1. A vontade de fixar
certas interpretações, declarações, doutrinas e instituições religiosas como
sendo absolutas, irreformáveis e definitivas - marcadas por tradições, contextos
históricos e culturais muito circunscritos – roça a idolatria. Substitui o
Absoluto transcendente pelo que há de mais relativo e banal, numa linguagem
inacessível. Os textos do Novo Testamento (NT) mostram um constante
empenhamento de Jesus em dessacralizar tempos, lugares e instituições
divinizadas, pois tornavam o acesso a Deus privilégio de alguns e a condenação
de quase todos.
O próprio Jesus, ao andar em más
companhias, ao comer com os classificados como pecadores, não só se
desautorizava como homem de Deus, como se expunha a ser considerado um agente
do diabo[i]:
Ele não expulsa demónios, a não ser por Beelezebu, príncipe dos demónios.
Jesus não era da tribo sacerdotal, não andou em nenhuma escola rabínica,
não era um teólogo profissional e, no entanto, pôs tudo em causa[ii].
Segundo os textos disponíveis, Jesus foi educado na religião da sua
família, mas levou muito tempo encontrar o seu próprio caminho e, quando o
encontrou, os antigos companheiros não o entenderam, a família julgava que ele estava
doido[iii]
e os Doze que escolheu nunca conseguiram compreender o seu desígnio.[iv]
Como não deixou nada escrito, e muito menos um catecismo bem arrumado,
surgiram várias teologias cristãs. Os escritos do NT são irredutíveis a uma só
teologia ou a uma só cristologia. Ler esses textos de estilos, épocas, lugares
e propósitos tão diferentes, pelo olhar formatado de um Catecismo, é uma
cegueira provocada pelo instinto de segurança e necessidade de controlar. São
textos simbólicos, alusivos ao mistério inabarcável de Deus, que só com recurso
à teologia negativa, apofática, é
possível não cair na idolatria teológica. De Deus, tanto mais sabemos quanto
mais nos dermos conta que ele excede todo o conhecimento. Nunca será
prisioneiro dos nossos conceitos.
2. A falta de profissionalismo
teológico está a agitar o Vaticano. Numa
entrevista concedida ao jornal francês La Croix, o próprio Cardeal Müller – Prefeito
da Congregação para Doutrina da Fé (CDF), ex-Santo Ofício, Presidente da
Pontifícia Comissão Ecclesia Dei, Presidente da Pontifícia Comissão Bíblica e
Presidente da Comissão Teológica Internacional - declarou algo de muito
inédito: “A chegada à Cátedra de Pedro de um teólogo como Bento XVI foi,
provavelmente, uma excepção. João XXIII não era um teólogo de ofício. O Papa Francisco
também é mais pastor e a Congregação para a Doutrina da Fé, tem uma missão de estruturação teológica do
Pontificado”. Assim, pois, segundo a declaração deste cardeal, a CDF deve
“estruturar teologicamente” o Pontificado do Papa Francisco. É provável que
este seja um dos motivos pelos quais o Prefeito intervém tão frequentemente em
público, algo sem precedentes na história.
Até agora, ninguém havia teorizado, a partir do
próprio centro da Cúria Romana,
uma exigência de normalização do pontificado, como se depreende das palavras
citadas por Müller. Acredito que aqui se deva constatar, com preocupação, que
esse parece ser, até agora, o mal-entendido mais substancial dos pontificados
de João XXIII e de Francisco,
curiosamente unificados pela característica de terem “pouca estrutura
teológica”[v].
3. Estamos numa situação
delicada. Como vimos, Jesus não tinha nada de teólogo profissional, a sua
profissão era outra. S. Francisco, ainda menos. João XXIII, convocando o
Concílio e neutralizando a vigilância do cardeal Octaviano, do Santo Ofício,
deixou o debate teológico à solta, decisão que nunca mais lhe será perdoada
pelos vigilantes da ortodoxia. O pós-Concílio foi de uma grande efervescência e
criatividade teológicas, tanto na Europa como na América latina, na África e na
Ásia. Com o cardeal Ratzinger procurou-se a normalização pela condenação de
tudo que não reproduzisse a teologia deste Prefeito da CDF.
Chegou o Papa Francisco e soltou, de novo, a palavra na Igreja e manifestou,
numa carta à Faculdade de Teologia de Buenos Aires, a vontade de que os
teólogos profissionais cheirassem a povo,
não ficassem isolados numa redoma. Há
atrevimentos que se pagam caro.
A ambição do poder de dominar – também há poder de servir – é presunçosa e
ridícula. Quem se julga o centro da Igreja, perde-se do Espírito de Cristo e
pensa que só ele tem a chave da salvação.
10.05.2015
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