra saudação tem

também a ver com saúde e com salvação (salus,

salutis). Saudar vem do latim: salutem dare (dar,

desejar saúde). Ainda se diz nas aldeias: 'negar a

salvação a alguém', com o sentido de recusar-se a

cumprimentar uma pessoa. Saudade tem aqui

igualmente o seu étimo. Veja-se, por exemplo, a

expressão: mandar muitas saudades. A saudade é

aquele sentimento de solidão que tem na sua base

a falta da pessoa querida. Ter saudades e enviar

saudades é aquele desejo de que quem partiu e

2

anda longe, esteja onde estiver, passe bem... Por

sua vez, saúde refere-se sempre àquela situação em

que o ser humano na sua totalidade está bem. A

saúde tem a ver com o todo holisticamente

considerado, numa situação de integração e

equilíbrio harmoniosos: saúde somática, saúde

psíquica, saúde social, saúde ecológica, saúde

espiritual, implicando, portanto, uma relação sã

consigo, com os outros, com a natureza, com

Deus...

Tudo isto por causa do dia 1 de Novembro. É

possível que muitos portugueses pensem que esse

dia é feriado nacional por causa dos mortos. Mas

não é verdade: é feriado nacional por causa da

celebração da Festa de Todos os Santos.

Aí está algo que praticamente ninguém que

alguma vez tenha pensado nisso (mas quantos

pensaram?) quereria ser: santo. Até porque os

santos com os quais habitualmente contactamos

julgamos que são aquelas figuras geralmente pouco

belas, torcidas e até por vezes ridículas que vemos

3

em muitos altares das igrejas e que são levadas a

“passear” pelas ruas uma vez por ano nas

procissões das romaria. Mesmo quando nos

reportamos àqueles homens e àquelas mulheres

reais de carne e osso, que aquelas figuras

quereriam representar, vemo-los a maior parte das

vezes como beatos, tristes, a bichanar orações,

desagradados com a vida, deprimidos, ascetas a

quem não é permitido apreciar as coisas boas e

belas da existência...

No entanto, se pensássemos bem, é mesmo isso

que queremos ser: santos. Porque santo, também

etimologicamente, tem a ver com saúde. E o que é

que nós fazemos sem saúde? Santo e são têm a

mesma raiz. E isso tanto nas línguas latinas como

nas anglo-saxónicas — dizemos: aquele homem

está são e também dizemos São João; em inglês:

holy (santo), health (saúde), em conexão com the

whole (o todo harmónico já apontado)... Há

sempre essa conexão entre saúde, santidade,

salvação e totalidade harmónica. Só estamos sãos,

4

se tudo em nós estiver bem: uma dor da alma ou

uma simples unha encravada colocam-nos em

desequilíbrio. Ser santo significa, repito, harmonia

toda: estar de bem consigo, com os outros, com o

mundo, com a natureza, com o divino... Assim, por

exemplo, quem despreza o mundo não é santo. O

desequilíbrio é o contrário da santidade, que

consiste precisamente na plenitude harmónica e

expansiva.

De qualquer modo, nos dias 1 e 2 de Novembro,

o que, de facto, lembramos mais são os mortos. Nas

nossas sociedades, urbanas, científicas e técnicas,

onde o que mais se valoriza é o aparecer, o

parecer, o dinheiro, a eficácia, a juventude, o light,

o ter, o poder, o êxito, e onde, por isso mesmo, a

morte é tabu e sobre a morte se mente às crianças

e mentimos a nós mesmos e uns aos outros,

permite-se até certo ponto que os mortos, os

defuntos, surjam dois dias por ano no convívio dos

vivos. Os cemitérios enchem-se, embora cada vez

menos. Aí, há uma lembrança, uma recordação.

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Talvez se erga, sem palavras, uma prece. E surge

uma inquietação: o que é o Homem? O padre

António Vieira respondeu: “pó levantado”. Com

isso, ele queria apelar à humildade, aquela

humildade que não anula a dignidade. Pelo

contrário: o ser humano humilde é o ser humano

(homem ou mulher) bom, digno e verdadeiro. E

precisamente a bondade, a dignidade e a verdade

no combate pela justiça, a fraternidade e a paz,

pertencem ao núcleo do que se chama santo,

também em ligação constituinte com a esperança:

no meio das dúvidas, perplexidades, injustiças e

horrores, a esperança da plenitude da vida eterna

em Deus...

Sábado, 1 de Novembro de 2025

domingo, 2 de novembro de 2025

UM GRANDE FIM DE SEMANA Frei Bento Domingues, O.P. 02 Novembro 2025

 

UM GRANDE FIM DE SEMANA

Frei Bento Domingues, O.P.

