1. Tinha
recomendado a um amigo, enfastiado com as produções açucaradas de
espiritualidade pós-moderna e com as passerelles de diálogo inter-religioso, o
último livro de Anselmo Borges, o questionador das manifestações da
religiosidade, da religião e das religiões[1].
É um agrupamento de textos essenciais acerca do essencial.
Avisei o potencial leitor de que não são as razões que
encontramos para crer em Deus e as que temos para não crer que nos fazem
crentes ou ateus. Virou-se para mim apreensivo: mas, então, em que ficamos?
Não podemos ficar. Os que repousam nas suas
convicções continuam o mesmo sono dogmático. Os despertos são peregrinos. É
normal que, na presente condição humana, precisem de “estações de serviço” para
continuar a viagem. Mas quando se diz que o nosso coração não conhecerá
quietude a não ser quando repousar no infinito, imagina-se, de forma ilusória,
o infinito como termo de uma caminhada.
É no infinito da divindade que vivemos, nos movemos e
existimos, como disse S. Paulo, em Atenas, acolhendo, na sua teologia
criacionista, as expressões de poetas e filósofos gentios[2].
Não imaginemos a divindade e a sua eternidade como uma
múmia. Quando desejamos aos que morrem “o eterno descanso”, não os entregamos
ao tédio eterno. Prefiro supor que entram na infinita e incansável criatividade
de Deus.
Para não cair na idolatria, na manipulação do nome de
Deus, deveríamos ter em conta a advertência poética de S. Gregório de Nazianzo:
Ó tu que estás para lá de tudo, será
possível cantar-te de outro modo? Que palavra te poderá celebrar? A ti, que
nenhum termo te pode nomear. Que espírito te poderá perscrutar? A ti, que
nenhuma inteligência te pode apreender? Tu és o único inominável. Porque tu
criaste tudo o que é nomeado. Tu és o único que se não pode conhecer. Porque tu
criaste tudo o que o pensamento abarca. Todas as coisas falantes e não falantes
te louvam. Tudo o que pensamos e não pensamos é em tua honra. Os desejos
comuns, as dores comuns de todos são acerca de ti. Todas as preces a ti se
dirigem. Tudo o que existe e tem consciência de ti entoa um hino silencioso. Em
ti tudo permanece, tudo para ti ao mesmo tempo converge. Tu és o fim de tudo,
tu és o único, és tudo e ninguém.
Não sendo um
só, não sendo tudo, ó todos os nomes, como te chamarei a ti, o único que não
tem nome? Que espírito celeste poderá elevar-se para cima dos véus que estão
para lá das nuvens? Sê-nos propício, ó tu que estás para lá de tudo. Quem terá
o direito de cantar-te de outro modo?
2. Jesus era um homem profundamente religioso. A sua relação a Deus fazia parte
da sua identidade. Porque terá sido, tão agreste com a religião em que nasceu,
foi criado e viveu? Segundo as
quatro versões do Evangelho, em vez
de uma metafísica da religião, praticou uma crítica permanente dos lugares, dos
tempos e das pessoas mais zelosas da ortodoxia farisaica. Até parece que tinha
um gosto perverso em violar o dia
mais sagrado do judaísmo, o Sábado. Um chefe da sinagoga, bastante irritado,
observou-lhe: tens seis dias da semana para fazeres as curas que quiseres, mas
ao Sábado, não! Resposta de Jesus: que religião é esta que, ao Sábado, os
animais têm mais sorte que os seres humanos? Qual seria a razão que levou Jesus
a esta falta de respeito pelo dia mais sagrado?
O dia especialmente consagrado a Deus tem de
coincidir com o acontecimento da libertação, da alegria, da felicidade do ser
humano. Deus não pode ser louvado à custa da humanidade. O Sábado é para o ser
humano, não é o ser humano para o sábado. Deus quer misericórdia. Não se
alimenta de sacrifícios humanos.
A outra crítica, não menos severa, era de ordem ética:
uma religião que justifica a descriminação entre homens e mulheres, entre ricos
e pobres, entre sãos e doentes é de uma árvore muito ruim. Não vem de uma divindade
aceitável.
3. A
dimensão ecuménica da intervenção do Papa Francisco é indiscutível. Não descura
os simpósios, as mesas redondas, as celebrações para estimular o diálogo
inter-religioso. Mas se estas iniciativas não levarem a um processo de crítica
e de reforma de cada uma das religiões, não servem para nada. Nenhuma religião
pode desencadear esse processo noutras instituições. O Papa Francisco, desde o
começo do seu pontificado, nunca mais deixou os cardeais, os bispos, os padres
e a formação de seminaristas em paz. Não tem medo que as outras religiões e os
ateus fiquem com má impressão da Igreja Católica. Ainda agora, em Setembro, não
deixou que os bispos recém-nomeados se julgassem entronizados nas Igrejas
locais, como deuses e senhores das comunidades a quem devem servir. Ele não
pretende que a Igreja Católica fique bem na fotografia mundana, nas imagens do
sucesso e do poder. O que disse acerca da formação dos seminaristas, devia dar que
pensar: quando alguns seminaristas se refugiam na
rigidez, por baixo, sempre há algo de feio.
O Papa é muito crítico em relação aos eclesiásticos.
Não quer amos. Faz tudo para que sejam os primeiros ao serviço dos mais
oprimidos, sobretudo quando são oprimidos em nome da religião.
02.10.2016
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