1. Bergoglio,
desde que foi nomeado bispo de Buenos Aires, empenhou-se em transfigurar, a
partir da sua prática, o imaginário religioso do confessionário. Viu que era
preciso fazer dos lugares de tortura psicológica e moral espaços e tempos de
festa, mediante a manifestação da misericórdia infinita de Deus no
comportamento dos confessores.
O sacramento de reconciliação tem e teve muitos nomes,
até o de “tribunal”. Numa aula de teologia dos Sacramentos, um estudante, ao ouvir
tal designação, exclamou: só podia ser um tribunal fascista! Para o Papa
Francisco, o confessionário tornou-se um dos lugares da prática mais profunda
da sua teologia da libertação e da sua actuação pastoral.
No passado dia 9 de Fevereiro, na celebração da
Eucaristia, rodeado de franciscanos Capuchinhos, disse-lhes directamente: “a
vossa tradição é a do perdão, oferecer o perdão”. Só aquele que se sente
pecador pode ser um grande perdoador no confessionário. Os que se julgam puros e
mestres sabem apenas condenar.
O argentino universalizou depois, de modo coloquial,
a sua exortação[1]: “Falo-vos
como irmão e, em vós, gostaria de falar a todos os confessores, especialmente
neste Ano da Misericórdia: o
confessionário existe para perdoar. Se tu não puderes dar a absolvição –
admito esta hipótese – «não maltrates!» A pessoa procura conforto, perdão, paz
na sua alma; quer encontrar um sacerdote que a abrace, lhe diga e lhe faça
sentir: «Deus ama-te!» Lamento ter de o dizer, mas quantas pessoas se queixam –
creio que a maioria de nós já terá ouvido esta observação: «nunca me vou confessar
porque certa vez me perguntaram, fizeram-me isto e aquilo …» Por favor! “
Finalmente, com humor carinhoso, apresentou o exemplo
de um grande perdoador capuchinho que ele conheceu. Tinha sempre pessoas em fila
de espera para se confessarem. “Uma vez, ao visitá-lo, disse-me: Tu és bispo e
podes esclarecer-me: eu penso que peco porque perdoo demais; ando com este
escrúpulo, mas encontro sempre o modo de perdoar”. Que fazes, perguntou-lhe
Bergoglio, quando te sentes assim? “Olha, vou à capela e, diante do
tabernáculo, digo: desculpa-me, Senhor, perdoa-me, penso que hoje perdoei
demais. Mas, foste tu, Senhor, quem me deu este mau exemplo”.
2. O Sumo Pontífice aproveitou a ocasião
para tornar o seu discurso ainda mais abrangente: “Existem outras linguagens na
vida. Não há apenas a palavra. Temos também os gestos. Se uma pessoa se
aproxima de mim, no confessionário, é porque sente algo que lhe pesa, do qual
deseja libertar-se. Talvez não saiba como dizer, mas o gesto fala. Se esta
pessoa se aproxima, é porque gostaria de mudar, deixar de fazer isto ou aquilo,
de se transformar, ser pessoa de outra maneira. Isto é dito através deste gesto
de aproximação. Não é preciso fazer perguntas do género: mas tu ?... Se alguém
se aproxima é porque na sua alma quer mudar. Mas muitas vezes está condicionada
pela sua psicologia, pela sua vida, pela sua situação… Ad impossibilia nemo tenetur”
(ninguém é obrigado a coisas impossíveis).
Com esta peça de antologia, Francisco desautorizou
séculos de práticas de opressão pseudo-religiosa. No entanto, o que o preocupa
é o presente e o futuro. Encerrou a sua homilia com uma exortação cheia de
afecto responsabilizante: O perdão é uma
carícia de Deus. Na Bíblia, o grande acusador é o diabo ou os que o imitam,
os que têm gosto em acusar, como os escribas e os fariseus.
3. A cena
evangélica deste domingo é muito conhecida e vai na mesma direcção. Levaram a
Jesus, para lhe armarem uma cilada, uma mulher surpreendida em flagrante adultério[2].
O texto não está muito preocupado com questões jurídicas concretas a esse
respeito[3].
O que lhe interessa é mostrar Jesus a desmascarar as pessoas que se julgam santas,
cumpridoras exemplares das leis religiosas e que andam sempre à procura de
poderem acusar alguém, no caso, escribas e fariseus. Hoje, ainda existem muitas
sociedades que usam os mesmos bárbaros processos. Importa encontrar os meios
adequados para varrer da face da terra essa vergonha.
A preocupação de Jesus era, pelo contrário, desmascarar
a hipocrisia desses acusadores, prontos a matá-la à pedrada. Jesus escreve na
areia com um desprezo infinito por aquele zelo bíblico. Desarma os atiradores
com uma simples observação: Quem de entre
vós estiver sem pecado atire a primeira pedra. Remédio eficaz: puseram-se
todos a andar a começar pelos mais velhos.
Nas sociedades ocidentais, esta prática desarmada por
Jesus já não é a mais comum. Em questões de sexo, vale tudo ou quase, embora o voyeuirismo ainda alimente alguns meios
de comunicação social. Mas o gosto perverso de acusar, de encontrar alguém em
falta, dentro e fora das religiões, nos espaços sagrados ou profanos, diz-nos
que os fariseus e os escribas ainda não são uma espécie em
extinção. Quem dera! Mas ainda persiste o gosto de novas formas de apedrejar
“suspeitos” em praça pública.
13. 03. 2016
[1]
Cf. L’Osservatore Romano semanal
(11.02.2016). A tradução, mesmo com arranjos, é sempre má. Os itálicos e as
deslocações das aspas são da minha responsabilidade.
[2] Jo
8, 1-11.
[3]
Cf. Deuteronómio 22, 13-29
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