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Pode a fé ser um dos pontos de encontro entre essas duas tradições?
Honestamente, espero que não. Adorava poder não escrever mais sobre religião, não sou uma pessoa religiosa e acho a religião um pouco chata. Acaba por aparecer porque cá está ela, de novo, sentada no meio da sala, impondo-se. Este fenómeno do regresso da religião como um tema público é muito estranho. Se fores da minha idade, e te lembrares dos anos 60, ninguém falava sobre religião. Eu tinha 21 anos em 1968. Discutíamos sobre todos os temas, direitos civis, Vietname, mas ninguém falava de religião. A ideia de que a religião faria este regresso era inimaginável.
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Estamos a caminhar para um mundo pós-religião?
Acho que não estamos. Essa é provavelmente a parte mais fantasiosa do livro [risos]. As antigas religiões politeístas, como a grega e a romana, têm algo comum: chega um momento em que Deus se retira da vida humana. Nos mitos nórdicos, a história é diferente, mas tem o mesmo fim. Há uma batalha e no fim os deuses derrotam os inimigos, mas também são destruídos por eles. Ambas as tradições têm a ideia de que a maturidade da humanidade requer deixar para trás a dependência nos deuses. Isto faz-me pensar que a vida humana é exatamente assim. Começamos como crianças, com figuras semelhantes a deuses, os nossos pais, guias, conselheiros, punidores, e chegamos a um ponto em que não precisamos mais disso. Saímos de casa dos pais e construímos as nossas vidas. Esse seria o meu desejo para a humanidade. É tempo de o fazer: a humanidade tem de sair de casa dos pais.
Porque é tão difícil?
Porque somos fodidos. Há algo errado connosco, ainda dependemos deles.
Esse caminho está mais avançado em algumas religiões do que noutras?
O cristianismo foi responsável por bastante, na sua altura. Neste momento, o perigo vem do Islão. Não há dúvidas. Não de todo o Islão, mas de uma certa mutação. Os sauditas propagaram o wahhabismo. Isso está a oprimir pessoas no mundo islâmico, primeiro, e no resto, depois. Não é algo intrinsecamente único ao Islão. Mas neste momento, sim, temos de aceitar que vem sobretudo de lá. São tempos muito perigosos. Não há forma de o negar.
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Porque regressa ao tema?
É a grande questão do mundo em que vivemos. E não é garantido, de forma alguma, que a racionalidade irá ganhar. Alguém me disse que o que está a acontecer na América é um conflito entre o superego e o id. De um lado, uma pessoa séria, com experiência; do outro, este louco, o rapaz mais traquinas da escola, a partir coisas, a mentir, a gritar loucamente, a abusar das pessoas. E há uma hipótese de que ele ganhe. Isso mostra que um país inteiro pode sucumbir à irracionalidade.
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Incomoda-o a falta de hierarquia nas redes sociais?
Incomoda-me a forma como a internet atacou a ideia de verdade. Uma mentira e um facto têm o mesmo peso. E uma mentira, devido ao efeito de repetições, pode adquirir maior força do que a verdade. Também me preocupa a anonimidade. As pessoas são muito mais descorteses, são rudes, agressivas, hostis, sórdidas. E não seriam se estivessem no mesmo quarto com a pessoa com quem falam. Dá-nos permissão para ser muito menos civilizados.
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Seria muito diferente se tivesse ficado na Índia?
Sempre me vi como um beneficiário das consequências da migração. Neste momento, as pessoas têm muitas suspeitas sobre migração, mas, na minha vida, tem-me dado o mundo. Algumas vezes, tenho inveja do escritor que fica num mesmo local toda a sua vida e conhece-o muito, muito profundamente. Mas também já não vivemos num tempo em que esses microcosmos existam. O mundo entra-te estejas onde estiveres. Quando Flaubert escreveu Madame Bovary, podia estar numa pequena cidade da província, não fazer nenhuma referência ao mundo exterior, e contar a história destas pessoas.
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