1. Para os meios
de comunicação, a moda mais recente é a preocupação com as divisões na Igreja
católica que me parecem coisa de pouca monta. Vencer a separação entre as igrejas
do oriente e do ocidente e entre católicos e protestantes tem sido a beleza do
horizonte do movimento ecuménico, nas suas diversas expressões. Quem conhecer o
movimento cristão sabe que, desde o começo, esteve sempre exposto a divisões.
Os apelos a que todos sejam um,
significam a dificuldade em conseguir uma unidade plural. O cristianismo
continua a ser uma Sinfonia Adiada[1].
O que custa não é a
comunhão, não é a diversidade, nem a
liberdade. O que custa é manter estas três atitudes em simultâneo. Quem insiste
apenas na comunhão, tem problemas com a diversidade e com a liberdade. Quem,
pelo contrário, exalta a diversidade e a liberdade é porque, em nome da
comunhão, sente a ameaça da unicidade.
O mito da Torre de Babel[2] não é de fácil
interpretação. Supõe-se que Deus se sentiu ameaçado por uma Torre que chegava
aos céus, obra da unicidade linguística: “ em toda a Terra, havia somente uma
língua e empregavam-se as mesmas palavras (…) Vamos, pois descer e confundir de
tal modo a linguagem deles que não consigam compreender-se uns aos outros. E o
Senhor dispersou-os dali por toda a Terra”.
É bom ler o texto na íntegra. Vem a seguir à lista dos
povos, as famílias de Noé, segundo as suas genealogias e as respectivas nações.
Delas, segundo o mito, descendem os povos que se espalharam, após o dilúvio
sobre a Terra.
Uma só língua ajudava muito. É preciso uma maldade muito
grande para destruir algo que facilitaria tanto a vida a todos. É com esta
astúcia que está construído o texto. Ainda hoje, existe essa nostalgia,
assustadora. A linguagem é a marca primordial do ser humano. A unicidade
linguística só seria possível por clonagem.
Quem imagina os seres humanos e os povos cópias uns dos
outros, isto é, quem conhece um, viu-os a todos, tem de sentir a humanidade
como um campo de concentração do qual não pode sair. É o mesmo do mesmo, sempre
o mesmo, o sufoco universal. A originalidade irrepetível de cada um, seria
substituída pela infinita repetição.
2. Costuma-se
contrapor a referida confusão das línguas de Babel com a narrativa do Pentecostes,
um dom linguístico muito especial. Os Actos dos Apóstolos[3] contam tudo: de repente,
ressoou, vindo do céu, um som comparável ao de uma forte rajada de vento, que
encheu toda a casa onde os discípulos se encontravam. Viram aparecer umas
línguas, à maneira de fogo, que se iam dividindo e pousou uma sobre cada um
deles. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar outras
línguas, conforme o Espírito lhes inspirava que se exprimissem. Residiam em
Jerusalém judeus piedosos vindos de todas as nações que há debaixo do céu. Ao
ouvir aquele ruído, a multidão reuniu-se e ficou estupefacta, pois cada um os
ouvia falar na sua própria língua. Atónitos e maravilhados diziam: mas esses
que estão a falar não são todos galileus? Que se passa, para que cada um de nós
os oiça falar na nossa língua materna? Partos, medos, elamitas, habitantes da
Mesopotâmia, da Judeia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frígia e da
Panfília, do Egipto e das regiões da Líbia cirenaica, colonos de Roma, judeus e
prosélitos, cretenses e árabes ouvimo-los anunciar nas nossas línguas as
maravilhas de Deus! (…)
Estavam todos assombrados e, sem saber o que pensar, diziam
uns aos outros: que significa isto? Outros, por sua vez, diziam, troçando:
estão cheios de vinho doce.
Esta passagem dos Actos não desmerece, em colorido, da
narrativa da Torre de Babel. Aqui há uma convocatória para a dispersão. Uma
convocatória de todos os povos e línguas, a máxima diversidade na máxima
unidade. O Espírito de Cristo é para todos, respeitando e promovendo a
originalidade de cada um.
Era precisa a solenidade insólita desta narrativa para
significar que o movimento cristão era um começo completamente novo. Não é o
sufoco do mesmo, a repetição da repetição. É o apelo do próprio Deus para a
criatividade. A Igreja, fora da criatividade, morre. Os Actos dos Apóstolos
ficavam bem como uma banda desenhada das aventuras do Espírito Santo. As
circunstâncias mais imprevistas não eram um empecilho, mas uma provocação!
3. No âmbito dos
carismas, S. Paulo viu-se muito atrapalhado com os que falavam muito para não
dizerem nada. Tinham o carisma de falarem línguas que ninguém percebia[4]. Quis resolver a questão
de uma penada no célebre cântico do amor: ainda que eu fale todas as línguas
dos homens e dos anjos, se não tiver amor, sou como um bronze que soa ou um
címbalo que retine.
Nas normas para o uso dos carismas, aconselha a procurar o
amor e a aspirar aos dons do Espírito, mas sobretudo ao da profecia. Pois,
aquele que fala em línguas, não fala aos homens, mas a Deus: ninguém, de facto,
o entende, pois o Espírito diz coisas misteriosas (…) Quem profetisa está acima daquele que fala em línguas, a não ser que
também as interprete, para que a assembleia possa tirar proveito. Imaginai,
agora, irmãos, que eu ia ter convosco e vos falava em línguas: de que utilidade
vos seria, se nada vos comunicasse nem por revelação, nem por ciência, nem por
profecia, nem por ensinamento? (…) Se a vossa língua não proferir um discurso
inteligível, como se há-de saber o que dizeis? Sereis como quem fala ao vento. Há no mundo não sei quantas
espécies de línguas e todas têm o seu significado. Ora, se eu não conheço o
significado de uma língua, serei como um bárbaro para aquele que fala e, aquele
que fala, também o será para mim.
Paulo, mesmo na oração, não suporta não entender. Se tu
elevas um cântico de louvor só com o espírito, como pode o que participa como
simples ouvinte responder Amén à tua
acção de graças, visto que não sabe o que dizes? A tua acção de graças poderá
ser, certamente, muito bela, mas o outro não tira nenhum proveito.
O obscurantismo não era o carisma de S. Paulo.
As missas em latim, e de costas para o povo, que os
ignorantes publicitam, se não tiverem quem as interprete, não servem para nada.
De costas para o povo não há interpretação que as salve.
04.02.2018
[1]
Christian Duquoc, Paulinas, S. Paulo, 2008; L. Michael White, De Jesús al cristianismo, Verbo Divino,
Estela, 2007
[2]
Gn 11, 1-9
[3]
Act 2, 1-13
[4]
1Co 12-14; importa ler estes dois capítulos na íntegra
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