02 Novembro 2025

 

1. Os cristãos celebram neste fim de semana algo de extraordinário. Proclamam, neste Sábado, que a morte não é a última palavra sobre a existência humana. A morte não é o sentido da vida. Caso contrário, seria a derrota final do ser humano que vive da esperança (1 Ts 4, 13-14).

Jean Delumeau[1], grande historiador católico, desejava acolher a hora derradeira em condições de poder dizer de novo a palavra do Salvador: Pai, nas tuas mãos entrego a minha vida. Morreu em 2020, aos 96 anos. Segundo o diário La Croix, o próprio historiador preparou o seguinte texto para ser lido no seu funeral: A minha vida teve as suas dores e as suas alegrias, os seus fracassos e os seus sucessos, as suas sombras e as suas luzes, os seus defeitos, os erros e as inadequações, mas também os seus impulsos e as suas esperanças. Terminei a minha corrida. Possa eu adormecer-me na tua paz e no teu perdão! Sê o meu refúgio e a minha luz. Rendo-me a ti. Entrarei na terra. Mas que o meu último pensamento seja o da confiança.

Esta é a linguagem do bom senso da verdadeira expressão da fé cristã.

2. Este ano, neste fim de semana, a construção litúrgica oficial celebra, no Sábado, a festa de Todos os Santos, canonizados ou não, a plenitude da vida humana. No Domingo, celebra os Fiéis Defuntos, onde cabem todos, todos, todos, como diria o Papa Francisco.

A ambiguidade destas designações exprime a nossa ignorância acerca da vida depois da morte. A imaginação atreveu-se a saber mais do sabe. Umas pessoas iriam para o céu, para disfrutar da eterna alegria de Deus. Outras teriam de ser purificadas pelo fogo para poderem entrar no céu. Outras ainda, que morriam em pecado mortal, iriam para o inferno, para o sofrimento eterno.

Estas representações pertencem a determinados momentos da história religiosa que ainda sobrevivem em muitos lugares: pessoas completamente realizadas, outras a precisar de purificação e outras condenadas para sempre.

As concepções que as alimentou não podem reclamar-se da teologia verdadeiramente cristã. A condenação eterna é uma ofensa à revelação da Primeira Carta de S. João (4, 8.16): Deus é amor. Tudo o que se disser em teologia cristã nunca poderá negar esta afirmação eterna. Não é o inferno que é eterno. Eterno é o amor que Deus nos tem.

Para este grande fim de semana, escolhi a apresentação do Apocalipse, uma imagem de Deus como futuro absoluto e incondicional.

O termo apocalipse, ao contrário do que sugere certa linguagem corrente, é a transcrição de uma palavra grega que significa revelação. Foi o título dado, que ficou para sempre, àquele que se apresenta como o último livro da Bíblia, um livro de consolação para a Igreja perseguida pelos imperadores romanos. Contém o belíssimo poema do grande sonho de uma divina consolação.

3. Vi, então, um novo céu e uma nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra tinham desaparecido e a ameaça do mar já não existe. E vi descer do céu, de junto de Deus, a cidade santa, a nova Jerusalém, já preparada qual noiva adornada para o seu esposo. E ouvi uma voz potente que vinha do trono e dizia: Eis a tenda de Deus com os seres humanos. Ele habitará com eles; eles serão o seu povo e ele, Deus-com-eles, será o seu Deus. Ele enxugará todas as lágrimas dos seus olhos; e não haverá mais morte, nem luto, nem clamor e nem dor haverá mais.

Sim! As coisas antigas passaram! O que está sentado no trono declarou: Eis que faço novas todas as coisas. E continuou: Escreve, porque estas palavras são fiéis e verdadeirasE disse-me ainda: elas realizaram-se! Eu sou o Alfa e o Ómega, o Princípio e o Fim. A quem tem sede, eu darei gratuitamente, da fonte de água viva. O vencedor receberá esta herança e eu serei o seu Deus e ele será meu filho[2].

Este grande poema, que vem no final do Novo Testamento, começa com este desígnio: Revelação de Jesus Cristo.

Deus encarregou-o de manifestar as coisas que brevemente devem acontecer e que Ele comunicou pelo anjo que enviou ao seu servo João, o qual atesta que tudo o que viu é Palavra de Deus e testemunho de Jesus Cristo.

Feliz o que lê e os que escutam a mensagem desta profecia e põem em prática o que nela está escrito, porque o tempo está próximo. João saúda as sete igrejas da província da Ásia: graça e paz da parte d’ Aquele-que-é, Aquele-que-era e Aquele-que-vem, da parte dos sete Espíritos que estão diante do seu trono e da parte de Jesus Cristo, a Testemunha fiel, o Primogénito dos mortos, o Príncipe dos reis da terra! Àquele que nos ama e nos purificou dos nossos pecados com o seu sangue e fez de nós uma Realeza de Sacerdotes para Deus, seu Pai.

