. A partir
do século XIX, pode-se falar de uma crescente inflacção de documentos
pontifícios sobre tudo e mais alguma coisa, mas, como já foi observado muitas
vezes, ainda não apareceu nenhum sobre o humor. A queixa é muito mais antiga.
Humberto Eco, no seu romance O Nome da
Rosa, refere um debate monacal para responder a uma pergunta transcendente:
Jesus riu ou não? Para o grande historiador, Jacques Le Goff, esse foi um tema
constante da Idade Média.
Se alguém tentasse fazer uma enciclopédia do humor e
do riso provocados pelas figuras da Bíblia, dos evangelhos, da história da
Igreja, dos monges do Deserto, da prática dos sacramentos, da vida dos santos, das
devoções, do céu, do inferno e do purgatório, nos diferentes países e
continentes, teria matéria hilariante para muitas vidas. Pode ser intermitente,
mas na área católica, nunca se esgota.
Depois do sisudo catolicismo da primeira parte do
século XX, foi eleito papa, João XXIII. Passado pouco tempo, perguntaram-lhe:
quantas pessoas encontrou a trabalhar no Vaticano? – Mais ou menos metade.
Quando é que decidiu convocar o Concílio? – Quando estava a fazer a barba. Os
seus Fioretti correram o mundo.
Ao angustiado Paulo VI, sucedeu João Paulo I, o abreviado
Papa do sorriso. Esquecendo-se de que estava no Vaticano, continuou com o seu costume
de chamar a Deus Pai e Mãe e de manifestar, com bonomia, a vontade de varrer a
cúria romana. Não teve sorte.
Veio um longo inverno e depois precipitou-se a
primavera com um argentino, chamado Mário Bergoglio que, sendo jesuíta, se fez
franciscano radical, Francisco. Parece habitado por uma paixão estranha que mistura
indignação e misericórdia, bom humor e gestos proféticos, reforma da cúria
vaticana e deslocação às periferias mais abandonadas. Desde a primeira
Exortação Apostólica até à mais recente, tudo é feito por causa da alegria[1].
2. A
Exortação A Alegria do Amor, sobre a
família - uma análise, uma autocrítica e
uma proposta- não é de alguém que se julga infalível a definir doutrina ou a
ditar leis irreformáveis. Procura que a Igreja, na sua intervenção pastoral,
abandone o inveterado mau gosto de lamentar e condenar. No capítulo II, ao
apresentar a realidade actual e os desafios que ela representa para a vida
familiar, destaca, por um lado, a tentação de querer resolver os problemas
actuais, reproduzindo receitas gastas. Nem a sociedade em que vivemos, nem
aquela para onde caminhamos, permitem a
sobrevivência indiscriminada de formas e modelos do passado[2].
Por outro lado, também não se pode cair na ideia de que tudo é descartável, cada um usa e deita fora, gasta e
rompe, aproveita e espreme enquanto serve e, depois … adeus.
Entretanto, o Papa não se limita a mostrar que esses
são becos sem saída. Adverte, no
entanto, que devemos ser humildes e realistas para reconhecer que, às vezes, a
nossa maneira de apresentar as convicções cristãs e a forma como tratamos as
pessoas ajudaram a provocar aquilo de que hoje nos lamentamos, pelo que nos convém uma salutar reacção de
autocrítica. Além disso, muitas
vezes apresentamos de tal maneira o matrimónio que o seu fim unitivo, o convite
a crescer no amor e o ideal de ajuda mútua ficaram ofuscados por uma ênfase,
quase exclusiva, no dever da procriação.
Bergoglio lembra que não fizemos o acompanhamento dos
jovens casais nos primeiros anos, com propostas adaptadas aos seus horários, às
suas linguagens, às suas preocupações mais concretas. Outras vezes,
apresentamos um ideal teológico do matrimónio demasiado abstrato, construído
quase artificialmente, distante da situação concreta e das possibilidades
efectivas das famílias tais como são.
Esta excessiva idealização, sobretudo quando não
despertámos a confiança na graça, levou a que o matrimónio deixasse de ser desejável
e atraente; muito pelo contrário[3].
3. Na
acção pastoral, custa-nos deixar espaço à consciência dos fiéis, que são capazes
de realizar o seu próprio discernimento, mesmo em situações onde se rompem
todos os esquemas. Somos chamados a
formar as consciências, não a substituí-las.
Muitas vezes agimos na defensiva e gastamos as energias
pastorais multiplicando os ataques ao mundo decadente, com pouca capacidade de
propor e indicar caminhos de felicidade. Muitos não sentem a mensagem da Igreja
sobre o matrimónio e a família, como um reflexo claro da pregação e das
atitudes de Jesus, o qual, ao mesmo tempo que propunha um ideal exigente, não
perdia jamais a proximidade compassiva às pessoas frágeis, como a samaritana ou
a mulher adúltera[4].
Hoje, destacamos apenas a mudança radical de atitude
e de método da pastoral da Igreja sobre a família, realidade incontornável na
sua diversidade, em todos os povos e culturas. Triste seria uma pastoral das falências[5]
sem apontar os caminhos para a alegria do amor sem a qual não se pode falar de
família[6].
17.04.2016
[1] Evangelii
Gaudium (A alegria do Evangelho),
24. 11.2013; Laudato Sí (Louvado sejas), 24. 05. 2015; Amoris
Laetitia (A alegria do Amor),
19.03.2016
[2] Amoris Laetitia,
32-39
[3] Amoris Laetitia,
36
[4] Amoris Laetitia,
38
[5] Amoris
Laetitia,308
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