Como sabem o tempo do nosso encontro é sempre muito curto; montes de coisas ficam por fazer, muitas conversas por concluir e algumas comunicações ....ficam no papel. O Fernando Paulo fez-me chegar uma comunicação que levava preparada e que gostaria de ter feito. Corrijo. Ela foi feita mas em ambiente muito restrito porque já fora de horas. Aqui vai para quem gostar :
DA POESIA E DOS POETAS... AO MODO DE VIVER
EM PERMANENTE ACTO POÉTICO...
quem resiste e a si se nega...
faz-se voz universal
dos caminhantes eternos!...
A. Oliveira Cruz: Canto Inaudito,
Lisboa, Edições Piaget, 2014, pág. 54).
CREIO QUE A POESIA, ESSA ALUMIANTE ESTRELA, ENTRE AS MAIORES, NO
FIRMAMENTO DA INSTAURAÇÃO CRIADORA DOS SENTIDOS POLARES DO MUNDO, inspiradora de todos os sonhos, preservadora de todas as esperanças e propulsora dos mais fulgidos
e fascinantes encantamentos em toda a esfera da saudade e do desejo do por-ser que quer Ser, ser-se quer,
CREIO, INABALAVELMENTE, QUE ESSA CINTILANTE «ESTRELA D’ALVA» DOS SUBLIMES
RUMOS DA HUMANA TRANSCENDÊNCIA, JAMAIS SE APAGARÁ DO CORAÇÃO DOS
HOMENS, ENQUANTO A VOZ IRRESIGNADA E INSUBMISSA DE UM SÓ POETA SE ERGUER NA
ÁGORA PARA CANTAR A IRREVOGÁVEL PRESENÇA DE HOMERO NA CIDADE, perpetuando, com a sua lira ou sua harpa e os seus poemas, ou seja, com a maviosidade quente e pura do seu canto, o
nosso local e universal livro do destino e preservando, na lápide do Tempo, o sagrado e
inexaurível thesaurus da nossa incontornável e intransferível humanidade...
Foi assim que, em sintonia com a ancestral “tradição” que, pelo menos, desde o já
referido e lendário Homero da Ilíada e da Odisseia e o bíblico Salomão do Cântico dos
Cânticos, OS POETAS FORAM VISTOS COMO OS DIVINOS E PRIMIGÉNIOS PAIDEUTAS E
ARQUITECTOS DA PÓLIS E DA DIVINA “HUMANITAS” DO SER HUMANO QUE TODOS SOMOS, facto que nos deve motivar a todos A ESTAR NA VIDA EM PERMANENTE ACTO POÉTICO...
Mas, PORQUE SOMOS FRUTO E PERTENÇA DE UMA INCOMPARÁVEL FAMÍLIA E
INSTITUIÇÃO DE DIMENSÃO PLANETÁRIA — A FAMÍLIA E INSTITUIÇÃO COMBONI —,impõe-se-nos a todos nós o urgentíssimo retorno à nossa antrópica divindade genuína e prístina; torna-se
imprescindível escutar as vozes proféticas, sóficas e poéticas que irrompem do passado, nascidas
da pureza e dos abismos fundacionais do ser; seguir de novo a «lição» ética, civilizacional e
inter-culturalmente forte dos «Grandes Mestres», daqueles «Mestres de Estofo e de Estatura» de
que nos fala George Steiner nas suas Lessons of the Masters1, com a consequente recusa do que
não presta, do que não tem elevação, nem sentido, nem grandeza e a permanente assunção de
uma inconformada libido sciendi (2), de um insaciável e insaturável desejo do Saber, de uma
aturada e sofrida ascese melhorativa e de uma inextinguível, porque sempre jovem, paixão pelo
intranscendido Legado dos Studia Humanitatis, o mesmo é dizer, da Magna Charta Sapientiae et
Humanitatum — Legado esse que, nesta CASA, nos começou a ser transmitido e inseminado!...
Pois bem: em nome desse Legado, de fundo arquetípico e paradigmático, seja-me
permitido registar no quadro ou no écran da fraternal partilha, com a respeitosa atitude que
sempre importará assumir perante tudo quanto nos ultrapassa, AQUELA MESMA ESTELAR E
ORIENTADORA «RECOMENDAÇÃO» que vai no sentido da humildade, da serenidade, da paciência
e da persistência que o próprio Steiner foi buscar a Heidegger:
QUEM QUISER RESPOSTAS, GUARDE SILÊNCIO; QUEM BUSCAR PERGUNTAS, LEIA POESIA ( 3)...