A Ele pertence a glória e o poder pelos séculos dos séculos. Ámen! Eis que Ele vem com as nuvens! Todos os olhos o verão, até mesmo os que o trespassaram. Todas as nações da terra se lamentarão por causa dele. Sim. Ámen! Eu sou o Alfa e o Ómega – diz o Senhor Deus – Aquele-que-é, Aquele-que-era e Aquele-que-vem, o Todo-Poderoso.

Eu, João, vosso irmão e companheiro na perseguição, na Realeza e na perseverança em Jesus, encontrava-me na ilha de Patmos por causa da Palavra de Deus e do testemunho de Jesus. No dia do Senhor, fui movido pelo Espírito e ouvi atrás de mim uma voz potente como de trombeta, que dizia: O que vais ver, escreve-o num livro e envia-o às sete igrejas: à de Éfeso, de Esmirna, de Pérgamo, de Tiatira, de Sardes, de Filadélfia e de Laodiceia.

Voltei-me para ver de quem era a voz que me falava. E, ao voltar-me, vi sete candelabros de ouro; no meio dos candelabros, vi alguém com aparência humana. (…) Ele tinha na mão direita sete estrelas e da sua boca saía uma aguda espada de dois gumes; o seu rosto era como o Sol resplandecente com toda a sua força. Ao vê-lo, caí como morto a seus pés. Mas Ele colocou a mão direita sobre mim, dizendo: Não tenhas medo! Eu sou o Primeiro e o Último, o Vivente. Estive morto; mas, como vês, estou vivo pelos séculos dos séculos e tenho as chaves da Morte e do Abismo! Escreve, pois, as coisas que vês, as que estão a acontecer e as que vão acontecer, depois destas. E este é o simbolismo das sete estrelas que viste na minha mão direita e dos sete candelabros de ouro: as sete estrelas são os anjos das sete igrejas e os sete candelabros são as sete igrejas[3].

Dominados por catecismos, falsamente realistas, evitamos este grande livro do Apocalipse, abandonamos o livro mais espantoso do Novo Testamento. O que não sabemos explicar, leva-nos a ignorar o que representa a transfiguração da plural linguagem cristã.

As representações do mundo e do ser humano estão em profunda e constante alteração. O céu, o inferno, o purgatório, o juízo final são metáforas dos desejos e dos medos humanos. São representações engrandecidas do além à imagem do que há de melhor e de pior neste mundo.

 



[1] Jean Delumeau, Aquilo em que acredito, Círculo de Leitores, 1994

[2] Apocalipse 21, 1-7

[3] Apocalipse 1

sábado, 1 de novembro de 2025

As oito portas do Paraíso - Pe. Manuel João Pereira Correia, mccj

 

As oito portas do Paraíso

Ano C – Solenidade de Todos os Santos
Mateus 5,1-12: “Jesus subiu à montanha, sentou-se, e os seus discípulos aproximaram-se dele.”

No dia 1º de novembro, a Igreja celebra a Solenidade de Todos os Santos, uma comemoração de origens muito antigas. Já no final do século II, verifica-se uma verdadeira veneração dos santos. A solenidade nasceu no Oriente no século IV e difundiu-se progressivamente também por outras regiões, ainda que com datas diferentes: em Roma era celebrada a 13 de maio, enquanto na Inglaterra e na Irlanda, a partir do século VIII, a 1º de novembro. Esta última data acabou por se impor também em Roma a partir do século IX.

Quem são os santos que festejamos hoje? Não são (apenas) aqueles reconhecidos como tais pela Igreja, que realizam milagres, mas a multidão vislumbrada por São João no Apocalipse: “uma multidão imensa, que ninguém podia contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas” (Ap 7). Muitos viveram ao nosso lado e cuidaram de nós; outros cruzaram o nosso caminho na vida. E tantos, mesmo desconhecidos, foram como anjos para nós.

As bem-aventuranças: oito palavras, oito caminhos e oito portas

A liturgia propõe-nos o Evangelho das bem-aventuranças na versão de Mateus (Mt 5,1-12). Elas constituem o prólogo do primeiro discurso de Jesus em Mateus e o resumo de todo o Evangelho. Trata-se de um texto muito conhecido, mas que, justamente por isso, corremos o risco de o ler apressadamente e ignorar a sua riqueza, profundidade e complexidade. Gandhi dizia que estas eram “as palavras mais sublimes do pensamento humano”, a quintessência do cristianismo.

É preciso recordar que o evangelista Mateus gosta das montanhas. No seu Evangelho, a palavra “monte” aparece 14 vezes. Sete montes, em particular, marcam a vida pública de Jesus, desde as tentações (cf. Mt 4,8) até ao mandato apostólico no monte da Missão (cf. Mt 28,16). Estes montes têm um valor simbólico e teológico: o monte é sinal de proximidade com Deus. De facto, Lucas situa este discurso de Jesus numa planície. A vida cristã realiza-se num duplo movimento: a subida ao monte e a descida à planície.

