Estimados/as amigos,
Desejo começar por agradecer o convite (do António Joaquim
Pinheiro) para vos dirigir a palavra neste encontro dos Antigos Alunos, este
ano dedicado a celebrar o 50º aniversário dos que aqui entraram no ano de 1966.
Trata-se, por isso, de um encontro (como habitualmente estes
encontros são) cheio de memória e de evocações históricas. Talvez, e estando eu
a preparar a história dos missionários combonianos em Portugal, que já soma um
período de 70 anos, de 1947 a 2017, faça sentido que eu me volte para esta
história no momento em que vos falo. E, se tenho que procurar uma expressão que
resuma o sentido destas breves palavras, vos proponha que nos perguntemos,
brevemente, que lições podemos colher dos primeiros anos da história comboniana
em Portugal.
A nossa sabedoria popular diz-nos que a história é mestra da
vida. Não tanto porque se repita, pois ela nunca se repete. Mas porque nos
ensina as atitudes fundamentais do viver ... ensina-nos uma arte de viver.
Para ela nos voltamos, cada dia, nesta tarefa nunca
plenamente cumprida de aprendermos a arte de viver, conjugando os êxitos do
passado com os desafios do futuro, sem ter medo do presente, o único tempo que
nos é dado para viver, seja onde for, com a idade que for, na situação de vida
que for.
E sem ter medo do incómodo de termos que decidir o percurso
que as nossas vidas tomam, nas variadas situações do nosso presente, situações que
tecem uma história que vem muito de trás, antes de nós, e que continuará num
futuro, para além de nós.
Que lições podemos, então, colher da história que começa
aqui, no ano de 1947, e que aqui nos traz neste ano?
A primeira, diria eu, é a lição sobre a importância da fé e
do sonho. A obra comboniana em Portugal é um milagre de fé, da capacidade de
sonhar um futuro. Da fé em Deus e da fé nos talentos e nas capacidades próprias
e dos outros, a começar pelas capacidades dos primeiros seminaristas que
entraram nesta casa, dos seus familiares, dos benfeitores e amigos da obra
comboniana.
O primeiro grupo dos combonianos que aqui chegam, o Pe João
Cotta, o primeiro, e os outros que se lhe seguem - os padres Ézio Imoli, Ângelo
LaSalandra, Rino Carlesi, Domingos Ena, e os irmãos Elísio Locatelli e António
Schiavon – são homens de fé, capazes de ver o invisível, de ter os olhos no que
está para vir, para lá do que é. No diário escreveram: “Deixamos a Itália com a
bênção de Deus e dos nossos superiores e partimos para Portugal, com o fim de
iniciar uma nova presença missionária comboniana. Estamos certos que tudo correrá
bem, porque estamos sobre a protecção do nosso querido São José.” Bem precisam
da protecção divina, pois chegam a Viseu sem terem casa onde ficar nem meios
para a construir.
O nosso poeta, Fernando Pessoa, diz que “o homem sonha, Deus
quer e a obra nasce.” O nosso sonho, em sintonia com o sonho de Deus, é
importante para que a nossa obra nasça e a nossa vida seja fecunda. No tempo
que agora vivemos, deixamos morrer a capacidade de sonhar, de ter desejos
fortes para a nossa vida, de acreditar naqueles que dizemos amar. Um olhar
retrospectivo sobre a história comboniana, aqui começada, convida-nos a
despertar, dentro de nós, a capacidade de sonhar em grande, de acreditar nos
outros, de acreditar no Outro com letra maiúscula, em Deus.
A segunda lição é a da pobreza e vem-nos da limitação dos
recursos humanos e materiais que acompanha a obra comboniana, sobretudo nos
primeiros anos. Poucas pessoas para uma obra grande, gigantesca mesmo, como é a
acção educativa naqueles tempos. Poucos meios materiais para a construção deste
seminário, que demora bem cinco anos a concluir-se, desde 1948, ano em que é
lançada a primeira pedra, e de 1949, ano em que entra o primeiro grupo de
seminaristas para a “casa velha” ainda inacabada, até ao ano de 1955, ano em
que é completada a capela e inaugurado oficialmente este seminário.
Era “uma luta corpo a corpo com a pobreza e falta de meios,”
como alguém então descreve a situação, e os educadores desta casa muitas vezes
recordam a frase consoladora de Daniel Comboni, que lhes assegura que “as obras
de Deus nascem e crescem aos pés da cruz,” isto é, no meio das dificuldades e
das limitações. Espírito de sacrifício e capacidade de adaptação não faltam, em
missionários e alunos, sobretudo durante os primeiros anos das obras: “Apertados
na capela, apinhados no dormitório, acotovelados no refeitório...,” lamentam-se
os missionários no diário.
Esta lição da pobreza é, talvez, aquela que muitos de nós,
os alunos das primeiras décadas, entendemos melhor, até porque somos alunos também
desta mestra de vida, que é a pobreza. Nascemos todos nos anos a seguir ao fim
da segunda grande guerra, uma década em que a sociedade portuguesa jazia
prostrada na pobreza social, agudizada pela austeridade, cultural e política,
do regime do Estado Novo. As nossas famílias têm em comum a pobreza e as
dificuldades desses anos e dessa sociedade. E todos nós passámos pelas
estreitezas do tempo que nos deu á luz e conhecemos a luta, dos nossos pais e
da nossa geração, para sonharmos e construirmos um futuro diferente. Aqui
descortinámos um horizonte novo, o horizonte de Deus, e a beleza da vida
entendida como dom e ideal, a que nos entregámos, com uma generosidade
purificada pela pobreza e pela falta de meios que nos viram nascer e crescer.
