As
reacções à nota do Patriarca de Lisboa revelaram a incapacidade de ler e
compreender o que lá estava escrito e, sobretudo, o desejo de submeter a
Igreja à ditadura igualitária dos tempos que correm
Vou
começar este texto exactamente como comecei um que escrevi há já oito
anos. Mas não faz mal repetir-me. Por isso esclareço que não sou crente.
Educado na Fé Católica, passei pelo ateísmo militante e hoje defino-me
como agnóstico. Talvez não devesse, por isso, pôr-me a discutir a
doutrina da Igreja Católica e aquilo que ela recomenda não apenas aos
crentes, mais neste caso concreto aos crentes praticantes, pois é isso
que está em causa na polémica sobre a Nota Apostólica do
Cardeal Patriarca. Mas tem de ser. E tem de ser porque temo que, um dia
destes, para se ser católico e procurar viver de acordo com o Catecismoda
Igreja vai ser necessário esconder, ou pelo menos disfarçar, a sua Fé —
e não preciso de partilhar essa Fé para defender a sua prática em
absoluta e total liberdade.
Mas
vamos por pontos, de forma naturalmente sintética, pois alguns
mereceriam maior aprofundamento. Mas são três notas que não posso deixar
de sublinhar.
1. Surpreende-me
que boa parte desta discussão, mesmo a que teve como protagonista gente
supostamente bem informada (e não apenas a barulheira típica das
redes), tenha decorrido sem que a maior parte dos que nela participaram mostrassem ter tido o cuidado de ler atentamente a Nota Pastoral.
Ora tratando-se de um tema delicado que divide a própria Igreja
Católica, onde se percebe que existem diferentes sensibilidades, a
fórmula adoptada pela Nota Pastoral é, ao contrário do que se quis fazer
crer, especialmente defensiva. D. Manuel Clemente, mais do que elaborar
sobre o sentido do capítulo VIII da exortação apostólica ‘Amoris Laetitia’ –
relativo à forma como lidar com os católicos recasados –, preferiu
citar longamente e subscrever a abordagem dos bispos de Buenos Aires.
Fê-lo de forma tão explicita que procurar eventuais desalinhamentos,
como também já vi fazer, é apenas tentar evitar a constatação do
inevitável: o bispo de Lisboa foi apressadamente criticado pelos mais
zelosos fãs do Papa Francisco (um deles falou mesmo em “delírio mental”) por adoptar uma orientação que esse mesmo Papa Francisco considerou resultar da única interpretação possível da ‘Amoris Laetitia’. Paradoxal mas verdadeiro.
(Já
agora note-se também que as críticas à Nota Pastoral dos sectores mais
conservadores da Igreja, os que não admitem qualquer mudança, que também
existiram de acordo com o testemunho de dois padres — aqui e aqui –, essas foram totalmente invisíveis da comunicação social.)
Se
quisermos ser honestos, e discutir seriamente estes temas, então
teremos de reconhecer que a novidade relativamente ao caminho aberto
pelo Papa Francisco com a ‘Amoris Laetitia’ não está nas recomendações
de D. Manuel Clemente, que seguem muito fielmente o guião delineado por
Roma. A novidade, em Portugal, estará mais na carta Construir a Casa sobre a Rocha,
do arcebispo de Braga, D. Jorge Ortiga, que essa sim é mais ousada e
muito mais detalhada – mas que por isso mesmo suscitou reações de sinal
contrário, até nos Estados Unidos. Ou seja, existe uma pluralidade no interior da Igreja portuguesa, ao mais alto nível, o que é sem dúvida interessante mas pouco considerado.
2. Apesar
de serem muitos os sinais de desorientação na forma como se abordam os
temas da sexualidade nos dias de hoje – de que são sinais evidentes
alguns excessos e desnortes da campanha #MeToo –, a verdade é que é
sempre muito tentador atacar o que é sempre descrito como
“conservadorismo” da Igreja Católica, essa instituição “retrógrada” que
resiste a mudar ao sabor da vontade dos colunistas, das indignações das
redes sociais ou do activismo de alguns grupos dissidentes. E nada
melhor do que uma recomendação de continência sexual feita por um
cardeal para incendiar os espíritos. “Porque insiste a Igreja em meter-se na cama das pessoas?”, pergunta-se de forma indignada.
Na verdade, como já se recordou, não é apenas o catolicismo que se ocupa da moral sexual – todas as grandes religiões o fazem.
Valeria a pena discutir por que o fazem, mas esta não é a ocasião, até
porque verdadeiramente o que está no documento de D. Manuel Clemente
(como no dos bispos de Buenos Aires ou na ‘Amoris Laetitia’) não é, como
se pretende fazer crer, uma condenação do sexo. Mais: se quisermos
compreender melhor a posição actual da Igreja sobre o amor erótico o
documento a ler não é esta exortação apostólica do Papa Francisco, mas a
encíclica ‘Deus Caritas Est’, a primeira do papado de Bento XVI.