“Vendo as multidões, Jesus subiu à montanha, sentou-se, e os seus discípulos aproximaram-se dele.” Esta “subida à montanha” e o “sentar-se” (gesto solene do mestre na cátedra) é uma clara referência a Moisés no monte Sinai. Este monte é, portanto, o novo Sinai, de onde o novo Moisés proclama a nova Lei. Se a Lei de Moisés, com as suas proibições, estabelecia os limites a não ultrapassar para permanecer na Aliança de Deus, a nova “Lei” abre-nos horizontes inéditos. É um novo projeto de vida.

O discurso de Jesus inicia-se com as oito bem-aventuranças (a nona, dirigida aos discípulos, é um desenvolvimento da oitava). Às dez “palavras” do Decálogo correspondem agora as oito “palavras” das bem-aventuranças. São os novos caminhos do Reino e as oito portas do Paraíso!

O que as bem-aventuranças NÃO SÃO

  1. As bem-aventuranças NÃO são um elogio da pobreza, do sofrimento, da resignação ou da passividade... Pelo contrário: são um discurso revolucionário! Por isso suscitam a oposição violenta daqueles que se sentem ameaçados no seu poder, riqueza e status social.

  2. As bem-aventuranças NÃO são o ópio dos pobres, dos sofredores, dos oprimidos, dos fracos... que servem para adormecer a consciência da injustiça de que são vítimas, levando-os à resignação. Ainda que, no passado, tenham sido usadas assim. Pelo contrário, são uma adrenalina que estimula o cristão a empenhar-se na luta para eliminar as causas e raízes da injustiça!

  3. As bem-aventuranças NÃO são uma promessa de felicidade apenas para a vida futura. São fonte de felicidade já nesta vida. De facto, a primeira e a oitava, que enquadram as outras seis, têm o verbo no presente: “porque deles é o Reino dos Céus”. As outras seis têm o verbo no futuro, mas é uma promessa que torna a felicidade já presente hoje, ainda que a caminho da sua plenitude. Promessa que garante que o mal e a injustiça não têm a última palavra. O mundo não é — nem será — dos ricos e poderosos!

  4. As bem-aventuranças NÃO são (apenas) pessoais. É a comunidade cristã, a Igreja, que deve ser pobre, misericordiosa, chorar com os que choram, ter fome e sede de justiça... para dar testemunho do Evangelho!

O que as bem-aventuranças SÃO

  1. As bem-aventuranças SÃO um grito, uma proclamação de felicidade, um Evangelho dirigido a todos. “Bem-aventurado” (makários, em grego) pode traduzir-se por: feliz, parabéns!, felicitações!, congratulações!... As bem-aventuranças são válidas em todas as situações e em todos os níveis. Mas devemos reconhecer que esta mensagem que professamos e anunciamos está em plena contradição com a mentalidade dominante no mundo em que vivemos. Portanto, não devemos estranhar se muitos se afastam.

  2. As bem-aventuranças SÃO... uma só! As oito são variações de uma única realidade, e cada uma ilumina as outras. Os comentadores consideram, geralmente, a primeira como a fundamental: “Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus.” Todas as outras são, de certo modo, diferentes formas de pobreza. Sempre que, na Bíblia, se quer renovar a Aliança, começa-se restabelecendo o direito dos pobres e excluídos. Sem isso, a Aliança não se refaz! Poderíamos perguntar por que não há uma bem-aventurança sobre o amor. Na verdade, todas são expressões concretas do amor!

  3. As bem-aventuranças SÃO o espelho, o autorretrato de Cristo. Para compreendê-las e captar as suas nuances, é preciso olhar para Jesus e ver como cada uma delas se realizou na sua pessoa.

  4. As bem-aventuranças SÃO a chave de entrada no Reino de Deus — para todos: cristãos e não cristãos, crentes e não crentes. Nesse sentido, as bem-aventuranças não são “cristãs”. Elas definem quem pode realmente entrar no Reino. Todos são chamados às bem-aventuranças! É o que também nos diz Mateus 25, sobre o juízo final.

Conclusão

As bem-aventuranças não são a expressão de um sonho de um mundo idealizado e inatingível, uma utopia para sonhadores. Para o cristão, são o critério de vida: ou as acolhemos, ou não entraremos no Reino!
As bem-aventuranças correspondem a oito categorias de pessoas e a outras tantas portas de entrada no Reino. Não há outras entradas! Para entrar no Paraíso, é preciso identificar-se com pelo menos uma dessas oito tipologias e encarnar um aspeto da vida de Cristo.
Qual é a minha bem-aventurança, aquela para a qual me sinto particularmente atraído? Aquela que sinto ser a minha vocação, por natureza e por graça?

Pe. Manuel João Pereira Correia, mccj