1. A exuberância
poética do profeta Isaías distribuída pelas celebrações diárias do Advento
exibe uma tal confiança no futuro que mais parece um delírio do desejo que
gosta de se iludir, do que uma esperança razoável. Logo no 3º dia, e nunca se
cansará, garante que os povos vão dispensar os exércitos e as suas manobras. Os
instrumentos de guerra vão ser reciclados e confiados aos ministérios da
agricultura: converterão as espadas em relhas de arado e as lanças em foices.
Tempos virão em que nem sequer será preciso pensar na
reciclagem do exército. A justiça estará ao serviço dos infelizes do povo. Aos
violentos e aos ímpios a própria palavra de Deus os modificará. A justiça e a
lealdade serão a lei.
Até toda a natureza que se modificará. O lobo viverá com o
cordeiro e a pantera dormirá com o cabrito; o bezerro e o leãozinho andarão
juntos e um menino os poderá conduzir. A vitela e a ursa pastarão juntamente,
as suas crias dormirão lado a lado; o leão comerá feno como o boi. A criança de
leite brincará junto ao ninho da cobra e o menino meterá a mão na toca da
víbora.
Não mais praticarão o mal nem a destruição em todo o meu
santo monte: o conhecimento do Senhor encherá o país, como as águas o leito do
mar. Nesse dia, a raiz de Jessé surgira como a bandeira dos povos; as nações
virão procurá-la e a sua morada será gloriosa[2].
O profeta quer que Deus seja o Senhor do universo e prepare
para todos os povos um banquete de manjares suculentos, um banquete de vinhos
deliciosos: comida de boa gordura, vinhos puríssimos. Destruirá a morte para
sempre. Enxugará as lágrimas de todas as faces. Alegremo-nos e rejubilemos
porque nos salvou[3].
O profeta Baruc não anda longe destes delírios: Jerusalém,
deixa a tua veste de luto e aflição e reveste para sempre a beleza da glória
que vem de Deus. Cobre-te com o manto da justiça. Deus te dará para sempre este
nome: Paz da justiça e glória da piedade.
Levanta-te, Jerusalém, sobe ao alto e olha para o Oriente: vê os teus filhos
reunidos desde o poente ao nascente. Deus decidiu abater todos os altos montes,
as colinas seculares e encher os vales para se aplanar a pedra, a fim de que
Israel possa caminhar em segurança. Os bosques e todas as árvores aromáticas
darão sombra a Israel. Deus o conduzirá na alegria, com a misericórdia e a
justiça[4].
Esta selecção mostra o que abundava e o que faltava.
Abundava a guerra, a injustiça e a fome que geravam a morte, a tristeza. Faltava
a paz, o acesso à justiça para todos, a comida e a alegria. Dizer as coisas
assim prosaicamente é não dizer nada. É a linguagem dos relatórios e das
estatísticas. O próprio da linguagem simbólica, poética é incendiar a
imaginação, tornar possível o inalcançável. Dir-se-á que é uma forma de
resvalar para a ilusão. Não creio que seja a linguagem do ópio. Não há ninguém
que seja enganado pela literatura e, sobretudo, pela poesia. Esta é a linguagem
humana que nenhuma riqueza ou pobreza poderá substituir. Fazer sonhar é o
primeiro passo para a necessidade de agir.
2. Os autores do
Novo Testamento, cada um com a sua originalidade, procuram mostrar que em Jesus
Cristo o passado é assumido, reinterpretado e transformado. Não é reproduzido.
Atribuem-lhe a expressão: disseram-vos,
mas eu digo-vos.
A religião em que foi educado não abafou a sua criatividade,
a sua liberdade, sobretudo quando essa religião matava a esperança dos mais
pobres e criava toda a espécie de exclusões. Os evangelistas pretendem mostrar
que Jesus incarnava, de forma inovadora, o anti–fatalismo dos profetas. Quando
se dizia sempre assim foi,
significava para o Mestre: tem de mudar!
No Antigo Testamento, apesar da corrente sapiencial,
universalista, a corrente nacionalista, xenófoba era a que prevalecia. A carta
aos Efésios não pode ser mais clara: lembrai-vos de que nesse tempo estáveis
sem Cristo, excluídos da cidadania de Israel e estranhos às alianças da
promessa, sem esperança e sem Deus no mundo. (…) Em Cristo Jesus, vós, que
outrora estáveis longe, agora, estais perto, pelo
sangue de Cristo. Ele é a nossa paz, de dois povos fez um só e
destruiu o muro de separação, a inimizade. Na sua carne, anulou a lei, que
contém os mandamentos em forma de prescrições, para, a partir do judeu e do
pagão, criar em si próprio um só homem novo[5].
O versículo 10, que antecede esta passagem, faz uma
declaração absolutamente espantosa: nós
somos poema de Deus[6].
Não estraguemos a dignidade deste poema, escrita divina.
3. Segundo o
panorama actual, verificamos que, em vários continentes, há dirigentes
políticos que não desistem da guerra e que todos os pretextos são bons para
declarações ameaçadoras. As pessoas podem morrer e morrem das formas mais
inesperadas, mas o comércio das armas é que não pode morrer. É a lógica da
centralidade absurda do dinheiro. Deixa de ser um instrumento para uma vida
humana de qualidade, para se transformar no dono da vida e da morte. Aquilo que
deveria ser um meio de desenvolvimento da ciência e da técnica para a
felicidade de todos, transforma-se no poder de decidir a sorte da humanidade.
A Europa conheceu, num único século, guerras
horrorosas, mas parece cansada da paz
que conseguiu.
Está mais do que demonstrada a ferocidade que pode ser
desencadeada entre pessoas, nações e povos. Essa todos os dias é patenteada, em
diversos cenários de crueldade, com meios de comunicação que a celebram e a
incitam ao seu motor: o ódio do outro.
Importa investigar os mecanismos psicológicos, sociais,
económicos e políticos que incitam à guerra e à paz. Foi possível subscrever a
carta dos Direitos Humanos. Nunca se
conseguiu assinar a dos Deveres.
O Papa Francisco enviou uma carta à Universidade Lateranense
sobre ciclos de estudos interdisciplinares para multiplicar o número de pessoas
especializadas nas Ciências da Paz.
Havendo tantos meios para criar incitamentos ao ódio e à violência é
fundamental preparar pessoas, grupos, instituições que tenham como objectivo a
promoção da cultura da paz.
A Igreja dispõe de movimentos, de paróquias, de colégios, de
universidades dedicadas à educação. Poderá desistir de fazer de todos esses
meios centros de educação activa, interveniente na cultura da paz? Ou irá
dispensar o Natal este ano?
07.12.2018
[1] Is 2, 1-5
[2] Is 11, 1-10
[3] Is 25, 6-10
[4] Br 5, 1-9
[5] Cf Ef 2, 11-19
[6]
Frederico Lourenço, em nota 2, 10 diz que, à letra, a tradução do grego é «nós
somos poema d’Ele», Carta aos Efésios,
Bíblia, vol II
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