Hoje vivemos numa sociedade da abundância, onde tudo é
tomado por descontado e exigido como direito. Construímos muito e demos muitas
coisas aos nossos filhos. Mas talvez não conseguimos comunicar-lhes a riqueza
maior da vida, que é ensinada pela pobreza: a capacidade de sacrifício e de
resistência, a generosidade da entrega a um grande ideal. Precisamos, talvez, de
voltar à escola da vida austera, da luta pelos valores que tornam grandes as
pessoas e as obras.
A terceira lição vejo-a ligada ao que acabo de dizer: é a lição
da gratidão, a Deus e aos outros, pelo que recebemos no caminho da vida. Os
primeiros combonianos que habitam esta casa são pessoas sem vergonha para
estender a mão, por eles e pelos alunos que educam. Mas antes de conjugar o
verbo pedir, em muitas formas e tempos, eles declinam o verbo dar: são pessoas
de grande generosidade de espírito e de trato.
Mostram agradecimento e apreço aos seminaristas, aos seus
pais e mães que confiam os filhos ao seminário, aos benfeitores e colaboradoras
que sustentam o seminário e a educação nele ministrada. Os educadores cultivam
este sentimento de gratidão nos alunos: preparam-nos para as cerimónias na
capela (os págens, os pueri cantores, os acólitos) e para os serões culturais (as academias) com que
abrilhantam as festas dos pais e dos benfeitores. Instilam neles entusiasmo,
sentido de beleza e carinho, na intenção de darem, aos pais e benfeitores, algo
do que recebem na vida do seminário.
A beleza é a cor da gratidão, pois damos aos outros o que
temos de belo. E os pais dos seminaristas, benfeitores e vizinhos desta casa ficam
cativados por ela, como regista, inúmeras vezes, o diário do seminário, em
referência às festas e encontros aqui realizados nas décadas de 50 e 60. “Apesar de tudo, não nos faltam as academias,
alegres e gostosas, que na sua simplicidade suscitam muito interesse, tanto
entre os seminaristas como entre os amigos, vizinhos e benfeitores, que nos
honram com a sua presença,” regista o diário, que acrescenta, em relação à
academia da Imaculada de 1951: “Foi uma bela novidade o Serão Cultural da
Imaculada, que resultou muito bem. Os cânticos e as poesias agradaram muito.
Estavam presentes o Senhor Presidente da Câmara de Viseu, com a esposa, que
tiveram ocasião de conhecer pessoalmente o ambiente do nosso instituto. Não
faltaram a Senhora Viscondessa (de Treixedo) e um bom número de amigos e
benfeitores.”
Gostava de concluir esta breve incursão pela nossa história,
erigida a mestra de vida por estes breves momentos, pedindo, para quantos aqui
estamos, para todos nós alunos desta casa, o dom de abraçarmos a nossa história
como ela é. Se a revisitamos e nos familiarizamos com ela, percebemos que ela é
caminho que traz novidade e mudança, que nos recria em cada momento presente
que vivemos.
A história desta casa, e da obra comboniana em Portugal, é
um percurso de mudança, à medida que os anos e as décadas passam, uma mudança
sempre a perseguir um sonho de excelência, um ideal. Neste processo de mudança,
os muros mestres desta casa ficaram de pé ... mas o resto mudou: as salas de
aula, os salões de estudo, as camaratas desapareceram, os corredores perderam
altura. De seminário, viveiro de juventude que se abre à vida, a casa torna-se parábola
da vida cristã e missionária: porto de mar, baía de acolhida para as caravelas
de regresso, espaço simples mas digno para acolher aqueles combonianos que, por
razões de idade ou saúde, são forçados, como todos seremos um dia, a recolher
os ramos da nossa barca e a deixar que, a empurrar a barca da nossa vida sejam,
não já as forças que nos faltam, mas o vento do Espírito que nos conduz para a
meta da vida.
No caminho destes 70 anos, nesta casa, porém, há um lugar
que permanece intacto, como símbolo e ícone da dimensão que alicerça as nossas
vidas e sustenta as mudanças da história: esse lugar é a Capela, lugar do êxtase
e da beleza, espaço recolhido que evoca a dimensão espiritual, que oferece
sentido às nossas vidas, ao longo das suas histórias. Sim, parafraseando Fiódor Dostoiévski, diremos
que “é a beleza que salva o mundo” e as nossas vidas, a beleza de Deus e a nossa,
suas criaturas; uma beleza que resgata as nossas histórias do caos que
continuamente as ameaça, e nos conduz à realização plena dos sonhos e dos
caminhos por onde os imprevistos da história, continuamente, nos unem e nos
separam, num desígnio de Amor e de Beleza que só a meta nos desvelará.
Pe Manuel Augusto Lopes Ferreira
Missionário Comboniano
Viseu, 7 de Maio de 2016
A Pinheiro
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