Protagonistas, como os Poetas, do verbo fundador, estruturante, energético, sedutor,
sábio, artístico, alumiante, augural, profético e poiético e «porque a realidade profunda da
palavra é o espírito que nela mora ou o espírito que por ela passa», então, a sua palavra — A
Palavra Poética e Alumiante — poderá configurar, com Vergílio Ferreira (4), por uma lado, a
«furtiva correlação de referências que nos orientam do filósofo ao poeta, ao homem
quotidiano», e, pelo outro, a «mágica e real (...) tessitura que em si mesma se resolve (...) para
nela sermos a totalidade do que somos com a aventura do desconhecido e o apelo do mais que nunca é»...
E quem sabe?... Com ela no coração puro e sereno e na mente sem maldade e sem
pecado e inspirados naquela mesma «arte de roseira» que leva Herberto Helder a trazer para
dentro da morada quente, luminosa e fascinante de seus fabulosos poemas as crianças que há no
mundo... vindas das mais diversas lunações... a correr com braços e cabelo... como se movessem
água... todas metidas no vento..., RETORNEMOS, ENTÃO, AO TEMPO DA CRIANÇA QUE FOMOS E
QUE CONTINUA A HABITAR DENTRO DE NÓS, retornemos, então, a esse tempo, através do fascínio
do seguinte POEMA:
«Não cortem o cordão que liga o corpo à criança do sonho,
o cordão astral à criança aldebarã, não cortem
o sangue, o ouro. A raiz da floração
coalhada com o laço
o centro das madeiras
negras. A criança do retrato
revelada lenta às luzes de quando
se dorme. Como já pensa, como tem unhas de mármore.
Não talhem a placenta por onde o fôlego
do mundo lhe ascende à cabeça.
A veia que a liga à morte.
Não lhe arranquem o bloco de água abraçada aonde chega
braço a braço. Sufoca.
Mas não desatem o abraço louco.
Move a terra quando se move.
Não limpem o sal na boca. Esse objecto asteróide,
não o removam.
A árvore de alabastro que as ribeiras
frisam, deixem-na rasgar-se:
— Das entranhas, entre duas crianças, a que era viva
e a criança do sopro, suba
tanta opulência. O trabalho confuso:
que seja brilhante a púrpura.
Fieiras de enxofre, ramais de quartzo, flúor agreste nas bolsas
pulmonares. Deixem que se espalhem as redes
da respiração desde o caos materno ao sonho da criança
exacerbada,
única.» (5)
Viseu, 3 de Maio de 2014.
1 Cf. George Steiner: Lessons of the Masters, Cambridge/Massachusetts, Harvard University Press, 2003 (segui a tradução
espanhola: Lecciones de los Maestros, Madrid, Ediciones Siruela, 2004, especialmente, 169 ss, e a tradução portuguesa: As
Lições dos Mestres, Lisboa, Gradiva, 2005, especialmente, 145 ss). Cf. também George Steiner: Lessons of the Masters,
Massachusetts – Cambridge, Harvard University Press, 2003
2 «A libido sciendi, o desejo insaciável de conhecer, a ânsia profunda de compreender, está gravada no que de melhor há nos
homens e nas mulheres. Tal como é a vocação de professor. Não há arte mais privilegiada. Despertar num outro ser humano
poderes, sonhos que estão para além dos que nos são próprios; induzir nos outros o amor por aquilo que nós amamos; transformar
o presente interior de cada um no seu futuro: eis uma tripla aventura que não é comparável a mais nenhuma outra.» [Ou como
vem escrito no original: «Libido sciendi, a lust for knowledge, an ache for understanding is incised in the best of men and
women. As is the calling of the teacher. There is no craft more privileged. To awaken in another human being powers, dreams
beyond one’s own; to induce in others a love for that which one loves; to make of one’s inward present their future: this is a
threefold adventure like no other»]. Cf. Georges Steiner: Lessons of the Masters, op. cit., págs. 183-184.
3 Idem, ibidem, pág. 113.
4 Cf. Vergílio Ferreira: Invocação ao meu corpo, Lisboa, Bertrand, 21978: 295, 298-299.
5 Herberto Helder: Ou o Poema Contínuo [Última Ciência], Lisboa, Assírio & Alvim, 2004: págs. 430-431.