O
que estes documentos que agora discutimos abordam é outra coisa – é a
conciliação entre diferentes sacramentos. Imagino que quem nunca teve
educação religiosa católica não compreenda sequer o que é um sacramento,
mas o dilema que a ‘Amoris Laetitia’ procura enquadrar é o dos
católicos que contraíram o sacramento do matrimónio, um sacramento
considerado indissolúvel (princípio que nem o Papa Francisco questiona),
que depois terminaram o seu casamento e voltaram a casar pela via
civil, pelo que estão em falta (ou em “pecado”, essa palavra
impronunciável nos dias que correm), e pretendem ter acesso a outros
sacramentos, como o da comunhão.
É
a contradição entre os deveres impostos para o acesso a certos
sacramentos e a violação assumida e vivida de um outro sacramento que
cria uma espécie de quadratura do círculo de que seria impossível sair
com uma aplicação estrita da doutrina. A evolução da ‘Amoris Laetitia’ é
que remete a resolução dessa contradição para quem acompanha
directamente os casais, ou seja para o nível de maior proximidade. O que
a nota de D. Manuel Clemente, como a do D. Jorge Ortiga, como a dos
bispos de Buenos Aires, procura fazer é dar orientações a quem lida
directamente com esses casais, e mesmo havendo aproximações com nuances,
a verdade é que nenhuma delas é um livro de instruções fechado. A
referência à “continência” é apenas um de vários caminhos indicados,
neste caso concreto tanto nas dioceses de Lisboa como da capital
argentina. A latitude de intervenção dada a quem está no terreno é muito
ampla como verificarão os que lerem com cuidado todos os documentos – e
é de resto essa latitude que suscita a critica dos sectores mais
tradicionalistas.
3. Claro
que tudo isto parece estranho num tempo e em sociedades onde as
referências morais deixaram de ser importantes. Numa época relativista,
onde se valoriza sobretudo o prazer imediato e se exige tudo já – nisto a
nossa contemporaneidade infantilizou-se, só parece capaz de alcançar o
imediato como uma criança mimada –, tudo o que saia da norma e implique
alguma forma de sacrifício é logo visto como uma manifestação de
obscurantismo, quando não de opressão. Por isso pouco interessa aos
indignados com a Nota Pastoral que ela apenas se dirija apenas aos
católicos e, entre os católicos, apenas aos recasados que querem
continuar a participar plenamente na sua Igreja. De nada vale recordar
que em Portugal ninguém é obrigado a ser católico, que o casamento
religioso não impede o divórcio civil, que muito menos se obriga alguém a
ir à Missa, a confessar-se ou a comungar. Nada disto interessa, pois
aquilo que verdadeiramente interessa é impor à Igreja a norma
relativista dos dias que correm. Pior: em muitos meios ser católico,
crente (coisa que, volto a recordar, não sou) é facilmente objecto de
escárnio, quando não de discriminação. Já estivemos mais longe do dia em
que praticar a doutrina da Igreja tenha de ser feito quase às
escondidas.
Há
também nesta pretensão o tradicional autoritarismo dos iluminados, o
inevitável totalitarismo dos que pretendem igualizar tudo em nome do que
entendem ser a modernidade ou os direitos que estiverem de momento na
moda (também há direitos que passam de modas…). É uma pretensão de
desconcertante arrogância num tempo em que não nos faltam sinais de
esquizofrenia e confusão, onde tanto encontramos quem mande retirar um quadro clássico de um museu porque mostra jovens nuas como
se glorifica a provocação como obra de arte, onde se pretende viver sem
limites (ou “tabus”) a libertação sexual mas se quis proibir todo o
tipo de piropos, e por aí adiante.
Mas
há mais. Há também a velha ideia de que a Igreja só sobreviverá se se
“modernizar”, o que significa sempre seguir os sinais dos tempos. Na
verdade nenhuma instituição que tenha seguido essa orientação durou
muito tempo, pelo que prefiro respeitar a prudência de uma Igreja que
está cá há dois mil anos.
O grande escritor G. K. Chesterton notou um dia que “não queremos, como dizem os jornais, uma Igreja que se mova com o Mundo, queremos uma Igreja que mova o Mundo”.
Julgo que esta frase sintetiza bem a diferença entre os que olham para a
Igreja como olham para um partido político obcecado com as sondagens
(nas reacções à Nota Pastoral houve até quem usasse grelhas de análise típicas do comentário político)
ou para uma marca comercial obrigada a satisfazer os consumidores, e os
que a vêm como uma referência com outras obrigações e, necessariamente,
um outro tempo.
De
resto chamo a atenção dos mais desatentos para o facto de, mesmo assim,
a Igreja se mover – sendo que não se move, nem deveria mover-se, em
função apenas do espírito do tempo e da volubilidade das gentes. Ainda
bem.
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